O CRIMINOSO E A REINSERÇÃO SOCIAL PELO TRABALHO NO SISTEMA PRISIONAL


09/01/2018 às 14h55
Por Fernanda Paim Socas André Advocacia

Neste capítulo pretende-se fazer distinção entre o preso que tem como meio de subsistência e trabalho habitual o ilícito do preso que praticou crime por outros motivos, quaisquer que sejam eles, demonstrando as implicações que exerce o trabalho em cada tipo e demonstrando formas de utilizar o trabalho no sistema como fator de reinserção.

 

3.1  O TRABALHO LÍCITO E O TRABALHO ILÍCITO

 

Conforme conceito exposto no item 2 deste estudo,

Trabalho é toda a energia humana, que pode ser física ou intelectual, empregada para a obtenção de finalidade produtiva. É aquele trabalho realizado pelo homem, com o manejo da matéria, que é o trabalho manual, ou utilizando signos e símbolos, que caracteriza o trabalho intelectual.(SÜSSEKIND, 2002, p. 3) (OLEA, 1997, p.42)

 

Assim, pode-se dizer que a energia humana, física ou intelectual, utilizada para obtenção de finalidade produtiva, mas que praticada por meio ilícito não deixa de ser trabalho.

Por exemplo: Uma pessoa que passa dois dias planejando o roubo de um caminhão, contrata quatro ajudantes para realizar o plano, fica com eles duas horas na margem de uma rodovia, na qual colocou toras para fazer o caminhão parar, e quando o caminhão chega amarra o motorista, enquanto seus comparsas (diga-se também empregados) levam o caminhão para um local de desmanche, sendo que após se encontram, um fica responsável por desmanchar o caminhão, outro responsável por vender as peças do caminhão, outro por vender a mercadoria, outro responsável por pedir resgate pelo motorista, sendo que ao final da empreitada, após a prática dos crimes definidos no código penal brasileiro como roubo e seqüestro, conseguem lucrar R$ 500.000,00 (Quinhentos Mil Reais), divididos na proporção de 1/5 para cada partícipe (ou “trabalhador”), independentemente de serem descobertos, processados e condenados, trabalharam, posto que utilizaram energia humana, física e intelectual com uma finalidade produtiva, qual seja, obter riqueza.

Outro exemplo: um indivíduo é contratado por outro para matar sua esposa, fazendo parecer um acidente, com a finalidade de receber dinheiro do seguro. O “empregador” paga ao outro a quantia de R$ 5.000,00 (Cinco Mil Reais) para a execução do serviço, o qual faz sabotando o carro da vítima para que fique sem freios na serra do Corvo Branco, viagem previamente combinada para que o crime pudesse ser praticado. De igual forma, foi utilizada energia humana, intelectual e física, visando finalidade produtiva, novamente, riqueza.

Exemplo bastante comum é o tráfico de drogas, em que existe inclusive uma hierarquia funcional, desde o produtor da droga, até os vendedores, passando pelos refinadores, empacotadores, seguranças, entre outros, cada um recebendo seus numerários, numa atividade típica comercial, só que ilícita.

É evidente que em todos os exemplos citados não existe proteção desta relação por parte do direito do trabalho, posto que o ilícito não gera direitos desta natureza. O que se pretende colocar com estes exemplos é que mesmo sendo ilícitas estas atividades não deixam de ser trabalho.

O trabalho lícito é aquele que tem os mesmos princípios, só que seu objeto é protegido por lei e sua prática não constitui nenhum crime.

 

3.2 DESIGUALDADES SOCIAIS E SOCIEDADE EXCLUDENTE

 

Pensando nos conceitos da criminologia crítica, a sociedade protege, por meio das leis uma classe de pessoas, gerando uma moral aceita e dominante, a moral lícita, gerando irremediavelmente uma classe que se opõe e se insurge, que tem uma moral não aceita, dominada e dita ilícita.

