O assunto do momento é fake news, provavelmente o maior desafio da Justiça Eleitoral para as eleições de 2018. Significa literalmente “notícia(s) falsa(s)” e pode ser usada em qualquer tipo de atividade humana, mas avulta de importância no âmbito do processo eleitoral, dentre outras áreas, obviamente, porque, em última análise, pode afetar a legitimidade da eleição, por denegrir ilegalmente a imagem e a honra de algum candidato, ou, por outro lado, alavancar indevidamente a carreira ou a campanha de algum de seus concorrentes.
A expressão (inglesa) é relativamente nova, mas antiga é sua prática, como é o caso do conhecido trote, ou mesmo, o boato infundado. Talvez tão antiga quanto a história da humanidade, pelo menos no aspecto da conquista da fala pelo homem e de outras formas de expressão, no Brasil a mentira já se encontra institucionalizada, tendo até data reservada no calendário: 1º de abril – dia da mentira.
Mas a mentira de que trata este artigo é a que não se desmascara com um simples argumento lógico. Não é aquela que, por ser “inocente” e mal estruturada, acaba por revelar sua fragilidade e inconsistência, como no caso das “historinhas” de 1º de abril. O caso em questão é muito diferente e é grave, porque envolve inescrupulosa estratégia de convencimento (marketing político), além de outros instrumentos nada pueris, sendo assunto de gente grande, com grandes propósitos, apesar de pérfidos e maquiavélicos.
Nos dias atuais a veiculação de fatos que não correspondem à realidade ganhou relevância ímpar em decorrência do aparato tecnológico que qualquer pessoa tem disponível em suas mãos, neste mundo globalizado de múltiplas formas de tecnologia da informação. Ou seja, há uma profusão de formas de divulgação de qualquer tipo de informação, não estando a fonte restrita, com no passado, a alguns poucos veículos formais de comunicação (hoje toda pessoa pode fazer ecoar sua opinião sobre tudo que desejar jogar na rede mundial de computadores), com alcance mundial. E tudo isso on-line, o que significa dizer que qualquer pessoa no mundo pode ter acesso imediato.
Celeridade, amplitude de alcance, facilidade de propagação, dificuldade de descobrir a fonte inicial estão entre as características perigosas desta que pode ser a ferramenta para decidir uma eleição, por exemplo, e é isso que preocupa.
Digno de nota é o prejuízo que algumas notícias infundadas já causaram a pessoas públicas ou a instituições no Brasil, a exemplo daquela que informava que a ex-presidente Dilma Rousseff teria tentado o suicídio ao se ver encurralada pelo impeachment, dentre outras tantas de semelhante conteúdo. Recentemente uma notícia falsa circulou nas redes sociais informando que os que não fizessem a atualização de dados biométricos na Justiça Eleitoral teriam cancelado seu registro no CPF e pagariam multa de R$ 150,00, o que deixou muitos eleitores alarmados. Não era verdade.
O problema não é somente a mentira em si, pois se fosse isso, bastaria esperar o tempo de seu desmascaramento, haja vista que “mentira tem pernas curtas”, conforme dito popular.
O mal maior nesta era da informação está em que, conforme já mencionado, hoje a mentira tem pernas longas (e turbinadas) e um aparelho reprodutor muito eficiente, pois alcança distâncias impensáveis, de forma muito rápida, propagando-se literal e virtualmente à velocidade da luz, mediante mecanismos robóticos.
Ou seja, a era digital incrementou de forma absurda o caráter prejudicial das notícias sensacionalistas e falsas, porque não é difícil colocar programas robôs (também chamados bots) para replicar ao infinito informações, dados, notícias etc, o que acaba por gerar, no mínimo, dúvida em quem lê, porque passam a existir muitas fontes que reiteradamente veiculam o mesmo conteúdo, além da contribuição que algumas pessoas dão ao replicarem de forma descompromissada com a verdade aquilo que recebem pelas redes sociais, como acontece diariamente com as várias mensagens (áudios, fotos ou vídeos) que recebem via WhatsApp, e sem analisar a procedência e veracidade do conteúdo, passam para os seus contatos. Pode ser que, sem terem a intenção de prejudicar, estejam disseminando fofoca, matéria infundada e coisas do gênero.
