“Pró-vida de quem?”, perguntei-me ao observar uma onda de discursos extremistas, religiosos e conservadores que reivindicavam a vida, a proteção do direito de fazer nascer, e a proibição do deixar abortar. Peguei-me de assalto pensando de qual vida eles estavam falando, pois afinal, para mim parecia muito óbvio qual vida deveria ser salva, mas a lógica e a fé nem sempre andam juntas, havia sobressaltados argumentos em defesa da “vida” daquele que ainda estava por vir, em vez da já nascida, viva e violentada.
Estamos no Brasil, o país encontra-se inseridos em uma pandemia da violência sexual. De um lado uma menina de 10 anos, estuprada desde os 6 anos, do outro um feto em desenvolvimento. Infelizmente, o que vou contar aqui não é um fato extraordinário. O crime de estupro é aquele que apresenta a maior taxa de subnotificação no mundo. Estas subnotificações acontecem principalmente nos serviços de saúde. No entanto, apesar desses alarmantes números, a cada quatro minutos uma mulher dá entrada ao SUS com agravamentos de violência sexual (ONU, 2015).
Deste modo, a violência sexual de tão cotidiana torna-se ordinária, doméstica, a cada 9 minutos um novo caso, e a maioria das vítimas são crianças e mulheres[1]. Quando uma menina, com 10 anos, vítima de violência sexual engravida, o aborto para ela não é uma opção é uma necessidade, seu corpo em desenvolvimento, sua infância, a sua liberdade sexual e reprodutiva pleiteia que o direito garanta seu acesso a saúde e proteção a sua segurança e sigilo da sua identidade.
No entanto, mesmo o Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940) permitindo a exceção do aborto para os casos de gravidez advinda do estupro, bem como em casos de eminente risco à vida da parturiente, ambas situações em que a criança se encaixava, ela ainda encontrou morosidade em seu procedimento, haja vista que os profissionais da saúde do estado do Espirito Santo, utilizaram-se da “objeção de consciência”[2] ou alegaram que o caso não se encaixava as normas ministeriais ou/e norma legal. Ademais, sua identidade e dos seus familiares foram divulgados, sua responsável legal recebeu ameaças, assim como os médicos que possivelmente poderiam realizar o procedimento.
A criança, assim como qualquer mulher, vitima de violência sexual ao procurar uma maternidade pública para realização do procedimento de abortamento legal, encontrou dificuldades, tais como: a recusa de médicos pautada em objecção de consciência; o desconhecimento dos profissionais de saúde sobre os procedimentos técnicos e legais; e o medo de cometer algo ilícito; as burocracias impostas na busca pelo atendimento; os itinerários em busca do abortamento; os processos inquisitórios; e a violência institucional e sociais (SILVA, 2018).
Diante disto, percebe-se que nem só de leis se faz um direito, embora a lei permita o aborto em razão de violência sexual, ainda se pode constatar o difícil acesso para a realização deste procedimento, seja por falta de conhecimento sobre onde deve ser realizado, ou em função dos profissionais acionarem a objecção de consciência (OC) ou desconhecerem a norma. A menina que é de São Matheus, cidade do Espírito Santo, só encontrou assistência a sua saúde em Recife, Pernambuco.
Mas, o que me provocou a escrever esse artigo são as seguintes perguntas: Por que um aborto choca mais que um estupro? Por que a curiosidade é maior em saber quem é a vítima invés do agressor? Não busco aqui trazer respostas, mas desperto inquietações. Inquietações de quem não compreende viver em um mundo que desumaniza vidas em (des)razão de uma moral retroalimentado diariamente pelos que dela nada têm. Aqui as mulheres não morrem porque as violências não podem ser tratadas, mas sim porque a sociedade ainda ver nossas vidas como desimportantes. É a micropolítica operando nas tessituras do corpo feminino e na epidemização da violência de gênero. Certamente quem tem razão é Achille Mbembe, que nos conta em seu livro “Politicas da inimizade” (2017) que talvez mais que de diferença, o nosso tempo seja sobretudo o da fantasia da separação e até do extermínio (p.66). Paremos com o genocídio de gênero!
[1] Levantamento do Ministério da Saúde aponta que o Brasil registrou 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes em 2018.
[2] Escusa invocada por incompatibilidade ética com a norma legal por motivos de foro filosófico, ético, moral ou religioso.