As obrigações de dar coisa incerta e seu regimento no ordenamento jurídico brasileiro


28/06/2016 às 08h30
Por Caio Alexandre Guimarães Garcia

Resumo: Este artigo, partindo de análises metódicas e pesquisas bibliográficas, propõe elucidar um tema que gera grandes discussões no meio jurídico: as características primordiais e aplicações práticas que as obrigações de dar coisa incerta - modalidade de obrigação oriunda das obrigações dar, previstas pelo Título I do Livro I da parte especial do código civil brasileiro - apresentam.

Os entendimentos abordados incluem conceituações preliminares acerca do tema, essenciais para a abordagem subsequente de tópicos mais específicos, além de elucidar os elementos essenciais da modalidade (indicação de, ao menos, gênero e quantidade), das possibilidades e sujeitos capazes de realizar a escolha do objeto e o princípio regente daquelas.

Palavras-chave: Obrigação. Incerta. Gênero. Quantidade. Regimento.

Sumário. Introdução. 1. Entendimentos preliminares. 1.1. Indicação do gênero e da quantidade. 1.2. Escolha. 2. Princípio do “genus nunquam perit”. 2.1. Exceções. Considerações finais.

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no que concerne às relações jurídicas bilaterais, traz uma vasta possibilidade de organização de relações obrigacionais.

Como objeto principal de análise deste artigo, as obrigações de dar coisa incerta possuem características peculiares e necessárias, diferenciando-se das demais modalidades de obrigações jurídicas, tais como seus elementos constitutivos e, principalmente, seu objeto.

Tais obrigações possuem regras próprias, como o direito de escolha, baseado no princípio do meio-termo, e a impossibilidade de alegação de perda da coisa, por parte do devedor, antes da determinação da prestação, pelo princípio do “gênero nunca perece”.

Com base em tantas peculiaridades, um estudo aprofundado acerca da matéria e mostra indispensável para o desenvolvimento das ciências jurídicas e uma melhor compreensão das vastas possibilidades de negócio jurídico, previstas por nosso ordenamento.

1. ENTENDIMENTOS PRELIMINARES

O artigo 243 do Código Civil brasileiro assegura que: “a coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade”. A expressão “coisa incerta” indica que a obrigação possui como objeto coisa indeterminada, mas apenas parcialmente, devendo ser indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade. Silvio de Salvo Venosa (2011), professor, escritor e membro da Academia Paulista de Magistrados, em exemplar lição, dispõe que

A incerteza não significa propriamente uma indeterminação, mas uma determinação genericamente feita. São obrigações de dar coisa incerta: entregar uma tonelada de trigo, um milhão de reais ou cem grosas de lápis. A coisa é indicada tão somente pelos caracteres gerais, por seu gênero. O que a lei pretende dizer ao referir-se à coisa incerta é fazer referência a coisa indeterminada, mas suscetível de oportuna determinação (Código Civil Interpretado, 2 ed., p. 327).

A coisa é, portanto, indeterminada, mas determinável. Falta apenas determinar sua qualidade, sendo indispensável, portanto, nas obrigações de dar coisa incerta, a indicação. Se faltar também o gênero, ou a quantidade, a indeterminação será absoluta, e o acordo, com tal objeto, não gerará obrigação.

Não pode ser objeto de prestação, por exemplo, “entregar sacas de soja”, por faltar a quantidade, bem como a de “entregar dez sacas”, por faltar o gênero, mas constitui obrigação de dar coisa incerta a de entregar dez (quantidade) sacas de soja (gênero), porque o objeto é indicado pelos requisitos necessários. Tal entendimento é consagrado por Washington de Barros Monteiro, ao citar que “coisa não determinada, nem determinável, não pode ser objeto de obrigação” (MONTEIRO apud CLÓVIS, 2014, p. 103)

A principal característica dessa modalidade de obrigação reside no fato de o objeto - ou conteúdo da prestação - indicado genericamente no começo da relação, vir a ser determinado por um ato de escolha, no momento do pagamento.

Portanto, coisa incerta não é coisa totalmente indeterminada e, ainda, não é qualquer coisa, mas algo parcialmente determinado, suscetível de completa determinação oportunamente, mediante a escolha da qualidade ainda não indicada. A definição a respeito do objeto da prestação, que se faz pelo ato de escolha passa a se chamar concentração depois da referida definição, e compete ao devedor a escolha, se outra coisa não se estipulou.

