VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS PELO PODER DE POLÍCIA NA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Lucas Wesley Almeida Cavalcanti[1]
Emerson Francisco de Assis[2]
[1] Advogado, Bacharel no Curso de Direito pela Faculdade de Direito pela Associação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES), email: [email protected].
[2] Doutorando em Direito e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Faculdade da Associação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES) e da Faculdade Raimundo Marinho de Penedo, email: [email protected].
1. Noções gerais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Com a finalidade de proteger os direitos humanos fundamentais da pessoa natural no âmbito universal existe o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos que é administrado principalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU), (Mazzuoli, 2012). Mas além deste, principalmente por motivos geográficos, visto que os sistemas regionais são mais acessíveis aos indivíduos, existem também os Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos (europeu, interamericano e africano), dentre os quais está presente o Sistema Interamericano Proteção aos Direitos Humanos (Piovesan, 2012).
Nesse sentido, cabe ressaltar que os Sistemas Global e Regional não são dicotômicos, eles se complementam em beneficio dos indivíduos protegidos. Assim, o Sistema Global abrange um padrão mínimo de direitos e os Sistemas Regionais, baseados nos padrões mínimos, aperfeiçoam tais direitos, levando em consideração as peculiaridades de cada região (Piovesan, 2012).
O Sistema Interamericano protetivo tem origem histórica marcada com a proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos, do ano de 1948 (Mazzuoli, 2012). Contudo, é baseado principalmente na Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica”, haja vista que o encontro para assinatura e negociação do tratado ocorreu neste local. Esta Convenção foi assinada em 1969, todavia entrou em vigor apenas em 1978, ao ser depósito o décimo primeiro instrumento de ratificação por parte de um Estado membro da OEA e, assim alcançar o quórum mínimo exigido para sua vigência (CIDH, 2014).
No que concerne à adesão de integrantes à Convenção, a princípio é necessário que o Estado seja membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e realização adesão ao respectivo instrumento normativo internacional (Mazzuoli, 2012).
A proteção regional aos direitos humanos toma relevância ao verificar o contexto governamental que perdurou na América Latina, levando em consideração o alto grau de desigualdades sociais e a regência de Estados por regimes ditatoriais. Uma vez que, durante esses períodos ditatoriais, os direitos e liberdades essenciais foram mitigados, dando lugar às torturas, prisões ilegais, perseguições de ordem política, desaparecimentos forçados e supressão de liberdades fundamentais (Piovesan, 2012).
Flávia Piovesan, lecionando sobre o rol de direitos assegurados na Convenção Americana, infere que:
No universo de direitos, destacam-se: O direito à personalidade jurídica; o direito à vida; o direito a não ser submetido à escravidão; o direito à liberdade; o direito a um julgamento justo; o direito à compensação em caso de erro do judiciário; o direito à privacidade; o direito à liberdade de consciência e religião; o direito à liberdade de associação; o direito ao nome; o direito à nacionalidade; o direito à liberdade de movimento e resistência; o direito de participar do governo; o direito à igualdade perante a lei; e o direito à proteção judicial (Piovesan, 2012: 128).
Emana dessa sustentação, portanto, que a Convenção assegurou uma série de Direitos Humanos imprescindíveis à vida em sociedade, os quais devem ser respeitados e efetivados para que não haja margem para arbitrariedades.
Os Estados-partes do Pacto de San José da Costa Rica se comprometeram a respeitar e garantir os direitos e liberdades nele garantidos, de modo que essa proteção se estende a todas as pessoas, independentemente da nacionalidade- onde estão incluídos tanto os nacionais dos Estados-partes, quanto os estrangeiros e os apátridas- sem discriminação por motivo de religião, cor, raça, sexo, opinião política ou condição social (Mazzuoli, 2012).
Insta mencionar que em 1990, houve a Conferência Interamericana de Assunção, que teve como objeto a criação de um protocolo facultativo adicional à Convenção sobre a Abolição da Pena de Morte. Com o advento deste protocolo, os Estados americanos que o adotaram ficaram proibidos de aplicar a pena de morte, em qualquer circunstancia, restando, assim, revogadas as disposições de direito interno que prescrevia a pena capital (Comparato, 2010).
