Resumo: Utilizando como base pesquisas bibliográficas, sobre a doutrina e os princípios fundamentais da ciência jurídica, este artigo propõe uma análise cuidadosa acerca das limitações em que o Poder Constituinte Originário está vinculado. De forma bastante didática, questiona-se a supremacia do direito positivo sobre o natural, onde a conclusão mostra que este é, na verdade, a base daquele e, por isso, o subordina. Também são apresentadas regras de direito internacional, consagradas de validade supralegal e inderrogáveis. Por esse motivo, conclui-se que o caráter ilimitado e incondicionado da manifestação constitucional originária se dá apenas de maneira relativa, no tocante às próprias normas positivas, estando o Poder Constituinte Originário limitado por, pelo menos, duas esferas: o Direito Natural e o Direito Internacional.[1]
Palavras-chave: Constituição. Juspositivismo. Jusnaturalismo. Limitações.
Abstract: Based on bibliographic researches, about the main principles of juridical sciences, this article comes up with a cautious review about the limitations in what the original constitutional force are attached with. In a didactically whay, the positive law sovereignty over natural law is questioned. The conclusion shows that, actually, the first one is based on the last one. International law concepts are also shown, wich possesses supralegal and non-derrogable character. For this reason, the deduction shows that this unlimited character is only shown up on written law, and proposing that the originary constitutional force is limited, at least, by two spheres: the natural principles and the international law.
Keywords: Constitution. Positive Law. Natural Law. Limitation.
Sumário: Introdução. 1. Teoria Kelseniana da Norma Fundamental. 2. Breve síntese sobre o Direito Constitucional. 2.1. Constitucionalismo. 3. O Poder Constituinte. 3.1. O Poder Constituinte Originário. 4. Disposições contrárias ao caráter ilimitado do Poder Constituinte Originário. Considerações finais. Referências.
Introdução
Com base na interminável discussão sobre a existência de uma manifestação constitucional desvinculada de qualquer limitação, seja material ou formal, seja positiva ou natural, este artigo traz como objetivo principal uma análise, com base na doutrina especializada e nos princípios fundamentais do Direito, da problemática abordada: o Poder Constituinte é, de fato, incondicionado e ilimitado?
A relevância de tal questionamento é facilmente compreendida: sendo ilimitado o Poder Constituinte, qualquer Estado poderia consagrar políticas internas autoritárias, violando direitos humanos e garantias naturalistas indispensável, poderia justificar suas ações pela escusa da previsão legal, condicionando seu povo a situações de calamidade, bastante comuns durante os séculos XIX e XX. Por tais motivos, é indispensável uma análise metódica e cuidadosa sobre as características essências de uma nova ordem constitucional.
1. Teoria kelseniana da norma fundamental
Para um aprofundado conhecimento acerca do que é e quais são os princípios de uma norma constitucional, é necessário, primeiramente, compreender certas lições primordiais acerca do Direito em si. Em “Teoria Pura do Direito”, o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen questiona os motivos que proporcionariam o fundamento de validade de uma norma:
“O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? E esta questão está intimamente relacionada com esta outra: Por que é que uma norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de validade? Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo “vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. (1999, p. 135)”
Complementando seu raciocínio (p. 136), o autor então define que o fundamento dessa unidade de normas se dá pelo surgimento de uma norma fundamental que “(...) é a fonte comum de validade de todas as normas pertencentes a uma mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum”. Em outra oportunidade (p. 139), sintetiza que “uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo (...), mas porque é criada por uma forma determinada - em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta”.
A partir da conceituação sobre o que seria essa norma fundamental, que daria validade a todas as outras, Kelsen propõe que a ordem jurídica não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, mas sim uma construção escalonada de diferentes níveis de normas jurídicas (p. 155). No topo desta, servindo como fundamento essencial de validade e poder soberano às demais, encontra-se a Constituição.
Com base nesse entendimento, a fundamentação teórica do poder soberano de uma norma sobre as demais é justificada pela ótica positivista. Um ordenamento jurídico precisa, além de disposições naturalistas, de uma própria base positiva, onde a validade e efetividade das demais normas - subsequentes ou anteriores, quando se enquadram – poderá ser averiguada por meio de uma hierarquia contemplada.
A teoria escalonada apresenta utilidade, também, no tocante à resolução de conflitos entre normas jurídicas contraditórias. É possível que duas normas infraconstitucionais, que não contrariem a Norma Superior, possuam redações contraditórias entre si, ocasionando um problema: qual delas deverá ser obedecida? Nesse sentido, é correto o entendimento de que a hierarquicamente superior se sobreporia à inferior, deixando-a sem eficácia.
2. Breve síntese sobre o Direito Constitucional
Com a enorme influência que a definição escalonada de Kelsen afeta o direito contemporâneo, surge, a necessidade de um estudo sobre a tal norma básica e fundamental, que daria validade a todos os demais institutos jurídicos.
