No Brasil, a infinidade de recolhimentos de tributos obrigatórios acaba por, muitas vezes, gerar diversas dúvidas para as empresas contribuintes, ocasionando impactos diretos em suas despesas. Das várias incertezas acerca da Legislação Tributária, um exemplo clássico de divergência diz respeito ao recolhimento de ISSQN ou ICMS quando as empresas realizam Operações Mistas – Venda e Prestação de Serviços – no mesmo negócio jurídico.
Alia-se a este fato, ainda, a constante evolução industrial que inaugura diariamente novas técnicas e produtos à disposição da sociedade, aumentando a consequente guerra fiscal perpetrada entre Estados e Municípios no tocante a repartição da competência tributária. Nesta linha de raciocínio, torna-se necessário dirimir esta situação, com o fito de possibilitar bom desenvolvimento das pessoas jurídicas.
É oportuno tecer considerações desde o nascimento da obrigação tributária para as empresas até o seu real recolhimento. A obrigação surge com a ocorrência do fato gerador, segundo o art. 113, § 1º, do CTN[1]. Ademais, a exigência da relação judiciário-tributária entre sujeito passivo e sujeito ativo só se legitima mediamente a ocorrência fática de uma situação hipotética normativa, conforme consta no art.114 do CTN.
Em relação à definição do fato gerador, Paulo de Barros Carvalho[2], responsável pela elaboração da regra-matriz de incidência tributária, indica o fato gerador como um de seus elementos fundamentais:
“O objetivo sobre o qual converge o nosso interesse é a fenomenologia da incidência da norma tributária em sentido estreito ou regra-matriz de incidência-tributária. Nesse caso, diremos que houve a subsunção, quando o fato (fato jurídico tributário constituído pela linguagem prescrita pelo direito positivo) guardar absoluta identidade com o desenho normativo da hipótese (hipótese tributaria). Ao ganhar concretude o fato instala-se, automática e infalivelmente, como diz Alfredo Augusto Becker, o laço abstrato pelo qual o sujeito público de exigir a prestação, ao passo que sujeito passivo ficará na contingência de cumpri-la.”
No que tange especificamente ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), sua definição está prevista no art. 155, II, da CF, regra insculpida também na Lei Complementar n. 87/96, a qual descreve pormenorizadamente as hipóteses de incidência do tributo. Sobre o tema, Carraza[3] esclarece que:
“A sigla “ICMS” alberga pelo menos cinco impostos diferentes, a saber: a) o imposto sobre operações mercantis (operações relativas à circulação de mercadorias), que, de algum modo, compreende o que nasce da entrada, na Unidade Federada, de mercadorias importadas do exterior; b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal; c) o imposto sobre serviços de comunicação; d) o imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos e de energia elétrica; e e) o imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais.”
Acerca do ISSQN (Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza), o ordenamento jurídico entabula seu surgimento no art. 156, III, da Lei das Leis, com suas hipóteses de Incidência delimitadas na Lei Complementar n. 116/03. Nas precisas lições de Barreto[4]: “Do exame sistemático da Constituição...serviço é esforço de pessoas desenvolvido em favor de outrem, com conteúdo econômico, sob regime de direito privado, em caráter negocial, tendente a produzir uma utilidade material ou imaterial.”
A competência tributária entre Estados e Municípios segue os seguintes critérios: 1) sobre operações de circulação de mercadoria e sobre serviços de transporte interestadual e internacional e de comunicação incide ICMS; 2) sobre operações de prestação de serviços compreendidos na lista de que trata a Lei Complementar n. 116/03, incide ISSQN; 3) sobre operações mistas, assim entendidas as que agregam mercadorias e serviços, incide ISSQN sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC n. 116/03 e incide ICMS sempre que o serviço agregado não estiver na referida lista.
Mesmo com todos os citados regramentos dos impostos em análise, ainda pairam desacordos em diversos negócios jurídicos, notadamente quando ocorrem operações mistas, dificultando sobremaneira os trabalhos realizados pelas empresas contribuintes. Sobre este aspecto, disserta Paulsen[5] que “As operações mistas são aquelas em que há tanto prestação de serviços como o fornecimento de mercadorias. O art. 1º, §2º, da LC 116/03, dispõe que os serviços tributados pelo ISS não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.”
Sobre o tema, a seguir será transcrito alguns julgados interessantes que finalizaram controvérsias específicas.