Nesse diapasão, Flávia Piovesan trata em sua lição que:
[...] O sistema interamericano tem assumido extraordinária relevância, como especial locus para a proteção de Direitos Humanos. O sistema interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de Direito e das democracias na região; tem combatido a impunidade; e tem assegurado às vítimas direitos fundamentais (Piovesan, 2012: 160).
Assim, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos tem sido fundamental para proteção da vida humana e decisivo no processo de democratização da região, tomando relevância principalmente quando confrontado com os processos ditatoriais que perduraram na América Latina.
Ainda quanto ao itinerário histórico dos direitos humanos no Sistema Interamericano, no ano de 1988 a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou um Tratado adicional à Convenção, o Protocolo de San Salvador, que é relacionado aos direitos sociais, econômicos e culturais, os quais não estavam enunciados de forma específica na Convenção Americana (Piovesan, 2012).
Além do Protocolo de San Salvador, outros tratados sobre Direitos Humanos foram adotados pelo Sistema Interamericano. Merece destaque o Protocolo para Abolição da Pena de Morte, já citado, além da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas (Piovesan, 2012).
2. Órgãos do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
Para consecução dos objetivos essenciais do Sistema Interamericano foram instituídos órgãos de fiscalização e julgamento dotados de meios constritivos para proteger e fiscalizar o respeito aos direitos humanos. Assim, foram estabelecidos dois órgãos, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, os quais têm como missão central zelar pela proteção e monitoramento dos direitos que estabelece a Convenção Americana de Direitos Humanos (Mazzuoli, 2012).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ela representa todos os Estados-membros da OEA e tem por incumbência promover a observância e defender os direitos humanos no âmbito do continente americano (Mazzuoli, 2012).
No concernente à sua composição, ela é constituída por sete membros, os quais devem ser pessoas de alta autoridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos, podendo ser nacionais de qualquer Estado-membro da Organização dos Estados Americanos. A ascensão ao cargo se dá por meio de eleição pela Assembleia Geral da OEA, com mandato de quatro anos e possibilidade de uma única reeleição (Piovesan, 2012).
Esse órgão é incumbido de promover a observância e a defesa dos direitos humanos, podendo formular recomendações aos Estados, sugerir medidas consideradas apropriadas, preparar estudos e relatórios, solicitar informações aos governos nacionais e submeter relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Além dessas, uma das mais importantes atribuições da Comissão é examinar reclamações apresentadas por indivíduos, grupos de indivíduos e entidades não governamentais que versem sobre violação das normas da Convenção (Mazzuoli, 2012).
A Comissão tem competência em face de todos os Estados-membros da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação aos direitos nela consolidados. Por sua vez, competência se expande e alcança todos os Estados Membros da Organização dos Estados Americanos, em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana de Direitos Humanos de 1948 (Piovesan, 2012).
No tocante ao segundo órgão do Sistema Interamericano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez é o órgão jurisdicional do referido sistema, tendo por incumbência, a aplicação e interpretação do Pacto de San José da Costa Rica, com o intuito primordial de resolver as supostas violações de direitos humanos protegidos pela referida convenção (Guerra, 2013). Trata-se, então, de um tribunal internacional que tem competência para condenar os Estados que fazem parte da Convenção Americana em caso de violação aos direitos humanos.
A Corte é sediada em San José, na Costa Rica e é formada por sete juízes oriundos de Estados-membros da OEA, de nacionalidades distintas, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral e de reconhecida competência em matéria de direitos humanos. Esses juízes são eleitos por um período de seis anos, sendo que sua reeleição pode se dar somente uma vez. (Mazzuoli, 2012).
Os juízes devem permanecer em suas funções até o fim de seus mandatos (Mazzuoli, 2012). Entretanto, os que concluírem seu mandato continuarão conhecendo dos “[...] casos que já houverem tomado conhecimento e que se encontrar em fase de sentença”, para cujos efeitos não serão substituídos pelos novos juízes eleitos em Assembleia Geral da OEA (CIDH, 2014).