Aumenta-se o foco, então, sobre o Direito Constitucional, que é definido por Paulo Gustavo Gonet Branco (2014), como “o ramo do estudo jurídico dedicado à estrutura básica do ordenamento normativo”. Em posição similar, Jorge Miranda (1990) sintetiza-o como a parcela do ordenamento jurídico que rege o Estado enquanto comunidade e poder.
De fato, o Direito Constitucional deve ser entendido como uma força que, mais do que o ordenamento jurídico, rege também – e principalmente – a formulação e organização do Estado em que está inserido. Tal concepção foi consagrada pela Constituição Federal Brasileira de 1988, que dispõe, dentre suas subdivisões, os títulos de Organização do Estado e dos Poderes, além da Ordem Social e dos Direitos Fundamentais.
2.1 Constitucionalismo
Apesar da teoria do escalonamento normativo datar do século 19, a origem do constitucionalismo é bem anterior. As primeiras constituições rígidas e escritas conhecidas datam de 1787, nos Estados Unidos da América, e 1791, com o advento da Revolução Francesa. Ainda assim, manuscritos coloniais do século XVII já imprimiam normas e princípios básicos a serem seguidos.
O constitucionalismo tem por objeto a construção política, estrutural e organizacional do Estado, além de propor a aquisição e limitação de poderes por parte do ente soberano e proporcionar a previsão de direitos e garantias fundamentais a seu povo (MORAES, p. 1)
Como demonstrado, a ideia de constitucionalismo existe, justamente, para dar o amparo jurídico necessário à consagração de ideais propostos por um Estado, garantindo segurança nestas aplicações. É imprescindível para a consagração de uma forma de Estado e regime de governo, por exemplo, que um mecanismo jurídico rígido lhe dê sustentação.
3. O Poder Constituinte
Com a função de instaurar, prover validade e modificar a norma jurídica soberana, o Poder Constituinte emana do povo, que também detém sua titularidade. Esse entendimento histórico foi consagrado em nosso ordenamento pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único.
De maneira geral, conforme aponta Pedro Lenza (2010, p. 153), o Poder Constituinte é subdividido em quatro ramificações distintas, tanto conceitualmente, como em aplicação prática: poder constituinte originário, derivado, difuso e supranacional. O foco principal deste artigo ficará com o primeiro, que também possui dois outros subgrupos: o histórico e o revolucionário.
3.1. O Poder Constituinte Originário
Conforme explica Paulo Gustavo Gonet Branco, em exemplar lição, o poder constituinte originário nada mais é do que uma força política capaz de sustentar a autoridade máxima do texto constitucional. Desvencilhando-se das superadas normas constitucionais anteriores, ou sendo o real poder pioneiro, possui a tarefa de instaurar uma nova concepção jurídica em determinada sociedade, não sendo subordinado – em teoria – a nenhuma outra norma vigente.
Ainda sobre sua conceituação e objetivo, dispõe Pedro Lenza (2010) que o poder constituinte originário “é aquele que instaura uma nova ordem jurídica, rompendo por completo com a ordem jurídica precedente (...). O objetivo fundamental do poder constituinte originário, portanto, é criar um novo Estado, diverso do que vigorava em decorrência da manifestação do poder constituinte precedente”.
O poder constituinte originário subdivide-se em duas classificações: histórico e revolucionário. Neste ponto, define-se como histórica aquela verdadeira força política original, pioneira, que propõe a primeira estruturação do Estado, enquanto revolucionárias seriam todas as outras manifestações originárias subsequentes, que rompem com a primeira e promovem modificações naquele Estado. Esse é o entendimento majoritário na doutrina, explicitado por Lenza, que define:
“O poder constituinte originário pode ser subdividido em histórico e revolucionário. Histórico seria o verdadeiro poder constituinte originário, estruturando, pela primeira vez, o Estado. Revolucionários seriam todos os posteriores ao histórico, rompendo por completo com a antiga ordem e instaurando uma nova ordem, um novo Estado. (2010, p. 154).”
Em geral, entende-se que o poder constituinte originário se expressa, em regra, de duas maneiras: por promulgação, pela instituição de uma Assembleia Nacional Constituinte, na maioria dos casos; ou por outorga, a partir de um ato revolucionário unilateral e não democrático. Tal entendimento é corroborado por Alexandre de Moraes (2014, p. 26), Gonet Branco (2014, p. 107) e Lenza (2010, p. 156). O Brasil já proporcionou as duas possibilidades, tendo na Constituição Brasileira de 1967 e na Constituição Federal de 1988 os mais recentes exemplares de outorga e promulgação, respectivamente.
