COMO O ESTADO COLABOROU PARA QUE O SUS CHEGA-SE AO COLAPSO DOS DIAS ATUAIS


27/06/2021 às 17h18
Por Diego Jardim Machado

Em tempos de pandemia o que mais nos preocupa é o colapso do nosso sistema de saúde, com superlotação de nossas UTIs e aumento generalizado de mortes. Mas, como chegamos a isso? Como pode um país de dimensões continentais — como muitos adoram ecoar aos quatro cantos — conseguir chegar ao caos de não ter leitos suficientes para seus cidadãos?

O Brasil tem 45.848 leitos de UTI, sendo 22.844 do Sistema Único de Saúde (SUS) e 23.004 que fazem parte do sistema de saúde privado.¹ Lembrando que somos aproximadamente 210 milhões de habitantes. “Um país de dimensões continentais!”

A média recomendada pela OMS é que se tenha entre 1 a 3 leitos de UTI a cada 10 mil habitantes, o Brasil está na média, com 2,2 leitos para cada 10 mil habitantes, aparentemente satisfatório. Mas quando a análise é mais detalhada, segmentando os dados entre sistema público e privado, por exemplo, o SUS tem média de 1,4 leitos para cada 10 mil habitantes, contra 4,9 da rede privada.²

Agora, apesar desses números assustarem já em condições normais de vida, quem dirá em plena pandemia, a cada 10 mil pessoas, apenas 2 terão um leito de UTI para se tratar. Isso só não é mais caótico do que a evolução de leitos nos últimos anos no Brasil, em 2016 a nossa média era de 2,03 leitos para cada 10 mil habitantes. Ou seja, não evoluímos quase nada, muito por causa da crise econômica, vamos colocar mais essa na conta dela.³

Essa introdução sobre a questão dos leitos de UTI no Brasil e o colapso do SUS durante a pandemia é algo muito grave e que até podemos tentar encontrar uma solução ou um culpado para tudo isso. Mas a questão a ser debatida, pelo menos no presente artigo, é: como chegamos a isso?

Como podemos ter um Sistema de Saúde tão precário e ao mesmo tempo defendidos por tantos? Será cegueira coletiva ou nós é que somos “capitalistas malvadões” que queremos entregar tudo à iniciativa privada?

Para tentarmos chegar a uma análise sobre a saúde do Brasil como um todo e descobrirmos porque o nosso SUS colapsa mesmo estando na média da OMS, que cá entre nós é uma média ridícula, pois enquanto houver pessoas saudáveis funciona, mas no primeiro surto lota os leitos, precisamos voltar aos primórdios da Saúde no Brasil, como implementamos nosso sistema único e porque cada vez mais o sistema de saúde suplementar é deteriorado.

OS TIPOS DE SISTEMAS DE SAÚDE NO MUNDO

Para entendermos o nosso sistema de saúde e porque ele foi o escolhido, precisamos entender quais são os sistemas de saúde usados no mundo e como eles funcionam, são eles: o sistema de medicina socializada, o sistema misto e o sistema de livre mercado.

Vamos falar sobre os três antes de entrarmos em nosso sistema, para podermos entender o motivo de termos escolhido um sistema único de saúde e quais poderiam ser os caminhos alternativos.

A medicina socializada

O sistema socializado de medicina parte geralmente da premissa de que saúde é um direito que deve ser fornecido pelo estado, um exemplo desse sistema socializado é o abordado neste artigo, o nosso SUS.

A característica comum desse sistema é o estado ser o fornecedor da saúde, dono de hospitais, clínicas, ambulâncias e empregador dos profissionais que trabalham na área de saúde (desde o limpador de chão até o neurocirurgião).

O financiamento desse sistema pode se dar basicamente de duas formas:

• Contribuição igualitária individual, em que cada pessoa paga um valor fixo para o estado por ano, e o governo aloca os recursos conforme achar necessário. Seria algo similar a um plano de saúde estatal.

• Pagamento por meio de impostos, sendo mais ou menos progressivos conforme o país. Esses impostos podem estar sobre a renda, o consumo ou a propriedade. Sendo essa a forma de financiamento do SUS. [4]

Sendo assim, aquele papo de que os ricos pagam para os pobres não é real, na verdade é o pobre saudável que paga para o rico doente, uma vez que os custos são divididos por toda a sociedade.

O sistema misto

Nesse modelo de sistema há uma alta carga de regulamentações e o fornecimento de serviços pode ser tanto pelo estado quanto por agentes privados.

Diferentemente do modelo puramente socializado, nos sistemas mistos o estado não é o dono dos hospitais nem o empregador dos profissionais de saúde. Entretanto, o estado atua definindo quais serviços podem ser ofertados, quais tipos de profissionais são autorizados a trabalhar no país e muitas vezes até tabela os preços considerados aceitáveis.[5] A saúde continua sendo um direito, mas não cabe ao estado o seu fornecimento.