INFORMATIVO 573 do STJ - INCIDÊNCIA DE ISSQN SOBRE MONTAGEM DE PNEUS
“Incide ISS - e não ICMS - sobre o serviço de montagem de pneus, ainda que a sociedade empresária também forneça os pneus utilizados na montagem. O art. 1º da LC 116/2003 estabelece, no seu caput, que o "Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador". Ademais, esse mesmo artigo, no seu § 2º, prevê que, "Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias". Diante disso, a Segunda Turma do STJ decidiu que, quando houver o desenvolvimento de operações mistas, deve ser verificada a atividade desenvolvida pela empresa, a fim de definir o imposto a ser recolhido, sendo que, "Se a atividade desenvolvida estiver sujeita à lista do ISSQN, o imposto a ser pago é o ISSNQ, inclusive sobre as mercadorias envolvidas, com a exclusão do ICMS sobre elas, a não ser que conste expressamente da lista a exceção" (EDcl no AgRg no AgRg no REsp 1.168.488-SP, DJe 21/6/2010). No mesmo sentido, a Primeira Turma do STJ (REsp 1.102.838-RS, DJe 17/12/2010), mencionando precedente da Primeira Seção (REsp 1.092.206-SP, DJe 23/3/2009), firmou o entendimento no sentido de que "(a) sobre operações 'puras' de circulação de mercadoria e sobre os serviços previstos no inciso II, do art. 155 da CF (transporte interestadual e internacional e de comunicações) incide ICMS; (b) sobre as operações 'puras' de prestação de serviços previstos na lista de que trata a LC 116/03 incide ISS; (c) e sobre operações mistas, incidirá o ISS sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116/03 e incidirá ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista". Além disso, as Turmas que compõem a Primeira Seção do STJ (AgRg no AREsp 118.207-SP, Segunda Turma, DJe 23/9/2014; e REsp 1.183.210-RJ, Primeira Turma, DJe 20/2/2013) firmaram o entendimento segundo o qual a lista de serviços anexa à LC 116/2003, que estabelece quais serviços sofrem a incidência do ISS, comporta interpretação extensiva, para abarcar os serviços correlatos àqueles previstos expressamente, uma vez que, se assim não fosse, ter-se-ia, pela simples mudança de nomenclatura de um serviço, a incidência ou não do ISS. Dessa forma, realizando-se uma interpretação extensiva da legislação de regência, verifica-se que o serviço de montagem de pneus encontra-se inserido dentro do item 14.01 da lista anexa à LC 116/2003, por se enquadrar dentro do item "manutenção e conservação de [...] veículos". Nesse sentido, aliás, vale destacar que a Segunda Turma do STJ, no julgamento do REsp 33.880-SP (DJ 25/3/1996), sob a égide do Decreto-Lei 406/1968 - que, quanto ao ponto, possuía item com idêntica redação à atual ("manutenção e conservação de [...] veículos") - assentou que o serviço de montagem de pneus não estaria sujeito ao ICMS, mas sim ao ISS.” (REsp 1.307.824-SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 27/10/2015, DJe 9/11/2015)
NÃO INCIDÊNCIA DE ISSQN SOBRE MERCADORIAS PRODUZIDAS POR CONSTRUTORAS
“Tanto o DL 406/68 como as Leis Complementares 56/87 e 102/03 fixaram que o ISS incide sobre a totalidade dos serviços de construção civil, exceto sobre o fornecimento de mercadorias produzidas pelo próprio prestador dos serviços fora do local da prestação, que fica sujeito ao ICMS.” (AgReg no Recurso Especial n. 1.002.693)
“ICMS - Pretensão de anulação de um item do auto de infração e imposição de multa - Sentença de improcedência da demanda - Apelo da autora - Preliminar de cerceamento de defesa afastada - Mérito - Natureza mista da contratação - Operação comercial de comercialização de mercadorias e prestação de serviço de instalação, assessoria e consultoria em montagem de esquadrias, caixilhos e janelas - Prestação de serviço sujeita ao ISS desde que o serviço esteja compreendido na lista anexa à LC nº 116/03 - Atividade equiparada à construção civil - Previsão no item 7.02 da lista - Exceção prevista na lei quanto à incidência de ISS - Regra legal que permite a incidência de ICMS quando as mercadorias são produzidas pelo próprio prestador fora do local onde são prestados os serviços - Recolhimento tributário incorreto - Incidência de ICMS sobre o total da operação - Sentença mantida - Apelo não provido.” “TJ/SP–AP. 0013106-21.2010.8.26.005”
INCIDÊNCIA DE ISSQN EM SERVIÇOS GRÁFICOS – EMBALAGENS SOB ENCOMENDA
“Decisão monocrática que negou seguimento ao recurso especial – ISS – Súmula 156 do STJ Composição gráfica – Matéria idêntica ao rito dos recursos repetitivos com julgamento definitivo de mérito. - A matéria referente à incidência de ISSQN e não de ICMS nos serviços de composição gráfica, é matéria idêntica à tratada no rito dos recursos repetitivos.” (Resp. n. 1.092.206/SP)
“Consignação em Pagamento. ICMS/ISS. Dúvida quanto ao ente tributante. Empresa que atua na produção e comercialização de rótulos personalizados e sob encomenda. Configurada a prestação de serviço de composição gráfica. Atividades sujeitas ao ISS e não do ICMS. Súmula 156 do STJ. Previsão legal na lista anexa da LC 116/2003. Precedentes do C. STJ. Sentença mantida. Recurso NÃO PROVIDO.” (TJ/SP AP.1002202-95.2014.8.26.0533)
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONFLITO ENTRE IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA E IMPOSTO SOBRE OPERAÇÃO DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E INTERESTADUAL. PRODUÇÃO DE EMBALAGENS SOB ENCOMENDA PARA POSTERIOR INDUSTRIALIZAÇÃO (SERVIÇOS GRÁFICOS). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADA PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME AO O ART. 1º, CAPUT E § 2º, DA LEI COMPLEMENTAR 116/2003 E O SUBITEM 13.05 DA LISTA DE SERVIÇOS ANEXA. FIXAÇÃO DA INCIDÊNCIA DO ICMS E NÃO DO ISS. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Até o julgamento final e com eficácia apenas para o futuro (ex nunc), concede-se medida cautelar para interpretar o art. 1º, caput e § 2º, da Lei Complementar 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços anexa, para reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subseqüente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS.” (STF – ADI 4389)
Em remate, para enquadrar corretamente o recolhimento de um ou de outro tributo, obrigatoriamente se deve analisar o entendimento dos órgãos responsáveis pelas elucidações dos fatos, tomando como parâmetros as decisões do STF e STJ, originando, ao fim, uma excelente e legal economia tributária para os contribuintes.
Ricardo Vicente de Paula, Advogado especialista em Direito Tributário, Sócio do LGV Advogados Associados.
[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Ed. Malheiros: São Paulo, 17ª ed., 2005., p 250.
[3] CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 16ª Ed., 2012, p. 40.
[4] BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3ª ed. Dialética, 2009, p. 64.
[5] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 15ª Ed. Porto Alegre: Editora Esmafe, 2013, p. 424.