O mundo contemporâneo aplaudiu, com grande alegria e esperança, a queda de diversas ditaduras. Citemos nosso próprio exemplo: estivemos sob o jugo dos militares por aproximadamente duas (2) décadas. Consectário dessa modificação histórico-social, tivemos, via Constituição Federal, o reconhecimento das mais variadas prerrogativas sociais e humanas, as quais, aglutinadas, consubstanciam-se no que poderíamos chamar de liberdade. (CF/88 – art. 5°, caput).
Não fosse a distorção operada pelos próprios detentores do Poder Constituinte Originário – o povo – (CRFB/88 – art. 1°, § único), viveríamos numa sociedade de fato livre. Contudo, o que ocorre e raramente é ponderado, é que não vivemos em uma sociedade livre, mas sim libertina e licenciosa, o que é diverso de liberdade.
Valendo-me aqui das sábias considerações do eminente jurista Norberto Bóbio, em sua clássica obra A Era dos Direitos, façamos breve reflexão. ”As boas razões da tolerância não nos devem fazer esquecer que também a intolerância pode ter suas boas razões.” Nesta linha, é mais do que evidente que o ilustre pensador, com enorme propriedade teórica, mui bem descreve, apesar que de modo formalmente diferente, que até mesmo a sobredita liberdade encontra seu limites, freios e ponderações em algo superior, obstativo a exageros e descomedimentos.
Todavia, não raras vezes e envoltos por uma suposta liberdade blindada e que fora engendrada pós CRFB/88, as massas, num geral e cotidianamente, atribuem, a tudo e a todos que obstaculizam seus interesses, o título de despótico, tirânico e antidemocrático, ou seja, obstativo à dita liberdade, donde provém um de nossos maiores e mais silenciosos males, a perda de nossa identidade moral.
A fim de elucidar mais o que se propõe, citemos outro trecho de nosso pacto social, que em seu art. 3°, inc. I apregoa que: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade LIVRE, justa e solidária”. Ora, se a constituição, viga mestra de nosso ordenamento jurídico, elencou a liberdade como um dos objetivos de nosso Estado, é sinal de que algo não foi atingido, ou melhor, aperfeiçoado. Nesta senda, verdade é que, mesmo a liberdade, abstratamente considerada, carece de regulamentação e limitações, pelo que podemos concluir que, em se tratando de Brasil, há, factualmente e de forma lastimável, uma verdadeira licenciosidade, da qual derivam a perda de valores construídos ao longo da história pátria nos mais diferenciados estratos sociais, o que se percebe, exemplificativamente, na dificuldade de se implantar, concretamente, qualquer diploma legal que seja entregue à sociedade pelo Legislativo, pelos embaraços do Estado em atingir suas finalidades primárias e secundárias e, principalmente, pela indiscriminada tolerância em sentido negativo, a qual reside dentre do subconsciente de boa parte de nossos concidadãos, tolerância esta no sentido de deixar as “coisas” como estão, de não protestar, de não se indignar, em fim, de não refletir ou pensar, o que é pior.
Portanto, devemos reconhecer que, para a além das faculdades de, por exemplo, votar e ser votados, ir e vir, dentre outras, a liberdade consubstancia-se em algo mais abstrato e relevante, podendo ser considerada o núcleo de toda a organização social, pois se eu parto do pressuposto de que meus direitos vão até onde iniciam os de terceiro, seja ele um indivíduo ou mesmo uma grande corporação, estabeleço os limites de minha atuação, devendo ser, nesta análise, considerado válido e legítimo tudo e tão somente o que estiver contido dentro dessa pré-concebida circunscrição, ou seja, dentro de minha zona de liberdade.
Concluindo, e não é demais repetir, a liberdade, em sua essência e não da forma distorcida e desvirtuada com que é tratada, afigura-se como o ponto de acoplamento e organização das partes componentes do corpo social, sendo seu cumprimento impreterível ao bem estar dos indivíduos e manutenção da organização e evolução do Estado moderno. Assim, o fato é que, liberdade não é uma total desconsideração quanto a todas as regras existentes, mas sim a vida dentro dos limites das mesmas, realizando nossos anseios sem, contudo, lesar terceiros, a coisa pública, o ordenamento jurídico, enfim, os valores coletivamente construídos ao longo de nosso progresso histórico, pelo que a sociedade brasileira deve, com diligência e cautela, reavaliar seus conceitos e valores do que vem a ser de fato “liberdade”.