1.1. INDICAÇÃO DO GÊNERO E DA QUANTIDADE

Indicação, ao menos do gênero e quantidade, é o mínimo necessário para que exista obrigação. Existindo definição quanto a essas, a obrigação é útil e eficaz, sendo satisfeita com a determinação da qualidade da coisa incerta, que deverá, em princípio, ser intermediária.

Segundo Washington de Barros Monteiro (2014), pode-se definir gênero como sendo “um conjunto de seres semelhantes”. A doutrina, em grande parte, considera incorreto o substantivo “gênero”, por ser designar entendimento mais amplo do que o pretendido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, o projeto de lei número 276/2007 propunha a troca do termo, nos artigos 243 e 244 do Código Civil, por “espécie”. A determinação genérica, conforme nova lição de Maria Helena Diniz,

(...) deve vir necessariamente acompanhada pela determinação numérica, que constituem o mínimo de notas essenciais para que se especifique seu objeto, segundo critérios correntes no comércio jurídico, pois só assim a obrigação genérica poder-se-á dizer válida; logo, se alguém prometer dar livros sem precisar a quantidade, nada prometeu. (Curso de Direito Civil Brasileiro. 2009. p. 83)

De tal modo, apesar da lei não dispor a respeito do tema, as indicações de gênero e quantidade devem ser concomitantes. Não sendo, a obrigação indeterminada pode ser entendida como viciada, por falta de indicação de um de seus requisitos fundamentais.

1.2. A ESCOLHA

A determinação da qualidade da coisa incerta perfaz-se pela escolha. Feita esta, e cientificado o credor, acaba a incerteza, e a coisa torna-se certa, vigorando, então, as normas da seção anterior do Código Civil, que tratam das obrigações de dar coisa certa. Diz o artigo 245 do Código Civil Brasileiro que: “cientificado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente”.

O ato unilateral de escolha denomina-se concentração. Para que a obrigação se concentre em determinada coisa não basta a escolha; é necessário que ela se exteriorize pela entrega, pelo depósito em pagamento, pela constituição em mora ou por outro ato jurídico que importe notificação do credor. Sobre a escolha, Maria Helena Diniz (2009) afirma:

Após a escolha pelo devedor, cientificado extrajudicialmente (por meio de carta, e-mail, telegrama, fac-símile, etc.) desta o credor, a obrigação de dar coisa incerta passará a ser de dar coisa certa, por estar individualizada, regendo-se pelas normas contidas nos arts. 233 a 242. (Código Civil Anotado, 14 ed., p. 261).

Assim, o bem, anterior a sua individualização, encontra-se no mundo das coisas incertas; porém, após a escolha, eis que adentra no espaço das coisas certas e, consequentemente, passa a vigorar pelo disposto naquela seção.

A escolha só competirá ao credor se o contrato assim dispuser. Sendo omisso nesse aspecto, ela pertencerá ao devedor. Nesse sentido, vale ressaltar a lição de Venosa (2011, p. 327), ao afirmar que “(...) devem as partes estabelecer a quem cabe a escolha. Se as partes nada estabelecerem, a escolha ou concentração caberá ao devedor”.

Não está o devedor obrigado a escolher a melhor coisa; também não poderá entregar a de pior qualidade. Tal entendimento é conhecido pela doutrina como princípio do meio-termo (MONTEIRO. 2014. p. 106). Em exemplar nota acerca do tema, o professor Mario Luiz Delgado Régis (2008) dispõe:

Ao exercer o seu direito de escolha, não pode o devedor da coisa incerta escolher a pior, como também não poderá ser obrigado a prestar a melhor. Ou seja, a escolha está limitada a uma qualidade média, de modo a coibir abusos, tanto do que pretende dar o menos como daquele que tenciona exigir o mais. (Código Civil Comentado. p. 216-217).

Partindo de tais apontamentos, a escolha do objeto intermediário representa - além de simplesmente seguir a opção mais lógica, dentre as disponíveis - uma igualdade de condições entre devedor e credor, visto que, não sendo o objeto o pior e nem o melhor, os sujeitos deixariam a relação obrigacional em condição de igualdade, sem prejuízo a qualquer um deles.

2. PRINCÍPIO DO “GENUS NUNQUAM PERIT”

A coisa incerta, indicada pelo gênero e quantidade, antes da escolha, não pode ser declarada como perdida, pelo devedor. Conforme assevera o artigo 246 do Código Civil: antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito. Tal dispositivo é baseado em um princípio denominado “genus nunquam perit” (o gênero nunca perece, em português), onde gênero, em regra, antes da especificação, é ilimitado.

