CARACTERÍSTICAS DA JURISDIÇÃO
(W.R.,Barbosa)
INTRODUÇÃO
O trabalho que segue se propõe a traçar um estudo, preliminarmente, sobre o instituto da jurisdição e seus desdobramentos, tendo como principal objetivo, mostrar suas características e a importância que elas exercem no decorrer do processo.
Assim, podemos definir jurisdição como a função estatal, pela qual o estado substitui as partes conflitantes, com o escopo de analisar litígio levado até ele, e, ao final, emitir um pronunciamento dando o direito a quem o tem.
Sobre jurisdição importante citar a grande lição de Cândido Rangel Dinamarco que assim assevera:
Que ela é função do Estado e mesmo monopólio estatal, já foi dito; resta agora, a propósito, dizer que a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é a manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa os encargos que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal).
Em outras palavras, é por meio da jurisdição que o Estado se põe entre às partes conflitantes, buscando através de um processo justo e imparcial, a melhor solução para o respectivo litígio, atingindo assim, a pacificação social, objetivo maior da jurisdição.
Para Humberto Theodoro Júnior, “a função jurisdicional só atua diante de casos concretos de conflitos de interesses (lide ou litígio) e sempre na dependência da invocação dos interessados”.
O parágrafo retro consagra a inércia da jurisdição, pois conforme exposto, salvo limitadíssimas exceções, o maquina jurisdicional precisa ser acionada, para que o Estado cumpra seu dever de pacificador social.
Dessa forma, resta claro que toda vez que a maquina estatal é tirada da sua inércia, se faz necessário que ela preste a tutela jurídica aos interessados, usando, mormente, de regras abstratas e princípios, aplicando-os ao caso concreto, para no fim, resolver o litígio em apreço.
Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior leciona que:
Tomando conhecimento das alegações de ambas as partes, o magistrado definirá a qual delas corresponde o melhor interesse, segundo as regras do ordenamento jurídico em vigor, e dará composição ao conflito, fazendo prevalecer a pretensão que lhe seja correspondente. Eis, aí, em termos práticos, em que consiste a jurisdição.
A importância da jurisdição também se funda no fato de que é proibido pelo Estado que os interessados pela preservação de um direito violado façam justiça com as próprias mãos.
Após breve síntese de jurisdição, dar se seqüência ao trabalho em tela, abordando seu principal objetivo, qual seja, o estudo suas características.
CARACTERÌSTICAS DA JURISDIÇÃO
Em todas as fontes de pesquisas sobre características da jurisdição, é de fácil percepção que tais pensamentos foram formados tendo como norte os ensinamentos do Ilustre professor Cândido Rangel Dinamarco, motivo pelo qual, faço minhas suas palavras para iniciar o tópico central do trabalho em baila.
Para caracterizar a jurisdição, muitos critérios foram propostos pela doutrina tradicional, apoiada sempre em premissas exclusivamente jurídicas e despreocupada das de caráter sócio-político. Hoje a perspectiva é substancialmente outra, na medida em que a moderna processualística busca legitimidade do seu sistema na utilidade que o processo e o exercício da jurisdição possam oferecer à nação e às suas instituições. Daí a segura diretriz no sentido de afirmar os escopos sociais e políticos da jurisdição e especialmente o escopo de pacificação com justiça, de que se falou em capítulo anterior.
Após entendermos que para caracterizar a jurisdição se faz importante considerar, não só aspectos jurídicos, mas, também, aspectos sócio-políticos, iniciaremos de forma individual o estudo de cada característica.
CARATER DE SUBSTITUTIVIDADE
Como visto no tópico introdutório desse trabalho, para o correto exercício da função jurisdicional, se faz necessário que o Estado substitua as partes conflitantes, para no fim solucionar a respectiva controvérsia.
Sobre a característica de substitutividade exercida pelo Estado, por meio da jurisdição, Marcos Destefenni, nos ensina que: “O Estado-Jurisdição substitui os envolvidos na situação conflituosa, no sentido de que atua no lugar daquele que deveria atuar, tornando desnecessária a atuação do réu”.