No que concerne à competência da Corte Interamericana, evidenciam-se duas competências, a contenciosa e a consultiva. Em relação a primeira, o tribunal tem competência para julgar casos de desrespeito aos direitos garantidos no Pacto de San José pelos Estados que aceitaram sua jurisdição. No tocante a segunda, a Corte se manifesta em relação a consultas encaminhadas pelos Estados-parte e diz respeito a uma uniformização da interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Guerra, 2013; Mazzuoli, 2012).
Importa destacar que a competência contenciosa é limitada aos Estados-parte da Convenção que expressamente reconheceram a jurisdição contenciosa da Corte, o que denota uma natureza facultativa. De forma diferente, ao ratificarem a Convenção Americana de Direitos Humanos, os Estados-parte ratificaram automaticamente a competência consultiva da Corte (Mazzuoli, 2012).
Seguindo o relatório anual da Corte, relativo ao ano de 2014, dos 35 Estados que conformam a OEA, 20 haviam reconhecido a competência contenciosa. São eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname e Uruguai (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2014).
Por fim, casos da função contenciosa serão examinados tópico 4 e 5, levando em consideração as ocorrências que tenham como agente ativo a figura da autoridade policial e/ou membros das forças armadas.
3. Hipóteses de violência que envolvem as atividades de agentes estatais
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos, nos seus princípios e disposições, traz uma série de garantias essenciais à pessoa humana, levando como base outras Cartas de Direitos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sendo assim, este Pacto elenca uma série de proteções às hipóteses de violência que serão abordadas neste trabalho, quais sejam: a prisão arbitrária, a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado (OEA, 1969).
Posto isso, o artigo 7º e seus parágrafos da Convenção Americana, ao tratar do direito à liberdade pessoal, dispõem que toda pessoa tem direito à liberdade e segurança pessoais, não podendo ser submetida à detenção ou encarceramento arbitrários, e, no caso de detida, tem direito a ser informada sobre as razões da prisão, sendo notificada da acusação ou das acusações contra ela formuladas. Essa segurança, acima citada, deve ser entendida de modo amplo, abrangendo outros aspectos, como a observância das normas legais, a segurança de que o Estado e seus agentes agirão conforme a lei, respeitando os direitos fundamentais (Piovesan, 2010).
Assim, alguém só poderá ser preso diante das causas e condições firmadas nas constituições de cada Estado ou pelas leis que estejam de acordo com elas, ou seja, a liberdade deve ser entendida como regra e a prisão ou detenção como exceção. Importa, portanto, observar que essas leis devem estar sempre em conformidade com o que dispõe a Convenção (Piovesan, 2010).
Outra prática muito utilizada é a tortura, que atinge a integridade pessoal e física das pessoas. Então, ao tratar sobre a tortura, o artigo 5º do Pacto de San José da Costa Rica aponta sobre a necessidade do direito à integridade física, psíquica e moral. Assim, por meio do § 2º do dispositivo legal citado, infere-se que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes (OEA, 1969).
Sobre a tortura, Flávia Piovesan ensina que:
A frequência na utilização da tortura, como prática comum em determinada sociedade, depende da perspectiva valorativa em que esta sociedade se encontra. Se um Estado preza a liberdade de seus cidadãos, buscando sempre um governo que atenda às suas necessidades, é evidente que a prática da tortura não é desenvolvida nesta sociedade. Entretanto, se, ao contrário, um Estado tem como maior objetivo proporcionar uma governabilidade sem maiores obstáculos para os que estão no poder, a tortura será um dos meios para se alcançar estas finalidades (Piovesan, 2010: 290).
Desta forma, pode-se concluir que a prática da tortura depende dos valores que prevalecem nas sociedades, sendo utilizada nas sociedades em que os valores predominantes se relacionam com o autoritarismo dos poderes governantes. Já nas sociedades em que o respeito à dignidade humana prevalece, não haverá utilização dessa prática.
Diante do histórico da tortura, depreende-se que sua utilização se deu, na maioria das vezes, como meio para obtenção de provas, obtendo-se, por meio dela, confissões ou ajudando na elucidação de crimes, mas, também, pode ter motivação político-partidária, tendo como finalidade a intimidação do torturado, servindo como aparelho de investigação do Estado totalitário (Piovesan, 2010). Nesse viés, visando combater tal prática, em 10 de dezembro de 1984 surge a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Piovesan, 2010).