Em muitos casos o objetivo dessas falsas informações/notícias sensacionalistas é o lucro gerado por cada clique dado à matéria. Em outras situações, como no exemplo que nos interessar abordar, pode haver interesse político em aumentar ou diminuir a popularidade de algum candidato.
Não restrito somente ao nosso país, a fake news, ganhou relevância em eleições nos EUA e em países da Europa, especialmente nos últimos 2 (dois) anos, tendo o FBI suspeita de que hackers situados na Rússia teriam participado (e influenciado) de alguma forma (virtual) dos debates eleitorais que, como se sabe, culminaram com a eleição de Donald Trump (Tomara que essa informação não seja, ao final, mais uma fake news!).
Vale destacar, ainda que de maneira superficial, que este tipo de comportamento via redes sociais pode ser muito prejudicial, ao final de contas, para a sobrevivência da própria democracia, eis que os algoritmos desses softwares utilizados por algumas dessas empresas procuram controlar cuidadosamente o tipo de informações que são do interesse do usuário, “memorizando" os sites mais acessados, fazendo o que se denomina de pré-seleção do que habitualmente é acessado e também o que se chama de viés de confirmação (definido como a tendência dos usuários procurarem na rede apenas blogs e sites que compartilhem de suas ideias e do seu entendimento acerca das coisas). Esses filtros-bolha (filter bubbles[1]) podem restringir gradativa e perigosamente o campo de conhecimento das pessoas, isolando-as social e intelectualmente em seu próprio universo de interesses, provocando-lhes um indesejado estreitamento cognitivo.
E pior do que limitar o conhecimento, é fazê-lo com base em falsas premissas, falsos fatos. Mas isso é assunto para a psicologia e sociologia. Voltemos às notícias falsas no âmbito do mundo das eleições.
Segundo pesquisas[2], 87,7% da população brasileira é composta por usuários assíduos das redes sociais, sendo cerca de 139 milhões, por exemplo, com conta (perfil) no Facebook. No âmbito da Universidade de São Paulo dados apontam que mais de 12 milhões[3] de perfis on-line compartilharam regularmente notícias falsas nas redes sociais Brasil afora.
É atual, portanto, a preocupação da Justiça Eleitoral, relativamente a fake news, no tocante à efetividade das regras para fiscalizar e, na medida do possível, controlar o que é veiculado na propaganda eleitoral na internet, com o objetivo de assegurar igualdade de condições aos futuros candidatos em campanha.
O tema é espinhoso e delicado, porque alcança de forma direta a garantia constitucional da liberdade de expressão. Portanto, são dois valores de natureza constitucional que estão em jogo. Nas palavras da estudiosa de Direito Eleitoral, Eneida Desiree Salgado[4], “o princípio constitucional da máxima igualdade entre os candidatos alcança o âmago de um valor central de um regime democrático: a liberdade de expressão”.
Por seu turno, tramitam nas Casas do Congresso Nacional alguns projetos de lei que pretendem criminalizar as condutas de compartilhar notícias falsas ou prejudicialmente incompletas em redes sociais[5].
Vale destacar, neste aspecto, que já existe em nosso ordenamento jurídico eleitoral a previsão de crime por veiculação na propaganda eleitoral de fato que se sabe inverídico, relativamente a candidatos e partidos políticos. É o que estabelece o art. 323 do Código Eleitoral, que tem a seguinte redação, e que, diga-se de passagem, não se reporta especificamente à internet:
Art. 323. Divulgar, na propaganda, fatos que sabe inverídicos, em relação a partidos ou candidatos e capazes de exercerem influência perante o eleitorado:
Pena – detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.
