A Lei nº 13.894/2019 e a facilitação de processos de divórcio e dissolução de união estável
Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo se você se aventurar
Começamos esse brevíssimo apontamento com a melodia de Douglas Germano, interpretada pela ilustríssima Elza Soares (1930-2022), símbolo do antirracismo, feminismo e misoginia antes destes temas serem objeto de debate. A artista sobreviveu a situações de extrema violência doméstica em dois relacionamentos, perdeu filhos para a fome quando ainda jovem e sua carreira foi marcada por canções de resistência e luta. A composição” Maria da Vila Matilde” é uma ode à liberdade, um fim a um relacionamento conturbado e violento.
O discurso poético presente na canção, ecoa as vozes cotidianas. A melodia desvela uma uma mulher que agora denuncia as violências perpetradas por seu convivente, rejeitando o papel da subserviência. A entonação da voz da cantora e as repetições das estrofes, marcam o aviso dado ao parceiro: “isso não mais se repetirá, caso volte, caso tente, sofrerá as consequências”. Na canção, também consta o aviso que caso a genitora dele ligue, irá “caprichar no esculacho”, narrando o comportamento mimado e mal acostumado do convivente.
Pois bem, mas o porquê de trazermos Elza, a Lei Maria da Penha e o processo de divórcio? Vejamos, o processo de retirar o agressor do lar, separação de corpos e o divórcio é resultado de árduas lutas e batalhas legislativas. Contudo, sabemos que a decisão do basta é somente o começo e não finda a intensa angústia que ainda poderá ser experimentada no processo. É contumaz o comportamento do parceiro em insistir na manutenção da relação valendo-se de artimanhas, agressões, ameaças e injúrias, dentre outras violências físicas e psicológicas. A morosidade do processo de desenlace conjugal pode se converter em mais um mecanismo de violência. Sabemos que qualquer tipo de ligação com o ex-parceiro abusivo, manter-se na mesma residência do agressor, carregar o sobrenome de seu algoz junto ao seu, não ter acesso ao patrimônio conquistado tem considerável potencial deletério.
Dessa sorte, a Lei 13.894/2019 que altera a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006), passa a assegurar à vítima de violência doméstica a possibilidade de não só pedir a medida protetiva, mas também a realização de divórcio ou dissolução de união estável perante os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O dispositivo em comento dispõe:
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher
A amplitude da competência para o julgamento, possibilita ao magistrado conhecer da situação de violência vivenciada. A novel alteração, prevê a competência absoluta cível e criminal da Vara de Violência Doméstica em ratione personae. Assim, trata-se de competência absoluta, como bem ilustra o artigo art. 53, inciso I, alínea d do Código de Processo Civil:
Art. 53. É competente o foro:
I - para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável:
(...) d) de domicílio da vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340 000, de 7 de agosto de 2006 ( Lei Maria da Penha).
Com igual disposição pela Lei 11.340/2006:
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado
I - do seu domicílio ou de sua residência;
Aponta-se que os tribunais superiores assim também já decidiram, no julgamento do RECURSO ESPECIAL Nº 1.496.030 - MT, o relator Ministro Marco Aurélio, deu provimento e reconheceu a competência da Segunda Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Cuiabá/MS para conhecer e julgar a ação de divórcio, distribuída por dependência aos autos da Medida Protetiva.
Neste diapasão, também é previsto a intervenção do Ministério Público em processos que envolvam vítimas de violência doméstica e a modificação do Código Fux, que passa a prever prioridade de tramitação nestes casos: Art. 1.048. Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais: III – em que figure como parte a vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 ( Lei Maria da Penha).
A importância desta alteração se justifica na morosidade do processo, nas violências processuais sofridas pela vítima, no distanciamento e construção de narrativas arbitrárias por parte do convivente/ex-convivente. A despeito das necessárias discussões sobre entendimento sobre partilha de bens e afins, a alteração é de suma importância para garantir o “Jamé, Mané”, também na esfera judicial. Para ter sua liberdade assegurada sua integridade física e psicológica. A caminhada de luta ainda é longa, árdua, mas do estigma de “desquitada”, das algemas jurídicas do casamento eterno, as mulheres estão cada vez mais desvencilhadas.