Não obstante todo o aparato de garantias aos direitos humanos, a tortura continua a ser praticada de forma secreta e clandestina, principalmente com meios que não deixem marcas no corpo do torturado, para que, desta forma, se mantenha a imagem de um Estado preocupado com os Direitos Humanos (Piovesan, 2010).
Em relação ao assassinato, este representa uma das maiores violações aos direitos humanos, visto que confronta o bem mais sagrado a ser protegido pelo direito: a vida. Esse direito é o principal e mais relevante de todos, considerando que não há sentido de existir proteção a outros direitos, como por exemplo, a liberdade, se não houver uma devida defesa à vida.
O Artigo 4º da Convenção Americana, ao tratar dos direitos civis e políticos, dispõe no seu § 1º que: “§ 1º Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (OEA, 1969).”
Destaca-se nesse dispositivo a parte final, a qual infere que “[...] ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”, ou seja, a vida de nenhuma pessoa pode ser ceifada ao livre-arbítrio de outrem.
Relevante, também, é o que aduz o § 2º do mesmo artigo acima citado:
§ 2º Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos mais graves, em cumprimento da sentença final de tribunal competente e em conformidade com lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente (OEA, 1969).
Assim, para que se aplique a pena de morte é necessário que haja uma sentença judicial que a determine; que essa sentença seja advinda de um tribunal competente; que haja previamente a previsão para o crime cometido e que, por fim, esteja presente o caráter punitivo pelo delito praticado (Piovesan, 2010).
Desta forma, não há espaço para que sejam cometidos assassinatos durante a persecução criminal ou durante fases investigatórias, haja vista que não há presença de sentença condenatória, bem como não é admissível o assassinato em caráter preventivo, assim, se deve respeitar à percepção do crime de acordo com o devido processo legal pelas autoridades judiciais.
Por fim, quanto à violação do desaparecimento forçado, a Convenção Americana de Direitos Humanos, no seu artigo 7º, parágrafo 1º, prevê que “[...] toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais” (OEA, 1969). Então, cabe ao Estado-parte adotar medidas necessárias para efetivar os direitos e liberdades enunciados, ou seja, os Estados-parte não têm somente a obrigação de respeitar esses direitos, mas também de garantir o exercício deles (Piovesan, 2012).
O desaparecimento forçado consiste na privação da liberdade individual ou coletiva, por qualquer meio, praticada por agentes estatais ou por grupos de pessoas que tenham autorização ou apoio estatal para tanto. O Pacto de San José da Costa Rica reconhece o desaparecimento forçado como um crime de lesa-humanidade, visto que afronta à dignidade da pessoa humana e os princípios consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA, 1969).
Destarte, a prática do desaparecimento forçado confronta diretamente o direito à segurança, bem como as garantias processuais, previsto na Convenção Americana, visto que é direito do homem ter sua liberdade garantida. Assim, quando este ato delituoso é causado por agentes estatais ou quando estes falham em proteger os indivíduos, o Estado tem responsabilidade perante o direito internacional.
4. Estudo da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quanto as hipóteses de violência que envolve agentes estatais
Fazendo uma análise dos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quanto à violência perpetrada por agentes estatais, como já fora pontuado no tópico anterior, foram escolhidas quatro hipóteses de violência para o presente estudo, quais sejam: prisão arbitrária; tortura; desaparecimento forçado e assassinato.
Esses casos indicam o abuso de poder de polícia, perpetrado por policiais ou agentes das forças armadas. As informações para o presente estudo foram obtidas diretamente por meio do site da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde foram analisados todos os julgados que dizem respeito ao tema proposto.
Dentre os países compreendidos na análise estão Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trindad & Tobago, Uruguai e Venezuela. Para essa avaliação, foram examinadas as 184 decisões e julgamentos da Corte Interamericana, dos quais 81 casos abrangiam a temática estudada, distribuindo-se pelos países acima citados (CIDH, 2014).