Esse sistema apresenta vantagens em relação ao sistema socializado: menores custos dos serviços; competição entre os fornecedores; maior possibilidade de inovações; mais liberdade de escolha em relação ao provedor do serviço. Um exemplo desse modelo é o Canadense.[6]

O sistema de livre mercado

Nesse sistema a saúde, como qualquer outro bem ou serviço é ofertado sem a mínima interferência do estado, consiste em as pessoas fazerem as escolhas para seus tratamentos da forma que mais se adequa a elas.

Esse tipo de sistema está parcialmente presente nos serviços privados de saúde, principalmente naqueles de caráter estético, como cirurgia plástica e dermatologia; cirurgia para correção de miopia; serviços odontológicos; e treinamento físico; mas não é adotado amplamente por nenhum país. [7]

Esses três tipos de modelos podem coexistir, no Brasil temos o SUS e também um setor suplementar, seria um misto de sistema socializado com o sistema misto. Nos EUA, temos um setor totalmente livre bem fortalecido, apesar das últimas investidas em programas sociais de saúde dos últimos governos.

Cada país, com suas peculiaridades, irá escolher o modelo que melhor se adequa. Por exemplo, a Suécia, com uma população pequena, consegue implementar um modelo socializado que demorará anos para começar a fadigar. Já o SUS, aqui no Brasil, é problemático desde sua implantação.

Falando em implantação do SUS no Brasil, agora que já sabemos sobre os tipos de sistemas de saúde possíveis, vamos falar sobre a Saúde em nosso país e como e porque ela é tão problemática e precária — considerando que você ache ela precária e não seja da turma do “defenda o sus”.

O COMEÇO DO ACESSO À SAÚDE NO BRASIL

Em termos de prestação de saúde pública, até a década de 1930 o predomínio no Brasil era de entidades filantrópicas. Desde então até a década de 1990 o mercado privado de saúde crescia demasiadamente devido a pouca regulamentação e pela alta demanda que não conseguia ser atendida pelo serviço público.

Isso mudou com a ascensão do intervencionismo no setor na década de 1990, inicialmente com a Lei nº 8.078/1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor. Ela introduziu uma nova forma de dirigismo contratual, mitigando o pacta sunt servanda. Posteriormente, com a promulgação da Lei nº. 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos e Seguros de Saúde, o grau de intervenção foi endossado e os eventos médicos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde, regulamentados. [8]

A partir daí passamos a ter uma queda constante no número de planos privados de saúde, nos anos 1990 tínhamos mais de 3.000 operadoras e com a criação da lei 9.656/1998, o grau de intervencionismo aumentou consideravelmente, fazendo com que hoje tenhamos menos de 1.000.

A lei 9.656/98 traz em seu art. 10 o chamado “plano referência” que seria o mínimo que deveria ser ofertado pelas operadoras de saúde:

(…) Art.10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: (grifo meu). ¹⁰

O art. 12 referido no dispositivo acima traz as exigências mínimas de cobertura que deve ter o plano, caso inclua alguns tipos de atendimento, conforme veremos a seguir:

(…) Art.12.São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:

I — quando incluir atendimento ambulatorial:

a) cobertura de consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina;

b) cobertura de serviços de apoio diagnóstico, tratamentos e demais procedimentos ambulatoriais, solicitados pelo médico assistente;

c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes;

II — quando incluir internação hospitalar:

a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos;

b) cobertura de internações hospitalares em centro de terapia intensiva, ou similar, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, a critério do médico assistente;

c) cobertura de despesas referentes a honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação;

d) cobertura de exames complementares indispensáveis para o controle da evolução da doença e elucidação diagnóstica, fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais, transfusões e sessões de quimioterapia e radioterapia, conforme prescrição do médico assistente, realizados ou ministrados durante o período de internação hospitalar;

e)cobertura de toda e qualquer taxa, incluindo materiais utilizados, assim como da remoção do paciente, comprovadamente necessária, para outro estabelecimento hospitalar, dentro dos limites de abrangência geográfica previstos no contrato, em território brasileiro; e

f) cobertura de despesas de acompanhante, no caso de pacientes menores de dezoito anos;

g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar;

III — quando incluir atendimento obstétrico:

a) cobertura assistencial ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, ou de seu dependente, durante os primeiros trinta dias após o parto;

b) inscrição assegurada ao recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor, como dependente, isento do cumprimento dos períodos de carência, desde que a inscrição ocorra no prazo máximo de trinta dias do nascimento ou da adoção;

IV — quando incluir atendimento odontológico:

a) cobertura de consultas e exames auxiliares ou complementares, solicitados pelo odontólogo assistente;

b) cobertura de procedimentos preventivos, de dentística e endodontia;

c) cobertura de cirurgias orais menores, assim consideradas as realizadas em ambiente ambulatorial e sem anestesia geral;

V — quando fixar períodos de carência:

a) prazo máximo de trezentos dias para partos a termo;

b) prazo máximo de cento e oitenta dias para os demais casos;

c) prazo máximo de vinte e quatro horas para a cobertura dos casos de urgência e emergência;

VI — reembolso, em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o §1o do art. 1o desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada;

VII — inscrição de filho adotivo, menor de doze anos de idade, aproveitando os períodos de carência já cumpridos pelo consumidor adotante.