Aquela pessoa que não tem acesso ao trabalho lícito e digno também precisa sobreviver, precisa gerar, criar e produzir riqueza para sobrevivência própria e de sua família, pelo que, muitas vezes, esta pessoa excluída que não consegue um trabalho lícito pode conseguir um trabalho ilícito.

Seja qual for o motivo que leva alguém à prática deste tipo de crime, chamado doravante de crime ou criminalidade profissional, o fato é que traz prejuízos à sociedade num todo devendo ser combatida e / ou resolvida.

Este tipo de criminalidade é muito mais difícil de solucionar do que todas as outras, tendo em vista que é algo que passa culturalmente entre gerações; por exemplo: qual o conceito moral de trabalho, e com quê provavelmente irá trabalhar uma jovem que é filha de cafetina com traficante. Prostitui-se aos 15 anos e passa a vender drogas a seus “clientes”?

É muito provável que esta pessoa, ao longo do tempo, torne-se uma cafetina e traficante, contando inclusive com o trabalho de outras pessoas, e aí surge um desafio ao direito penal e à execução da pena, que são devidos à sociedade: como fazer com que esta pessoa viva e trabalhe de acordo com os ditames da sociedade que democraticamente vê esta conduta como ilícita e imoral?

 

3.2      SOCIEDADE E DEMOCRACIA

 

Neste ponto faz-se necessária uma análise da sociedade e da democracia, sendo indispensável para tanto uma análise do contrato social.

O conceito de democracia está calcado no contrato social que serve para a realização concreta do eu comum e vontade geral. É uma livre associação de seres humanos inteligentes que resolvem fazer um certo tipo de sociedade, devendo-lhe obediência. O contrato social, neste entendimento, é a única base legítima para a comunidade que deseja viver calcada na liberdade humana. (ROUSSEU, 2000, p.12)

Parte-se do princípio de que o homem é naturalmente bom, mas pode ser alienado por forças que podem transformá-lo em tirano ou em escravo. Rousseau busca uma forma de associação na qual através da união, cada um obedece a todos, mas apenas a si mesmo, permanecendo livre. A vontade geral é sempre dirigida ao bem comum. (ROUSSEU, 2000, p.13)

Quando o cidadão aceita a autoridade da vontade geral, passa a fazer parte de um corpo moral coletivo e adquire liberdade ao obedecer uma lei que prescreve a si mesmo, seguindo os ditames da razão e da consciência. (ROUSSEU, 2000, p.13)

O homem deixa de ser um ente individual para fazer parte de um todo, numa união fraterna. Tais ideais são a base das democracias modernas. (ROUSSEU, 2000, p.13)

 

3.2.1        Reação Social dos Excluídos

 

Acontece que este contrato social refere-se a algo abstrato, ou a algo que ocorreu nos primórdios da humanidade.

Todos já nascem numa sociedade, democrática ou não (posto que ainda existem ditaduras), sem poder decidir se querem ou não fazer parte daquele corpo social em que nasceu.

Por tais fundamentos começam a surgir as subculturas[14], que são as aglomerações de pessoas que não fazem parte ou não coadunam deste contrato social. Estas pessoas, esta sociedade a parte, cria suas próprias leis, suas próprias regras e suas próprias morais. Tem-se noticiado este fenômeno nas favelas cariocas, que são dominadas muitas vezes por traficantes que criam uma espécie de Estado paralelo, com suas próprias leis e sistema de justiça.

 

3.2.2        Democracia como Vontade da Maioria e não Vontade Unitária[15]

 

Mas, mesmo com a questão das subculturas, agora mais especificamente no caso do Brasil, persiste a democracia. Pela democracia, nada obsta que uma destas lideranças de subcultura candidate-se e eleja-se a um cargo de administração pública (em tese, já que existem requisitos objetivos e subjetivos para elegibilidade).

Não o faz por que resolve adotar uma espécie de ditadura em sua “jurisdição”; nega os princípios constitucionais, bem como seus deveres.

