A responsabilidade civil de médicos e hospitais é, sem dúvida, um dos temas mais recorrentes do judiciário brasileiro atualmente. O tema é complexo, por tratar de matéria eminentemente técnica e, em princípio, desconhecida de juízes e advogados.
Quando o profissional do direito se depara com questões de erro médico, comumente surgem dúvidas acerca da necessidade de demandar contra médico e hospital ou apenas contra este, se existe responsabilidade solidária, ou mesmo se é necessária a realização de prova pericial. Não raro ocorrem situações em que os danos são bem graves, como, por exemplo, a perda de um filho na gravidez, mas que o judiciário entende não ser devida reparação civil.
Para que tais questões restem devidamente elucidadas, é necessário delinear os contornos das responsabilidades de médicos e hospitais dentro do nosso sistema de responsabilidade civil.
Está pacificado na doutrina e na jurisprudência pátria, atualmente, que a relação oriunda entre paciente e hospital/clínica é de consumo e, portanto, devem ser aplicadas as regras oriundas do Código de Defesa do Consumidor.
Sabe-se que a responsabilidade do fornecedor de serviços é objetiva, nos termos do art. 14, caput, do CDC. Por outro lado, a responsabilidade civil do profissional liberal é subjetiva, conforme se verifica do parágrafo 4º de sobredito artigo: “§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. ”
Quando se trata de responsabilidade objetiva, deve-se demonstrar que o agente descumpriu uma obrigação decorrente da lei ou de um contrato, que tal conduta causou danos a outrem (ocorrência do dano) e que há uma relação de causa e consequência entre a conduta e os danos (nexo causal).
A responsabilidade subjetiva, por sua vez, desafia a prova da existência da “culpa”, a qual, em sentido amplo, consiste, basicamente, na violação de um dever jurídico, e engloba tanto o dolo como a culpa em sentido estrito. O dolo “é a violação deliberada, consciente, intencional do dever jurídico”[1]. A culpa em sentido estrito se caracteriza pela imperícia, imprudência ou negligência do agente.
Assim, quando se trata de responsabilidade médica, além da ocorrência do dano e existência do nexo de causalidade, deve restar demonstrado que o profissional atuou com culpa (strictu sensu). Daí o porquê de dizer-se que a obrigação do médico é uma obrigação de meio e não de resultado. A grosso modo, ele não tem a obrigação de “curar” a enfermidade do paciente/consumidor, mas sim de empregar todos os esforços para a cura.
Há de se fazer a ressalva de que para a maioria da doutrina e da jurisprudência, quando o contrato firmado entre médico e paciente é para a realização de uma cirurgia plástica estética ou para serviços de anestesiologia, a obrigação assumida é de resultado e não de meio.
A grande incógnita do tema é saber, então, se o hospital privado deve responder objetivamente por danos que sejam causados aos pacientes sem que reste comprovada a falha na atuação médica, ou seja, sem que antes seja verificada a ocorrência de culpa através de uma atuação negligente, imperita ou imprudente do profissional liberal empregado da casa hospitalar.
Sérgio Cavalieri Filho[2] afirma que não há necessidade de comprovação do agir culposo do médico empregado ou preposto para que o hospital seja responsabilizado por danos decorrentes de seus atos. Senão vejamos:
"Pela responsabilidade direta da empresa ou do fornecedor, a atuação do empregado fica desconsiderada; é absorvida pela atividade da própria empresa ou empregador, de modo a não mais ser possível falar em fato de outrem. Responde o fornecedor ou empregador direta e objetivamente perante terceiro, tendo apenas direito de regresso contra o empregado ou preposto se tiver culpa.
Ora, se no caso de um acidente de ônibus, no qual ficam feridos passageiros e pedestres, não mais se faz necessário provar a culpa do empregado ou preposto, por que isso teria que ser feito no caso dos hospitais? São prestadores de serviços, tal como as empresas de transporte, submetidos ao novo regime de responsabilidade direta e objetiva pelo fato do serviço. Por outro lado, a responsabilidade subjetiva prevista no art. 14, § 4º, do CDC, como exceção do sistema de responsabilidade objetiva nele estabelecido, contempla apenas a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais, e estes, como sabido, trabalham por conta própria, sem vínculo empregatício ou de preposição. Logo, não têm qualquer vínculo com os hospitais."