Para exemplificar o supramencionado, ele nos traz a situação de alguém que se comprometeu a outorgar uma escritura pública de compra e venda de um imóvel e se nega a praticar essa conduta, o judiciário, com uma sentença, substitui a atuação do contratante
Ainda nesse sentido, o professo Dinamarco assevera que:
Não cumpre a nenhuma das partes interessadas dizer definitivamente se a razão está com ela própria ou com a outra; nem pode, senão excepcionalmente, quem tem uma pretensão invadir a esfera jurídica alheia para satisfazer-se. A única atividade admitida pela lei quando surge o conflito é, como vimos, a do Estado que substitui a das partes.
ESCOPO JURÍDICO DE ATUAÇÃO DO DIREITO
O escopo jurídico de atuação do direito consiste na realização do direito material nos casos concretos levados pelas partes para serem apreciados pelo Estado-Juiz.
Para o professor Dinamarco, “através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial.”
Na seqüência, ele explica que o supracitado corresponde a idéia de que a norma concreta nasce antes e independente do processo, atribuindo, por fim, tal entendimento aos ensinamentos de Chiovenda.
Em outro turno, ele traz o pensamento de Carnelutti, expondo que:
Só existiria um comando completo, com referência a determinado caso concreto (lide), no momento em que é dada a sentença a respeito: o escopo do processo seria, então, a justa composição da lide, ou seja, o estabelecimento da norma de direito material que disciplina o caso, dando razão a uma das partes.
A bem da verdade, o certo é que o objetivo de atuação do direito não pode se findar na simples realização do direito material, pois se assim o fosse, estaríamos vergastando a atuação da jurisdição, já que serviria apenas para por fim a controvérsia de particulares.
Dinamarco assevera que o objetivo supra:
Há de coordenar-se com a idéia superior de que os objetivos buscados são, antes de tudo, objetivos sociais: trata-se de garantir que o direito subjetivo material seja cumprido, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e ordem na sociedade favorecidas pela imposição da vontade do Estado. O mais elevado interesse que se satisfaz através do exercício da jurisdição é, pois, o interesse da própria sociedade (ou seja, do Estado enquanto comunidade).
Desta forma entende-se que o “escopo jurídico de atuação do direito dividiu-se em dois momentos:
- Concretização da pretensão do demandante (interesse pessoal);
- Realização do direito e pacificação social (interesse público/comunidade);
SECUNDARIEDADE
Está característica se funda no fato de que, o normal, consiste no dever da sociedade em caminhar sem a interferência da jurisdição, devendo, desta forma, as partes cumprirem com suas obrigações, evitando, assim, futuras controvérsias.
Nesse sentido:
O normal é que o direito seja realizado independentemente da atuação da jurisdição. Em geral, o patrão paga os salários sem que seja acionado para tanto; o locatário paga o aluguel sem que o locador tenha que recorrer à justiça para fazer valer seu direito. Somente quando surge o litígio (conflito e interesses qualificado por uma pretensão resistida) é que o judiciário é provocado. Diz-se, Por isso, que a jurisdição é secundária, que ela tem a característica de secundariedade.
No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior nos ensina que, “diz-se que é atividade “secundária” porque, através dela, o Estado realiza coativamente uma atividade que deveria ter sido primariamente exercida, de maneira pacífica e espontânea, pelos próprios sujeitos da relação jurídica submetida a decisão”.
Com isso, resta claro o entendimento de que a pacificação social deve existir na sociedade por si só. Porém, ocorrendo controvérsias sobre determinado direito, e, essa controvérsia sendo levado ao poder judiciário, o estado, secundariamente, coagirá a parte sucumbente a cumprir com sua obrigação, para que desta forma, obtenha-se a almejada pacificação social.
DEFINITIVIDADE
Essa característica consagra a segurança jurídica que as decisões judiciais devem possuir, haja vista que, uma vez ocorrido o trânsito em julgado, essa decisão se torna imutável.
No entanto, para o correto entendimento dessa característica, se faz necessário uma perfeita distinção entre coisa julgada material e coisa julgada formal.