Alguns dos países analisados não têm nenhum processo tramitando perante a Corte Interamericana, como é o caso de Barbados, Costa Rica, Granada, Guiana, Jamaica e Panamá. Já os demais países têm pelo menos uma ocorrência, como é o caso do Brasil (CIDH, 2014).
Mais à frente, seguem gráficos demonstrativos dos países e casos compreendidos nesse estudo. Esses gráficos foram elaborados tomando como base os dados da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Desta forma, corroborando com as informações trazidas quanto aos países e casos, abaixo encontra-se o gráfico informativo tratando dos países envolvidos e a quantidade de casos ocorridos em cada um, destacando que os que não tiveram casos julgados não estão presentes no gráfico:
Fig.01 (CIDH, 2014).
As informações constantes na figura nº 01 indicam uma elevada margem de casos julgados em dois países em relação aos demais, a saber, Peru e Guatemala.
Na divisão dos 81 casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde houve violência por parte de agentes estatais, eles se dividem nos quatro tipos de violações mencionadas, conforme segue o gráfico abaixo:
Fig.02 (CIDH, 2014).
Assim, conclui-se que pouco mais da maioria dos casos envolvem a figura do assassinato, o qual pode ser cumulado com as demais práticas violentas, como, por exemplo, é o caso de uma pessoa que é presa arbitrariamente, torturada durante a detenção e posteriormente é assassinada. Nesse caso contará a presença de três formas de violência, ao invés de uma somente.
Então, o assassinato está presente em 41 ocorrências, isto é, 50,61% dos casos apresentados. Por sua vez, no segundo lugar geral se encontra a tortura, prática utilizada em 29,62% dos casos. Já o desaparecimento forçado está em terceiro lugar geral, contando com 30,86 % dos fatos, seguido, por fim, pela figura da prisão arbitrária, que está presente em 29,62 % dos casos (CIDH, 2014).
Continuando a análise, dentre todos os países estudados, houve um empate entre Guatemala e Peru, quanto as nações que mais tiveram casos julgados na Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativos ao tema proposto. Esses países tiveram quatorze ocorrências, cada um. Os casos se distribuem aleatoriamente e cumulativamente quanto a violência praticada, como é o caso de Rafael Samuel Gómez Paquiyauri, do Peru, que sofreu prisão arbitrária, tortura e assassinato (CIDH, 2014).
Assim, a tabela abaixo indica o tipo de violência e a quantidade de casos nos países que lideram o ranking:
Fig.03 (CIDH, 2014).
Diante do exposto, quanto à Guatemala, depreende-se que há prevalência de casos onde houve assassinato, o que compreende 08 ocorrências, equivalente a 57,14% do total. Enquanto isso, as práticas da tortura e do desaparecimento forçado estiveram presentes em 42,85% dos casos apresentados. Por fim, a prisão arbitrária se apresentou em 21,42% dos casos (CIDH, 2014).
Em relação aos dados de violência praticados por agentes estatais no Peru, segue a tabela abaixo:
Fig. 04 (CIDH, 2014)
Conforme o apresentado acima verifica-se que no Peru, assim como na Guatemala e na totalidade geral de todos os países estudados, a maioria dos casos envolvem o assassinato, totalizando 50% das ocorrências acima apresentadas. O desaparecimento forçado, por sua vez, esteve presente em 35,7% dos casos apresentados nesse país. A seu turno, a tortura aparece em 28,5% dos casos e, por fim, a prisão arbitrária em 21,4 % (CIDH, 2014).
Depreende-se, portanto, que a violação ao bem humano principal, a vida, é o que mais sofre restrições por força da violência dos agentes estatais. Há, assim, ampla violação às garantias trazidas na Convenção Americana de Direitos Humanos, visto que pessoas são mortas por decisões de autoridades não judiciais e a tomada dessas decisões sofre influências das circunstâncias momentâneas e arbitrárias. É, então, uma forma ilegal e absurda de mitigar os direitos humanos, principalmente no que se refere à vida humana.
