Réu é absolvido pelo STJ após ser reconhecido pela vítima por crime ocorrido três meses antes


13/09/2022 às 09h34
Por Paula Goulart Ferreira

A 6º turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), absolveu um condenado pelo delito de roubo e reconhecido pela vítima após três meses do fato e por meio de retrato falado. Entendeu o colegiado que o procedimento não respeitou os requisitos do art. 226 do CPP.

Trata-se de um caso em que a vítima afirmou ter sido assaltada por 3 agentes em janeiro de 2018. Na data do delito, não foi capaz de reconhecer as fotografias apresentadas, como também não identificou os possíveis infratores na delegacia. Na ocasião, afirmou tão somente que acreditava serem menores de idade, apontando pela impossibilidade de descrever traços físicos para confecção de retratos falados

A despeito da incapacidade de reconhecer e descrever características, passados três meses, garantiu ter reconhecido um infrator em uma maca de hospital: um homem de 27 anos. Dessarte, levou a informação à delegacia responsável, oportunidade em que foram apresentadas novas fotografias para identificação. Desta vez, houve o reconhecimento fotográfico do então suspeito, o que foi confirmado em sede de instrução

Na condenação pelo juiz singular, asseverou-se que a vítima foi categórica ao reconhecer o suspeito. A defesa apelou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que manteve sua decisão ao entender, dentre outros fundamentos, que os requisitos do art. 226 do CPP seriam mera recomendação. Por conseguinte, não haveria razão para declarar a nulidade do procedimento

Em habeas corpus, alegou a defesa ter ocorrido nulidade em razão do reconhecimento fotográfico em desacordo com o ordenamento legal. De acordo com os autos, no dia do reconhecimento em audiência de instrução e julgamento, teria a vítima permanecido por horas no mesmo corredor que o suspeito.

Na decisão, aplicou-se a jurisprudência da corte, pelo qual entende-se que as regras para o reconhecimento de pessoas são de observância obrigatória e não simples recomendações. Segundo o referido artigo, primeiramente é necessário que a vítima descreva as características do reconhecido. Posteriormente colocar-se-á o suspeito ao lado de outro com características semelhantes. Para o procedimento não ser eivado de vícios, deve-se garantir que a vítima não seja intimidada, vista pelo possível autor dos fatos.

Consigna-se que, apesar das orientações supramencionadas, o reconhecimento fotográfico não encontra respaldo em nosso ordenamento. O "álbum de suspeitos" presente nas delegacias não possui previsão legal, apesar de ser doutrinariamente aceito. Trata-se, portanto, de uma espécie inominada e informal com valor probatório confirmatório.

Sendo assim, esta decisão traz à baila a problemática do reconhecimento fotográficos pelo método "show-up", pelo qual é exibida uma fotografia e o questionamento se foi ou não o autor do delito. O efeito obtido por esse método é também conhecido por "efeito indutor", porquanto se estabelece um pré-juízo ao acusado. No caso em tela, a vítima levou à delegacia a informação, contudo, em sede policial, não ocorreu o procedimento de reconhecimento pessoal, somente fotográfico, como mencionado alhures. Isso porque ele estava detido por outros delitos, o que na prática não impossibilitaria sua condução à delegacia.

De outra sorte, formou-se convencimento de indícios de autoria e materialidade com base na narrativa e reconhecimento fotográfico. Todavia, não foi levado em consideração a contradição inicial: qual seja, fora informado que os suspeitos eram menores, e que não era possível reconhecer características pessoais para retrato. Tal atuação fere o processo penal garantista e busca por uma verdade processual válida.

Neste diapasão, destaca-se também o problema do reconhecimento como prova, há que se fazer um paralelismo da teoria do Etiquetamento e à Teoria das Falsas Memórias, estudadas na criminologia. Aquela trata de estabelecer e construir um perfil de criminoso com lastro em preconceitos e estereótipos; esta aborda a falibilidade da memória humana, acarretando erros de julgamentos. Neste caso, o suspeito estava detido por outro delito, ou seja, já estava no sistema penal, por óbvio que tal fato é capaz de induzir e contribuir para a formação de certeza da vítima. Afinal, ocorrendo um falso reconhecimento, não haveria prejuízo maior e, conforme pensamento popular: se já estava no sistema, por certo teria agido para tanto.

Há que se apontar também que a maioria dos reconhecidos por esse método possuem uma característica em comum: são negros. A Comissão Criminal do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais do Rio de Janeiro, em análise de casos com base em reconhecimento fotográfico, concluiu que 80% dos suspeitos eram negros. Uma outra pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, apontou que em cinco anos (2014-2019), 53 pessoas foram acusadas erroneamente com base em reconhecimento fotográfico.

O projeto Innocence Project, organização criada por defensores para buscar a reparação de erros judiciais, aponta que 75% das condenações indevidas, resultam de falho reconhecimento por parte de testemunhas e vítimas.

A criação de um regulamento específico para tal tipo de reconhecimento é de fundamental importância. Há que se capacitar os profissionais para a busca de uma verdade real, de uma verdade possível. Não é possível basear uma condenação em lastro probatório frágil, reconhecimentos tardios. Não há como ignorar o fator psicológico, o tempo exposto ao infrator, os sentimentos experimentados, a busca por uma resposta judicial a qualquer preço. A mentalidade punitivista mancha o devido processo legal, viola direitos fundamentais e, a despeito do pensamento popular, mais punição não traz mais segurança.

 

Paula Goulart

OAB/PR 114580

  • RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO; PROVAS; PROCESSO PENAL

Referências

Relatórios indicam prisões injustas após reconhecimento fotográfico. CONDEGE, 2021. Disponível em: http://condege.org.br/2021/04/19/relatorios-indicam-prisoes-injustas-apos-reconhecimento-fotografico/. Acesso em: 16, mar. de 2022.


Paula Goulart Ferreira

Advogado - Maringá, PR


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