O fenômeno da coisa julgada material encontra-se forte no artigo 467 CPC, com a seguinte redação: “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Sobre coisa julgada material, Nelson Nery Júnior assevera que:
A sentença de mérito transitada em julgado, isto é, acobertada pela autoridade da coisa julgada, possui efeitos dentro do processo onde foi prolatada a referida sentença e, também, efeitos que se projetam para fora desse mesmo processo.
1 – Efeito endoprocessual:
O efeito endoprocessual produzido pela coisa julgada material, consiste na idéia, já exposta, de que tal decisão não mais poderá ser alterada, ou seja, não mais poderá ser interposto recurso visando nova apreciação da matéria resolvida.
2 – Efeito extraprocessual:
Em outro turno, não obstante os efeitos dentro daquele processo, a coisa julgada material, fora dele, vincula as partes e impossibilita a interposição de nova demanda com escopo de rediscutir a matéria já apreciada.
Por sua vez, existe coisa julgada formal, quando a imutabilidade da decisão ocorre somente dentro do processo em que foi proferida. Essa situação ocorre em casos de sentenças terminativas de mérito, art. 269 do código de processo civil.
Para Cândido Rangel Dinamarco:
Coisa julgada formal é a imutabilidade da sentença como ato jurídico processual. Consiste no impedimento de qualquer recurso ou expediente processual destinado a impugná-la, de modo que, naquele processo, nenhum outro julgamento se fará. A coisa julgada formal é um dos dois aspectos do instituto da coisa julgada e opera exclusivamente no interior do processo em que se situa a sentença sujeita a ela.
Analisada as duas espécies de coisa julgada, verifica se que a definitividade da jurisdição está estritamente vinculada a coisa julgada material.
Sobre definitividade, Marcos Destefenni nos ensina que, “o pronunciamento jurisdicional diante do caso concreto tem outra característica, a sua definitividade, pois uma vez não mais sujeito a recurso, a sentença judicial de mérito torna-se definitiva, imune a nova apreciação”.
Essa característica da jurisdição está devidamente amparada em nossa Carta Magna, mais precisamente em seu artigo 5°, XXXVI, ao expressar que, “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” .
Em suma, para que exista a coisa julgada material e a conseqüente definitividade da jurisdição, importante a existência de três requisitos:
- Existência de um processo;
- Sentença de mérito;
- Não mais
IMPARCIALIDADE
É uma atividade desinteressada do conflito. A vontade lei posta em prática não é dirigida ao órgão jurisdicional e sim entre as partes em conflito.
Quiçá seja essa uma das mais importantes características da jurisdição, vez que sem ela, seria impossível uma decisão justa (justa composição da lide), o que tiraria qualquer confiança do poder judiciário.
Para zelar pela imparcialidade e consequentemente pela justa decisão das controvérsias levadas ao Estado-Jurisdição, se faz necessário que o julgador mantenha-se eqüidistante das partes, avaliando os fatos e apresentado, ao final, justo pronunciamento.
Para Cândido Rangel Dinamarco:
A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes, por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial: e o Estado, que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas.
As afirmações supramencionadas são ratificadas por Humberto Theodoro Júnior ao explanar que: “o juiz mantém equidistante dos interessados e sua atividade é subordinada exclusivamente à lei, a cujo império se submete como penhor de imparcialidade na solução do conflito de interesses”.
O zelo pela imparcialidade do juiz, princípio constitucional do Estado Democrático de direito, fez com que nosso legislador reservasse os artigos 134 e 135 do atual Código de Processo Civil para dispor sobre dois desdobramentos sobre o tema imparcialidade, quais seja: impedimento e suspeição.
Art. 134 - É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:
I - de que for parte;
II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;
III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão;
IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau;
V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau;
VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.
Parágrafo único - No caso do nº IV, o impedimento só se verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo, a fim de criar o impedimento do juiz.
Art. 135 - Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:
I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;
III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio;
V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.
Parágrafo único - Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.
INSTRUMENTAL
Essa característica está esposada na obra de Humberto Theodoro Júnior, e consiste na idéia de que a jurisdição nada mais é do que o instrumento usado pelo Estado, para resolver os litígios e consequentemente atingir a pacificação social.