Mas, democracia é vontade da maioria. De dois em dois anos o povo tem obrigação de comparecer às urnas para escolher seus legisladores e governantes nas diversas esferas de poder.

Assim, resulta dizer que como é vontade da maioria, está implícito que existe uma minoria.

Por exemplo: Candidato “A” elege-se com 65% dos votos válidos, os candidatos “B” e “C” perdem, mas receberam votos, que se referem a pessoas que queriam aquela pessoa para legislar ou administrar, mas teve de contentar-se com aquele candidato que a maioria escolheu.

Desta forma, é perfeitamente viável que uma parcela da minoria que foi derrotada insurja-se com o resultado.

É o caso do que aconteceu na Venezuela, em que o candidato eleito pela maioria não foi aceito pela minoria derrotada. No caso, prevaleceu a democracia que diz que “a maioria manda”.

 

3.2.2.1 Criminalidade e Democracia[16]

 

Se a democracia não é uma vontade unitária, presumindo-se uma minoria descontente, pode-se dizer que justamente esta é a parcela da população que praticará a criminalidade não ocasional, e em especial, a criminalidade profissional.

Por exemplo: para o traficante e para o usuário de drogas, o tráfico e o uso de entorpecentes não é imoral, entretanto, aquela pessoa escolhida pela maioria para legislar, que como elas acredita que o tráfico ilícito de entorpecentes é algo imoral, e que não é benéfico o uso de drogas, edita leis que proíbem o tráfico ilícito de entorpecentes, punindo esta conduta, que já era praticada por aquela minoria que não pode decidir, pois vive em democracia.

Neste exemplo, o que resta?

Para aquele que não quer mudar sua moral e seu costume pela lei resta transgredir a norma, mesmo sujeitando-se a punição, mas geralmente este aperfeiçoa suas técnicas para fugir à punição.

Deste modo, pode-se presumir que sempre que se falar em democracia falar-se-á em crime, já que este resulta do inconformismo com a vontade democrática.

 

3.3      O CRIMINOSO E O TRABALHO NA VIDA CARCERÁRIA

O trabalho na vida carcerária, para o preso exerce papel fundamental na execução da pena.

De um lado, por permitir ao preso que exerça uma atividade, evitando a ociosidade e favorecendo relações positivas entre colegas de trabalho prisional, colegas de oficina; por outro, por possibilitar à sociedade incutir no criminoso profissional o conceito de trabalho por ela defendido, o trabalho lícito, mas que deve sempre ser um trabalho digno.

 

3.3.1       Fatores Inerentes ao Trabalho Prisional

 

Para a grande maioria da sociedade, a pena restritiva de liberdade por si só não é encarada como suficiente para a expiação do crime por quem o pratica, é necessário algo mais, e vincula-se a idéia de trabalhos forçados, praticados outrora como pena, serve atualmente de outra forma, como via normal para que o individuo seja aceito na sociedade. É o caminho que a sociedade mostra para o delinqüente como forma de ser aceito em seu seio.[17]

Entretanto, as dificuldades que existem no sistema para que seja implantada uma forma de trabalho eficiente aos fins que se destina são muitas, mas que devem ser superadas em virtude do benefício que traz.

 

3.3.1.1       Motivação

 

A teoria moderna da motivação do trabalhador diz que este sente satisfação ao produzir e ser útil. (COSTA, 1999, p.66)

A produtividade do trabalhador é a razão de sua capacidade social, as recompensas não financeiras exercem um papel importante na motivação e no estado de espírito de quem trabalha. (CHIAVENATO, apud COSTA, 1999, p.66)

São fatores que levam à motivação: a liberdade, a responsabilidade e a inovação no trabalho. Os fatores motivacionais podem ser identificados como auto-estima e auto-satisfação. (COSTA, 1999, p.67)

No sistema prisional a falta de motivação do preso que pode ser conseguida pelo trabalho gera frustração. Frustração ocorre quando certas necessidades do indivíduo não podem ser supridas e as tensões não são aliviadas. (COSTA, 1999, p.69)

A frustração é reconhecida por meio de comportamentos como agressividade, regressão, fixação e resignação. (COSTA, 1999, p.69)

Uma das necessidades do trabalho no sistema prisional é para motivar o preso, evitando que fique frustrado, reduzindo estes comportamentos ruins dentro do sistema. Assim, o trabalho enquanto motivação é importante para minimizar os efeitos negativos exercidos pelo cárcere sobre o indivíduo.