5. Estudo de alguns Casos Emblemáticos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quanto as hipóteses de violência que envolve agentes estatais
Vários são os casos estudados nesse trabalho quanto à violação aos direitos humanos perpetradas por agentes estatais. Nesses eventos, verifica-se a utilização de meios de abuso de poder, o qual, em sua maioria, gera graves violações aos direitos humanos.
Assim, segue o estudo de alguns casos julgados perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos dentro da temática em análise, onde foram utilizados meios violentos pelos agentes estatais, utilizando o poder de polícia, quais sejam: prisão arbitrária, tortura, assassinato e desaparecimento forçado. Alguns casos emblemáticos de grande repercussão foram escolhidos para representar as violações estudadas nesse trabalho e serão estudados abaixo, na razão de uma ocorrência por país.
Desse modo, quanto à prisão arbitrária, seguem os fatos do ilícito que teve como vítima Rafael Iván Suárez Rosero, do Equador. O caso diz respeito à responsabilidade internacional do Estado equatoriano pela detenção ilegal e arbitrária de Rafael Iván Suárez Rosero, por parte de policiais, bem como a falta de diligência no processo penal contra ele (CIDH, 2014).
Nessa ocorrência, que se deu no dia 23 de junho de 1992, o senhor Rafael Rosero foi preso durante a Operação “Ciclone”, destinada a extinguir uma organização de tráfico de drogas. A prisão foi realizada sem mandado e sem que o senhor Rafael Rosero estivesse em flagrante delito. Ainda assim, o “acusado” não teve advogado durante seu primeiro interrogatório e foram restringidas as visitas de seus familiares. Um habeas corpus foi interposto para questionar a detenção ilegal, sendo rejeitado (CIDH, 2014).
Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que o Equador é responsável pela violação dos direitos e garantias judiciais, quanto aos artigos 1º, 5º, 7º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, devendo, assim, reparar o dano e retirar os antecedentes criminais da v, no que se refere a esse processo (CIDH, 2014).
Em relação à tortura, o caso “Valentina Rosendo Cantú e Yenys Bernardino Sierra”, no México, chama muita atenção. Esse caso diz respeito à responsabilidade internacional do Estado mexicano pela tortura e violação sexual, praticadas em face da senhora Rosendo Cantú, por militares (CIDH, 2014).
Valentina Rosendo Cantú, mulher indígena, pertencente à comunidade Me'phaa, no Estado de Guerrero, a data dos fatos tinha 17 anos, era casada com o Sr. Fidel Bernardino Serra, com quem tinha uma filha. Em 16 de fevereiro de 2002, Valentina Cantú estava em um riacho, preparava-se para tomar banho, enquanto oito soldados, acompanhados por um civil que havia sido preso, lhe cercaram. Dois deles questionaram sobre alguns fatos e mostraram-lhe a fotografia de uma pessoa e uma lista de nomes, enquanto um deles apontava-lhe uma arma. Ela lhes disse que não conhecia as pessoas sobre as quais eles indagaram, então, um militar que apontava uma arma deu-lhe um golpe no estômago com o revólver, derrubando-a no chão. Em seguida, um dos soldados agarrou seu cabelo enquanto insistia com o questionamento de informações. Por fim, os militares arranharam o seu rosto, retiraram suas vestes, a jogaram no chão, e a abusaram sexualmente (CIDH, 2014).
Valentina Rosendo Cantú e seu marido entraram com uma série de recursos para relatar o fato e solicitar as informações necessárias para identificar e punir os responsáveis. Entretanto, a investigação foi submetida aos tribunais militares, que decidiram arquivar o caso (CIDH, 2014).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o México é responsável pela violação dos direitos à integridade pessoal, à dignidade e privacidade, consagrados, respectivamente, nos artigos 5.1, 5.2, 11.1 e 11.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, bem como, a violação os artigos 1.1 da mesma convenção e também os artigos 1º, 2º e 6º da Convenção Internacional para Prevenir e Punir a Tortura. Foi decidido ainda, que o Estado violou o artigo 7º da Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher em detrimento da senhora Rosendo Cantú (CIDH, 2014).
No que tange a análise dos casos emblemáticos de violência, cumpre destacar agora um caso de assassinato, que teve por vítimas os membros da vila de Santo Domingo, na Colômbia.