É “instrumental” porque, não tendo outro objetivo principal, senão o de dar atuação prática às regras do direito, nada mais é a jurisdição do que um instrumento de que o próprio direito dispõe para impor-se à obediência dos cidadãos.
LIDE
Lide é litígio. Na clássica conceituação de Carnelutti, é conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Ultrapassada a fase de nossa civilização em que tudo se resolvia através da autotutela, e com o desenvolvimento da noção de Estado (conseqüentemente de Estado de Direito), atribuiu-se a este, através de um de seus alicerces, o Judiciário, a responsabilidade pela resolução dos conflitos intersubjetivos.
A atividade jurisdicional está estreitamente relacionada com a existência de uma lide, pois, se ao contrário fosse, o particular não procuraria o Estado, que por sua vez, não exerceria sua função jurisdicional.
Entretanto, poderá ser percebida a existência da Jurisdição sem Lide, naquelas situações em que é necessário o conhecimento do juiz sobre a matéria. É a chamada Jurisdição voluntária.
Pontes de Miranda, "no momento em que alguém se sente ferido em algum direito, o que por vezes é fato puramente psicológico, o Estado tem interesse em acudir à sua revolta, em pôr algum meio ao alcance do lesado, ainda que tenha havido erro de apreciação por parte do que se diz ofendido. A Justiça vai recebê-lo, não porque não tenha direito subjetivo, de direito material, nem, tampouco, ação: recebe-o como a alguém que vem prestar perante os órgãos diferenciados do Estado a sua declaração de vontade, exercendo a sua pretensão à tutela jurídica". E arremata o saudoso Mestre, "o Estado só organizou a lide judiciária com o intuito de pacificação, como sucedâneo dos outros meios incivilizados de dirimir as contendas, e o de realização do direito objetivo, que é abstrato. Paz, mais do que revide, é a razão da Justiça" (em Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo I, 4ª ed., Ed. Forense
Para Cândido Rangel Dinamarco:
A existência da lide é uma característica constante na atividade jurisdicional, quando se trata de pretensões insatisfeitas que poderiam ter sido satisfeitas pelo obrigado. A final, é a existência do conflito de interesses que leva o interessado a dirigir-se ao juiz e a pedir-lhe uma solução; e é precisamente a contraposição dos interesses em conflito que exige a substituição dos sujeitos em conflito pelo Estado.
INÉRCIA
Os órgãos jurisdicionais possuem a inércia como uma de suas principais características, devendo, dessa forma, só atuarem quando provocados pela parte interessada na solução da controvérsia.
Sobre o tema Cândido Rangel Dinamarco assevera que: “outra característica da jurisdição decorre do fato de que os órgãos jurisdicionais são, por sua própria índole, inertes (nemo judex sine actore, ne procedat judex ex officio).
O certo é que, seria quase que impossível manter a imparcialidade das decisões, caso o magistrado pudesse, de ofício, instaurar, para posteriormente julgar a demanda por ele iniciada.
O parágrafo supra ganha guarita no fato de que, o magistrado não iria romper a inércia da jurisdição, a fim de instaurar uma demanda sobre a qual ele não tivesse preliminar convicção sobre a quem pertence à razão, o que lhe tiraria toda a imparcialidade no respectivo julgamento.
Nesse mesmo sentido, Marcos Destefenni nos ensina que:
Também já apontamos a inércia como características da jurisdição. A atividade jurisdicional é essencialmente inerte, uma vez que não há demanda sem provocação do interessado (Nemo judex sine actore). Por isso, também não pode o juiz, de ofício, instaurar a relação processual (ne procedat judex ex officio). Só em casos excepcionais é possível a atuação ex officio do judiciário.
UNIDADE
Jurisdição é um poder estatal, portanto, é uma. Para cada Estado soberano existe uma jurisdição. Só há função jurisdicional, pois se nos referíssemos em várias jurisdições, estaríamos aceitando a idéia de existir várias soberanias e vários Estados.
Entretanto, esse poder uno, pode ser administrativamente dividido em órgãos distintos, sendo cada qual com sua competência, sempre subordinado ao poder estatal. Embora seja uno, a jurisdição é divisível.