Violência contra a mulher e saúde pública


08/02/2018 às 12h14
Por Leonellea Pereira

 

A violência doméstica é exercida contra as mulheres no âmbito das relações de privacidade e intimidade de cunho familiar ou de convivência amorosa, e por ser expressão da complexa desigualdade nessas relações de poder, deve ser abordada de forma dinâmica e relacional. O tema levanta questões que se comunicam com todas as áreas do conhecimento, por seu caráter transversal a todas as dimensões da experiência de viver em sociedade.

 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) têm reconhecido a violência contra a mulher como um problema de saúde pública desde 1990 entendendo-a como um fenômeno que traz prejuízos nas esferas individuais e das coletividades em todo o mundo. A OMS relaciona, ainda, a violência à maior ocorrência de inúmeros agravos à saúde física, reprodutiva e mental, assim como ao maior uso de serviços de saúde por parte das mulheres. No Brasil, desde 2004, a violência contra a mulher é notificada compulsoriamente ao SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação).

 

A violência praticada contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar não se constitui uma demanda imediata para os serviços de saúde. As exceções apresentam-se quando a violência toma um caráter mais grave e a busca pelo serviço de saúde é inevitável (ex:quando há um ferimento por arma de fogo, arma branca e outras situações de emergência). Portanto, o setor de saúde tem se preocupado, na maioria das vezes, em realizar apenas ações de reparação e reabilitação, pouco intervindo para o rompimento com a situação que provocou danos à saúde, ou mesmo encaminhá-la para um serviço que possa fazê-lo adequadamente.

 

É comum que mulheres em situação de violência doméstica procurem os serviços por causas alheias ou secundárias à situação de violência. A pesquisadora americana Lenore E. Walker desenvolveu uma teoria explicativa sobre os ciclos de violência chamada “Síndrome da Mulher Espancada”, que tem como principal característica o aumento dos sintomas clínicos através de queixas vagas e repetitivas, que muitas vezes leva a mulher a buscar o serviço de saúde, porém, dada a circunstância das queixas, ela alcança pouca ou nenhuma resolutividade. Esta síndrome se apresenta na mulher que tenha passado por pelo menos dois ciclos completos de espancamento. É identificada quando há a recorrência cíclica dos seguintes acontecimentos: Fase I ou acumulação de tensão: predomínio da violência psicológica; Fase II ou explosão: exacerbação da violência psicológica e fortes atos de violência física; e Fase III ou Lua-de-mel: arrependimento do autor da violência e convencimento da mulher de que ele é capaz de se controlar e que não haverá reincidência.

 

As principais deficiências no enfrentamento à violência são oriundas de uma formação acadêmica pautada no paradigma positivista, que não dá abertura para um novo pensar e agir em saúde. É preciso se desprender de ações de caráter apenas medicalizador, que ignora aspectos imprescindíveis ao combate à violência e corroboram com sua naturalização e invisibilidade. Muitas vezes, com uma compreensão inadequada da dinâmica das relações de gênero, o profissional culpabiliza a mulher pela violência sofrida, incluindo assim a violência institucional no ciclo da violência interpessoal.

 

Considerando os serviços de saúde, principalmente no que tange à atenção básica, as Unidades Básicas de Saúde da Família (que trabalham com ações de prevenção, promoção e educação em saúde com grande cobertura populacional) poderiam funcionar como locais privilegiados para o acolhimento e identificação precoce de mulheres em situação de violência.

 

Estima-se que até 3,3% do produto interno bruto brasileiro é gasto em decorrência da violência doméstica, seja em dispêndios diretos ou indiretos e, a nível hospitalar, gera cerca de 8% dos custos totais. Mundialmente, cerca de 7% de todas as mortes de mulheres com idades de 15 a 44 anos tem sua causa pautada neste tipo de violência (GOMES, et al, 2012).

 

Só a partir de uma ação contínua e bem articulada, com atuação multiprofissional em saúde e no campo da defesa dos direitos das mulheres, é que será possível superar todos estes entraves, tornando possível o que garante o art; 2º da Lei Maria da Penha: Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

 

 

  • violência contra a mulher
  • saúde pública
  • lei maria da penha
  • organização mundial de saúde

Referências

* Originalmente publicado na Revista Meio (impresso),  p. 32, dez.2016/jan.2017.


Leonellea Pereira

Advogado - Irecê, BA


Comentários