Essa ocorrência se deu no dia 13 de dezembro de 1998, quando, em uma operação militar, membros das forças armadas colombianas dispararam de um helicóptero um dispositivo do tipo NA-MA1A, composto por granadas e bombas de fragmentação NA-M1A2, na rua principal do povoado Santo Domingo, Colômbia, causando, assim, a morte de 17 pessoas, incluindo crianças, bem como ferindo 27 pessoas (CIDH, 2014).
Por conta desses acontecimentos, muitos moradores de Santo Domingo tiveram que abandonar suas casas e se deslocaram para a aldeia de Betoyes, no município de Tame. Além disso, a Força Aérea Colombiana realizou fuzilamentos contra pessoas que fugiam em direção oposta à aldeia (CIDH, 2014).
Destarte, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que o Estado colombiano é responsável pela violação do direito à vida, consagrado no artigo 4.1 do Pacto de San José da Costa Rica, em conjunto com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, em face das pessoas que faleceram nesses eventos. A Corte decidiu ainda, que o Estado é responsável pela violação do direito à integridade pessoal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana, em relação às pessoas que ficaram feridas nesses acontecimentos (CIDH, 2014).
Quanto a um caso representativo de desaparecimento forçado nos julgados da Corte Interamericana, destaca-se o evento que teve como vítima Ernesto Rafael Castillo Páez, no Peru. Os acontecimentos se deram no dia 21 de outubro de 1990, quando Ernesto Páez, estudante universitário, 22 anos, foi detido por agentes da Polícia Geral, no distrito de Villa Salvador, Lima. Por ocasião de sua prisão, os policiais o espancaram e colocaram-no no porta-malas de uma viatura policial, sendo o ultimo momento em que se soube do seu paradeiro (CIDH, 2014).
Os familiares de Ernesto Páez começaram sua procura. Entretanto, não o encontraram em várias dependências policiais, de modo que impetraram uma série de recursos judiciais para que ele fosse localizado. Contudo, não foram realizadas maiores investigações e nenhum dos responsáveis foi punido (CIDH, 2014).
Assim sendo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos resolveu que o Estado do Peru violou, em detrimento de Ernesto Rafael Castillo Páez, o direito à liberdade pessoal, consagrado no artigo 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, bem como o artigo 1.1 da mesma. A decisão firmou, ainda, que foi violado o direito à integridade pessoal e o direito à vida, consagrados pelos artigos 5 e 4, respectivamente (CIDH, 2014).
Por fim, um caso representativo da violência perpetrada por meio do poder de polícia no Brasil é o de desaparecimento forçado, tortura e assassinato, ocorrido entre o fim da década de 1960 e o começo da década de 1970, quando um golpe de Estado derrubou o governo de João Goulart. Um movimento de resistência composto por alguns membros do Partido Comunista do Brasil, conhecidos como Guerrilha do Araguaia, sofreu repetidas repressões, no que desencadeou em desaparecimentos forçados, assassinatos e torturas. De acordo com a Comissão Especial de Desaparecidos Políticos, existem 354 mortos e desaparecidos políticos, entretanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu expressamente 72 mortos no total. (CIDH, 2014).
Em 2010, a Corte sentenciou o Brasil, determinando que o Estado conduzisse eficazmente a investigação penal dos fatos, responsabilizando e punindo os envolvidos no caso. Além disso, incumbiu que fossem realizados todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas e, se necessário, identificar e devolver os restos mortais às suas famílias (CIDH, 2014).
Ademais, o Brasil ficou responsável por estabelecer o desaparecimento forçado como crime, conforme as normas interamericanas; além da implementação de um curso sobre direitos humanos obrigatório, destinado a todos os níveis das Forças Armadas. O Estado brasileiro ficou obrigado, ainda, a reconhecer sua responsabilidade no caso por ato público internacional, bem como arcar com as custas judiciais e ao pagamento das devidas reparações às famílias das vítimas da ilicitude (CIDH, 2014).
Em 2011, reflexo da decisão do episódio da Guerrilha do Araguaia, foi sancionada a Lei 12.528/2011, que estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade, sendo instituída no mês de maio do ano posterior, objetivando a apuração de graves violações aos direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de 1988 (CNV, 2015).