 

3.3.1.2       Desenvolvimento Profissional

 

O desenvolvimento profissional do preso é fundamental no sistema, porquanto é a única forma da sociedade mostrar ao criminoso uma forma diferente de trabalhar e manter-se. Neste caso, faz-se referência ao criminoso profissional.

O desenvolvimento profissional dos criminosos eventuais também é importante, mas na mesma razão que é importante o desenvolvimento profissional de uma pessoa que nunca foi condenado por crime algum.

Se o sistema prisional oferecer ao preso uma formação profissional aceita pela sociedade, demonstrando a ele formas de lucrar licitamente com aquela formação que recebeu quando sair da prisão, ou mesmo dentro dela, será mais possível que o preso (Criminoso Profissional), ao sair do sistema, opte por um estilo de vida lícito.

 

3.3.1.3       Condições de Trabalho

 

As condições de trabalho no sistema prisional devem atender aos princípios de higiene e salubridade, além dos princípios constitucionais de segurança do trabalhador. O ambiente de trabalho prisional deve ser melhor que os demais ambientes prisionais, de forma que o preso trabalhador sinta-se motivado a sair da cela para uma oficina.

Deve-se optar no sistema prisional por espécies de trabalho que supram as necessidades pessoais do condenado, sejam compatíveis com sua inteligência, com suas habilidades específicas.

Hassen (1999, p. 37) cita o caso de presos urbanos que são encaminhados para penitenciárias agrícolas. As condições de trabalho, para este trabalhador serão infamantes, aviltantes, posto que não respeita o que ele é.

 

 

3.3.2          Serventia do Trabalho do Preso para a Sociedade

 

Assim, o trabalho do preso não deve ser visto unicamente como forma de ele pagar sua “dívida” com a sociedade, mas como a forma dele poder optar por uma nova forma de viver, durante o cumprimento da pena e após seu cumprimento, na vida em liberdade, para que não volte a delinqüir.

 

3.4            O CRIMINOSO E O TRABALHO NA VIDA PÓS-CARCERÁRIA

 

Num sistema que não reeduca o preso, não lhe oferece trabalho, mas apenas segrega o condenado pela prática de crimes, transformando as prisões em “depósitos temporários de seres humanos indesejados pela sociedade”, existe uma enorme probabilidade de reincidência, tanto para o criminoso profissional, posto que não foi ressocializado, como para o criminoso eventual, já que pode pesar sobre si o estigma da prisão, sua rotulação e conseqüente segregação do convívio social. Este indivíduo que não é reincidente em potencial assim se torna, pois se a sociedade, o Estado, a família e todos mais o abandonarem, reste-lhe talvez somente a amizade de algum companheiro de cárcere, que poderá levá-lo à criminalidade profissional por pura falta de opção. Neste estágio em que se apresenta o sistema, pode-se dizer que a incidência é o que gera a reincidência.

 

 

[14] Neste sentido, BARATTA, 1999.

[15] Com relação ao exposto neste item, ver BARATTA, 1999; OLMO, 2004; RAUTER, 2003.

 

[16]Também com relação ao exposto neste item, ver BARATTA, 1999; OLMO, 2004; RAUTER, 2003.

 

[17] Neste sentido, HASSEN, 1999, p.35

  • Trabalho
  • Reinserção
  • Socialização
  • Direitos Humanos
  • Criminologia

Fernanda Paim Socas André Advocacia

Advogado - Blumenau, SC


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