No tocante às características básicas, Lenza (p. 154-155) enumera quatro como principais, sendo elas: a) é um poder inicial, já que instaura uma nova ordem jurídica; b) autônomo, pois a estruturação do novo Estado será determinada autonomamente por quem exerce o poder; c) ilimitado, no sentido de não obedecer a limites anteriormente impostos; d) incondicionado, por não se submeter a nenhuma outra forma de manifestação já existente.
Os pontos de maior discordância, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência e nas próprias discussões políticas, se dão exatamente nestas duas últimas qualidades essências do poder originário, tendo a corrente positivista adotado a ideia de completa insubordinação deste aos conceitos de direitos humanos fundamentais, a moral e ao direito natural, enquanto os naturalistas primam pela inferioridade da lei escrita sobre esses.
4. Disposições contrárias ao caráter ilimitado do Poder Constituinte Originário
De fato, não há como prosseguir no entendimento de que o poder originário é completamente desvinculado de qualquer limitação. Uma vez definido como mecanismo de exercício de poder por parte do povo, não seria razoável a manifestação de uma força constitucional que lesasse a condição humana deste. Logo, pressupõe-se que o direito positivo está, sim, vinculado a princípios gerais do direito natural, sendo este a base daquele. Dispõe o professor Meirelles Teixeira (2011), acerca deste entendimento, que:
“(...) tanto quanto a soberania nacional, da qual é apenas expressão máxima e primeira, está o Poder Constituinte limitado pelos grandes princípios do bem comum, do Direito Natural, da moral e da razão. Todos estes grandes princípios, estas exigências ideais, que não são jurídico-positivas, devem ser respeitadas pelo Poder Constituinte, para que este não se exerça ilegalmente. (TEIXEIRA, p. 213)”
A ideia de direito natural como fundamento básico da lei positiva foi consolidada por Viktor Catherin, conceituado expoente da concepção tomista do jusnaturalismo. Ao fazer um contraponto com a proposta idealista de direito natural, defendida por Hugo Grócio e os demais naturalistas do século XVIII, o autor propõe um ponto de vista onde o direito natural “(...) não constitui simplesmente um preenchedor de possíveis lacunas do direito positivo, porque é antes a base indispensável, ou seja, o terreno sobre o qual repousa e do qual provém todo o direito positivo” (REALE apud CATHERIN, 1996, p. 484).
Ainda nesse sentido, é também imprescindível a lição de Aristóteles, representada por Norbeto Bobbio: “o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto.” (BOBBIO, 1999, p. 17). Por esse entendimento, o caráter geral do Direito Natural se mostra mais sólido, em contraste à razoável flexibilidade que dispõe o Direito Positivo.
Também não é coerente especular que uma ordem normativa infrinja princípios consagrados no direito internacional, como a observância e consagração dos direitos humanos e os mecanismos supralegais que formam os princípios e o conceito da justiça. Em entendimento inequívoco, Canotilho (1993, p. 81) dispõe que “o poder constituinte é estruturado e obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como vontade do povo”.
Nesse sentido, Kildare Gonçalves Carvalho (2008, p. 253), citando o renomado português Jorge Miranda, propõe a classificação de tais limites supranacionais como heterônomos. Nesse caso, seguiram o princípio do direito cogente, consagrado pela Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, de 1969, onde tais normas internacionais teriam caráter imperativo, sendo aceitas e reconhecidas integralmente pela comunidade internacional, possuindo condição de inderrogáveis. A Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pela ONU, em 1948, é um reconhecido expoente do jus cogens, tratado aqui.
Considerações finais
Com base nas informações obtidas, fica claro que o Poder Constituinte Originário não pode ser considerado completamente ilimitado e incondicionado. Tais condições operam de maneira relativa; uma manifestação originária de força constitucional possui, sim, autonomia para reger suas bases, mas o caráter ilimitado e incondicional funciona apenas na esfera positiva do ordenamento jurídico.
Tais normas escritas estão condicionadas à, pelo menos, duas esferas diferentes: as normas de Direito Natural e o princípio do direito cogente, deflagrado pelas normas de Direito Internacional. Desse modo, não há o que falar em Poder Constituinte ilimitado, sendo tal concepção ultrapassada e considerada inconsistente pela doutrina majoritária.
Referências
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BRANCO, P.G.G. Noções introdutórias. In: MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 37.
BRANCO, P.G.G. Poder constituinte. In: MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 103-104.
BRANCO, P.G.G. Poder constituinte. In: MENDES, G. F.; BRANCO, P. G. G. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 103-107.
CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 81.
CARVALHO, K. G. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 14 ed. Minas Gerais: Del Rey, 2008. p. 253.
KELSEN, H. Teoria Pura do Direito (tradução: João Baptista Machado). 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1990. P. 13-14
MORAES, A. Direito Constitucional. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p 1.
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REALE, M. Filosofia do Direito. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 484.
TEIXEIRA, J. H. M. Curso de direito constitucional. 2 ed. Porto Alegre: Conceito, 2011. p. 213.