A pergunta que se mostra atual e oportuna é se, a despeito dessa previsão legal, em face das novas e insidiosas formas de ataques a candidatos mediante os ilimitados recursos das mídias sociais, há necessidade de se criar mais um tipo penal.
O notável eleitoralista Fernando Gaspar Neisser possui excelente obra em que aborda aspectos importantes e pertinentes acerca desta temática[6], aprofundando as análises históricas e sociais de todo o contexto em que inserida a referida norma penal, no bojo dos princípios constitucionais aplicáveis à espécie, por incidência dos institutos e princípios do Direito Penal, como fragmentariedade, subsidiariedade, lesividade, intervenção mínima, para, ao final, concluir “ser oportuna a descriminalização da conduta prevista no artigo 323 do Código Eleitoral”, até porque, “punir a falsidade importa, necessariamente, conhecer a verdade”, o que, segundo o autor, não se mostra tarefa que se possa realizar.
Perpassando razões filosóficas, aponta Neisser que “não se trata de saber se o Direito Penal pode aferir a verdade quanto ao cometimento de um crime, mas se esta ciência detém capacidade de apreciar a verdade ou falsidade quando esta é elemento típico do delito”[7].
De fato, não se mostra razoável imaginar que se possa aferir o elemento cognitivo (notícia que sabe ser inverídica) da pessoa, no exato momento em que a veicula no âmbito da propaganda eleitoral.
Logo, se não há como aferir o momento em que aquele que divulga notícia falsa sabia que de sua condição de falsidade, não há o elemento volitivo do tipo penal previsto no art. 323 do Código Eleitoral, ou seja, não se pode concluir que tenha agido de acordo com seu entendimento, com a consciência de que aquilo era falso, portanto, não se pode dizer que tenha agido com a premeditada intenção de violar a norma penal.
De toda forma, o problema existe, é atual, e incomoda. Afinal, que legitimidade terá o eleito se a convicção do eleitor que o escolheu para representá-lo tiver sido falseada por notícias não verdadeiras?
No momento histórico porque passamos, diminuir mais ainda a legitimidade e a credibilidade de nosso já absolutamente desacreditado quadro político, para muitos seria, na prática, “chover no molhado”, mas temos de manter hígido o sistema, acreditar que um dia este panorama irá melhorar, hipótese em que os políticos voltarão a representar e defender o interesse público.
Talvez a melhor saída seja a tomada de consciência política do eleitor, para que não se deixe iludir por falsas notícias, ao contrario do que acontece há anos, em que se deixa enganar por falsas promessas, pelo benefício pessoal fácil em troca do voto (que constitui crime de corrupção eleitoral), pelo falso político, que somente representa seus próprios interesses.
Enfim, a opção pela criação de um novo crime, não parece ser a solução apropriada, pois o Direito Penal deve ser o último recurso para reprimir algum ato ilícito, quando todos os demais ramos do Direito tenham falhado ou se mostrem inadequados à repressão.
É absolutamente imprescindível que o povo-eleitor saiba que todos, sem exceção, do bebê ao idoso, estamos submetidos às decisões políticas, desde o preço da passagem do ônibus ao do litro da álcool/gasolina, da tarifa de energia elétrica (que sobe bem mais que o enorme aumento do salário mínimo), tudo, enfim, pertence ao mundo da política. Portanto, para que a vida mude para melhor, temos que eleger políticos melhores.
A tomada de consciência cidadã deve começar pelo esforço de cada um de nós na tarefa de esclarecimento dos menos instruídos formalmente, até porque a escola (pública e de qualidade) que lhes falta, apesar de ser direito de todos, passa também pelas decisões da classe política.
Por isso, o pior analfabeto é o analfabeto político[8](texto atribuído a Bertolt Brecht), por não ter consciência de que 100% de sua vida, do berço ao túmulo, está abarcado por decisões políticas.
Gisele Nascimento, Advogada em Mato Grosso, especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor. Membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB/MT.
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