Tal princípio garante segurança jurídica ao adimplemento da relação obrigacional, por parte do devedor, uma vez que, antes da escolha – ou seja, da concentração do objeto em coisa certa – este não poderia deixar de cumpri-la pelo simples fato de, ao momento do vencimento, não possuir a coisa em seu domínio.

Por seu caráter indeterminado, a impossibilidade temporária não caracteriza impossibilidade total. As obrigações pecuniárias, por exemplo, são regidas por tal princípio, uma vez que dinheiro, como gênero ilimitado, não se extingue.

Em uma relação obrigacional, conforme dispõe Venosa (2011, op. cit., p. 328), “(...) alguém obrigado a entregar mil sacas de farinha de trigo, continuará obrigado a tal, ainda que em seu poder não possua as referidas sacas, ou que parte do total se tenha perdido”. Acerca do tema, Monteiro (2014) garante:

Alguém se obriga, por exemplo, a dar uma saca de café; ainda que se percam em sua fazenda, ou no seu armazém, todas as sacas desse produto, nem por isso se eximirá da obrigação, porque pode ele obter alhures, no mercado ou em outra propriedade agrícola, o café prometido, habilitando-se assim a satisfazer a prestação devida. (op. cit., p. 109)

2.1. EXCEÇÕES

Conforme citado no tópico anterior, o princípio de que o gênero não perece parte do entendimento de que, em regra, o gênero é ilimitado. Porém, como praticamente toda regra, esta também possui exceções.

O genus também pode possuir caráter limitado, existindo uma delimitação que, embora não suficiente para considera-lo específico, também não o garante como universal. Conforme cita Monteiro (op. cit., 2014): “no gênero limitado, existe uma delimitação; ele é circunscrito às coisas que se acham em certo lugar, no patrimônio de alguém ou sejam relativas a determinada época ou acontecimento”.

Em uma obrigação cujo objeto indeterminado seja algo condicionado, o gênero pode, sim, perder-se, desobrigando o devedor do adimplemento. É o caso, por exemplo, de relação obrigacional cujo objeto seja um vinho de determinada adega, ou livros de determinada editora.

Também são limitados os gêneros que não existem com abundância suficiente, como um material químico que não existe em grandes quantidades (VENOSA, op. cit., p. 329) ou uma frota limitada de carros de luxo.

Fica claro, então, que o disposto no artigo 246 do Código Civil, que segue a mesma redação do artigo 877 do antigo código, não é uma regra absoluta, aplicando-se, apenas, para os objetos indeterminados cujo gênero seja ilimitado.

CONCLUSÃO

Conforme apresentado, as obrigações de dar coisa incerta, regidas pelos artigos 243, 244, 245 e 246 do Código Civil Brasileiro, de maneira alguma podem ser confundidas com outras modalidades de obrigação e, inclusive, em alguns casos, são elementos constitutivos das obrigações de dar coisa certa.

Sendo necessária a indicação de, ao menos, gênero e quantidade, o caráter relativamente indeterminado dessa modalidade de obrigação pressupõe o maior ponto de diferenciação entra essa e as obrigações de dar coisa certa, que necessitam, ao contrário, de especificação do objeto. Conforme já mencionado, a escolha do objeto indicado transforma a obrigação em coisa certa.

A respeito do gênero, o caráter ilimitado é, em regra, verificado. Porém, comporta as exceções supramencionadas. Pode existir gênero limitado; ou seja, não sendo especificado o objeto, a indicação do gênero pode ser condicionada. O dispositivo contido no artigo 246 do Código Civil, então, se mostra incompleto ao afirmar que antes da tradição, o devedor não pode alegar perda do objeto.

REFERÊNCIAS

DINIZ, M. H. Código Civil Anotado. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 261.

DINIZ, M. H. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. v. 2. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 83.

MONTEIRO, W. B. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. v. 4. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 102.

MONTEIRO, W. B. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. v. 4. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 103.

MONTEIRO, W. B. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. v. 4. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 106.

MONTEIRO, W. B. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações. v. 4. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 109.

RÉGIS, M. L. D. Código Civil Comentado. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 216-217

VENOSA, S. S. Código Civil Interpretado. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 327.

VENOSA, S. S. Código Civil Interpretado. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 328

VENOSA, S. S. Código Civil Interpretado. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 329

  • Obrigações
  • Direito Civil
  • Genus nunquam perit

Referências

HACK, Ricardo Elias; GARCIA, Caio et al. Obrigação de dar coisa incerta. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4384, 3 jul. 2015. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016.


Caio Alexandre Guimarães Garcia

Estudante de Direito - Toledo, PR


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