Destarte, é de grande relevância o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na atuação contra as violações causadas por agentes estatais, quando no uso de suas atribuições, visto que estes possuem um poder legal para agir, entretanto, quando se desviam ou excedem tal poder geram sérias lesão aos direitos humanos.
Assim, as violações a direitos, mesmo que praticadas por autoridades estatais, devem ser denunciadas e, não havendo punição no país de origem, devem ser encaminhadas ao Sistema Regional Protetor dos Direitos Humanos, para que este atue investigando, coibindo e punindo os agentes causadores dos danos e até o país negligente.
Considerações Finais
O poder de polícia, instrumento do Estado para efetivar garantias de interesse comum, tais como a segurança pública, é uma faculdade de que dispõe a administração pública para condicionar e restringir o uso e gozo de direitos individuais, em benefício da coletividade ou até do próprio Estado. No entanto, a forma de atuação dos agentes, no uso do poder de polícia, não pode se dar de maneira a exceder um mínimo de razoabilidade. O exercício dessa prerrogativa deve estar lastreado por parâmetros não só razoáveis, mas também da proporcionalidade, legalidade, moralidade, eficiência e impessoalidade.
Apesar de serem examinadas 184 decisões e julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apenas 81 das ocorrências se encaixaram nos parâmetros da pesquisa, o que indica uma pequena quantidade de ilícitos denunciados, visto que são 31 países avaliados, dentre os quais apenas 25 países têm casos julgados perante o referido tribunal. Isso é reflexo, supõe-se que principalmente, da falta de conhecimento do público em geral a respeito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, bem como de seu funcionamento e forma de provocá-lo.
A prática de condutas que atentam aos direitos estabelecidos pelo Pacto de San José da Costa Rica é uma realidade a ser combatida através da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, seja investigando ou punindo os responsáveis pelas violações.
Quando o Estado ou seus agentes atuam atingindo a integridade pessoal e física das pessoas por meio da tortura, ou quando limitam a liberdade dos indivíduos arbitrariamente, sem o devido processo legal, estão contrariando o que dita às cartas de direitos humanos que deveriam guiar o comportamento estatal para com os indivíduos.
Verifica-se então, condutas contraditórias, visto que apesar dos instrumentos normativos e garantias do direito nacional e internacional disporem sobre o direito à liberdade, excepcionando-a em casos de prisão pela prática de delitos, existem agentes estatais que o fazem sem motivação, ou de forma ilegal.
Outro direito a ser sempre garantido é o da segurança dos indivíduos, todavia, infelizmente muitos agentes estatais usam do atributo do poder de polícia para provocar o desaparecimento forçado de pessoas, conforme visualizado em alguns casos citados durante este trabalho. Neste sentido, verifica-se paradoxalmente que o direito mais precioso do homem, a vida, garantida juridicamente pelo direito interno e internacional, é mitigado constantemente pelas pessoas incumbidas de garanti-lo.
Essas condutas são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, visto que a este é imposta a tarefa de proteger o cidadão e não desrespeitar seus direitos. Afinal, não se espera comportamento civilizado de criminosos, mas não há outra expectativa daqueles que tomam para si a missão de defender e cumprir a lei.
Apesar das dificuldades encontradas nos contornos da sua jurisdição de ordem cultural, geográfica e política, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem cumprido com seu papel, mesmo diante da pequena quantidade de julgados, tem solucionados casos desamparados pela jurisdição interna dos Estados e aplicado o direito de forma prática.
As próximas etapas a serem cumpridas por este importante tribunal internacional se dirigem a informar a população em geral a respeito da própria corte, seu papel e suas atribuições. Isso será de extrema relevância para evolução do direito, não somente para alavancar o número de casos solucionados pelo tribunal, mas para que se tenha conhecimento de que existem mecanismos para atuação diante da inércia do direito interno dos Estados em casos de violação a Direitos Humanos.
Artigo Publicado na Revista Cidadania e Direitos Humanos.
Disponível em: http://www.asces.edu.br/revistas2015/revistacidadaniadh/index.php/revistacidadaniadh/article/view/7