Domingos Nehemias Melo[3] também entende possui o mesmo entendimento, advertindo que:
'Se assim não for, estaremos tornando letra morta um dos mais revolucionários fundamentos contidos no Código de Defesa do Consumidor– a responsabilidade objetiva. A admitir-se que o hospital possa responder subjetivamente somente porque o serviço foi prestado pelo médico que, enquanto profissional liberal responde mediante a aferição de culpa, significa dizer que todo e qualquer prestador de serviços (e também os fabricantes de produtos) que utilizem mão de obra de profissionais que se encaixem no conceito de profissional liberal também responderão subjetivamente."
Em contrapartida, os doutrinadores Carlos Roberto Gonçalves e Miguel Kfouri Neto entendem pela necessidade de comprovação de culpa do médico empregado para a responsabilização do hospital.
O STJ, atualmente, sem deixar de considerar a responsabilidade objetiva do hospital, entende que a responsabilidade civil pelo erro médico surge quando é demonstrada a culpa deste:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. NEGLIGÊNCIA. INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. 1. A doutrina tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal entendimento. Contudo, a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital – seja de emprego ou de mera preposição –, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar. 2. Na hipótese de prestação de serviços médicos, o ajuste contratual – vínculo estabelecido entre médico e paciente – refere-se ao emprego da melhor técnica e diligência entre as possibilidades de que dispõe o profissional, no seu meio de atuação, para auxiliar o paciente. Portanto, não pode o médico assumir compromisso com um resultado específico, fato que leva ao entendimento de que, se ocorrer dano ao paciente, deve-se averiguar se houve culpa do profissional – teoria da responsabilidade subjetiva. No entanto, se, na ocorrência de dano impõe-se ao hospital que responda objetivamente pelos erros cometidos pelo médico, estar-se-á aceitando que o contrato firmado seja de resultado, pois se o médico não garante o resultado, o hospital garantirá. Isso leva ao seguinte absurdo: na hipótese de intervenção cirúrgica, ou o paciente sai curado ou será indenizado – daí um contrato de resultado firmado às avessas da legislação. 3. O cadastro que os hospitais normalmente mantêm de médicos que utilizam suas instalações para a realização de cirurgias não é suficiente para caracterizar relação de subordinação entre médico e hospital. Na verdade, tal procedimento representa um mínimo de organização empresarial. 4. Recurso especial do Hospital e Maternidade São Lourenço Ltda. Provido. (REsp 908359/SC. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/08/2008, DJe 17/12/2008).
Em termos práticos, para que haja a condenação do hospital por erro médico (ou mesmo de outro profissional liberal que nele atue), é necessária a demonstração do agir culposo do profissional que dele é empregado, prova que em praticamente 90% dos casos é realizada através de perícia. Vale ressaltar que médico e hospital respondem solidariamente.
Como se trata de relação consumerista, a demanda pode ser ajuizada diretamente contra o Hospital, ao qual restará ação de regresso caso haja a comprovação do erro médico. Contudo, vários Tribunais entendem pelo cabimento da denunciação da lide dos profissionais médicos. Assim, por questão de celeridade, é interessante observar qual o entendimento dominante no Estado em que será interposta a ação e já demandar, caso possível e necessário, contra todos os eventuais responsáveis, os quais, repete-se, respondem solidariamente.
Existem casos em que o médico não é empregado ou preposto do hospital, mas apenas se utiliza das dependências para a realização de seus procedimentos. Nesta situação, deve restar demonstrado que o consumidor procurou diretamente o profissional liberal e com este firmou sua relação, sendo afastada a responsabilidade da casa hospitalar.
Por fim, quanto aos atos extra médicos, que são os decorrentes do serviço de hospedagem do paciente, manutenção de aparelhos, alimentação dos pacientes, deslocamento dos mesmos, entre outros, a responsabilidade do hospital é objetiva, nos termos do CDC, não havendo, neste caso, necessidade de discussão se houve ou não culpa do funcionário do nosocômio, na medida em que decorrem diretamente da atuação empresarial do hospital como prestador de serviços. Comprovando-se a falha na prestação destes serviços, bem como o nexo de causalidade e o dano, configura-se o dever de indenizar do hospital.