(…) ¹¹

Com tantas exigências, com tanta regulamentação, fica mais do que óbvio que as agências prestadoras irão se preocupar em cumprir uma vasta legislação de exigências e não em satisfazer os usuários, assim a chamada “soberania do consumidor” se perde e com ela a qualidade e a especificidade dos produtos, uma vez que para cumprir todos esses requisitos é praticamente impossível fazer planos individualizados, com diferentes tipos de assistência.

Assim, fica evidente o alto custo de um plano privado de saúde em nosso país, tendo de cumprir todos os requisitos acima, as agências têm um alto custo de funcionamento e isso reflete no preço dos planos, afastando a população de menor renda, sobrecarregando nosso SUS e causando uma quebra generalizada dessas prestadoras de serviço.

Para “fechar o caixão” da saúde privada no Brasil, foi criada, através da Lei 9.961/2000 a Agência Nacional de Saúde Suplementar — ANS, que tem entre as suas competências, autorizar os reajustes dos planos privados de saúde.

Art. 4º Compete à ANS:

(…)

XVII — autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda;

(…) ¹²

CONCLUSÃO

O grande problema da Saúde no país é a alta regulação, em vez de incentivar o avanço da saúde privada no país para suprimir a infinita demanda do SUS, o governo cria regulações que causam quebras no setor. Em vez de incentivar com que tenhamos mais planos individualizados para cada pessoa, com suas peculiaridades, o governo cria regulação com exigências mínimas para serem cobertas pelos planos.

Assim, criamos o problema da classe média ter que escolher: pagar R$170,00 em um plano de saúde e quase nunca usar ou não ter um plano e usar o SUS quando precisar?

O quão essa resposta seria diferente se tivéssemos vários tipos de planos, de diversos preços e com coberturas específicas para cada indivíduos?

Mas, em vez de incentivar isso, o Estado, querendo garantir a eterna ilusão do “bem-estar social” faz com que o setor fique fadado a quebrar e preços altíssimos nos planos, consequentemente levando essa classe, que é maioria no país, a congestionar o SUS e seguimos tendo pobres saudáveis pagando para ricos doentes.

 

Artigo publicado originalmente no blog do Clube Farroupilha em 24/06/2021

Por Diego Machado

Contato: [email protected]

Instagram: @dig.machado

LinkedIn: in/diegojardimmachado/

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Referências

Cadastro de Operadoras/ANS/MS e Sistema de Informações de Beneficiários SIB/ANS/MS Dados atualizados até 07/2020.

1 AMIB.AMIB apresenta dados atualizados sobre leitos de UTI no Brasil. 2020. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/28/dados_uti_amib.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.

2 Idem.

3 AMIB. CENSO AMIB 2016. 2016. Disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2018/marco/19/Analise_de_Dados_UTI_Final.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021

4 LEITE, Davi Lyra. Um breve manual sobre os sistemas de saúde: e por que é impossível ter um sus sem fila de espera. e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera. 2015. Disponível em: https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=2029. Acesso em: 26 abr. 2021.

5 Idem.

6 LEITE, Davi Lyra. Um breve manual sobre os sistemas de saúde: e por que é impossível ter um sus sem fila de espera. e por que é impossível ter um SUS sem fila de espera. 2015. Disponível em: https://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=2029. Acesso em: 26 abr. 2021.

7 Idem

8 SPERANDIO, Luan. Consequências do Intervencionismo no Mercado de Saúde Suplementar Brasileiro. Mises: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, São Paulo, v. , n. 1, p. 125–136, jun. 2017

9 SPERANDIO, Luan. Consequências do Intervencionismo no Mercado de Saúde Suplementar Brasileiro. Mises: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, São Paulo, v. , n. 1, p. 125–136, jun. 2017

10 BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Lei dos Planos de Saúde. Brasilia

11 BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Lei dos Planos de Saúde. Brasilia.

12 BRASIL. Lei nº 9.9.61, de 28 de janeiro de 2000. Agência Nacional de Saúde Suplementar — Ans. Brasilia.


Diego Jardim Machado

Advogado - Dom Pedrito, RS


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