INTRODUÇÃO
O assunto em questão tem como objetivo a abordagem acerca da figura paterna no ambiente familiar. Gradativamente, a nossa sociedade tem levado em consideração a questão do afeto, mostrando para todos que o pai de criação tem tantos direitos quanto o pai biológico. Em razão a isto, Rubem Alves (2002) harmoniza a questão com belas palavras, onde diz que “Pai é alguém que, por causa do filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento”. Na mesma oportunidade o autor fala acerca da afetividade fraternal: “Mas há pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho (muito embora o filho não saiba disto).
No âmbito jurídico a abordagem acerca da questão que se segue tem se tornado bastante relevante. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, a Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial (REsp) n. 878941, concedeu em uma disputa judicial entre o pai biológico e o pai afetivo o direito de permanecer no registro de nascimento de uma criança o nome do pai de criação.
Nesse caso, o pai de criação registrou a criança em seu nome sem saber que não era o pai. Posteriormente o pai biológico, ao descobrir a paternidade, entrou com uma ação pedindo a anulação do registro civil e a declaração de paternidade. Diante disso, o pai afetivo quis manter a relação de figura paterna da criança, e foi o que ficou decidido, por unanimidade, pela Terceira Turma do STJ em que se manteve a decisão da sentença que julgou a ilegitimidade do pai biológico para entrar com a ação.
Por fim, o que se pretende abordar é que recentemente criou-se um novo conceito de parentesco, o de parentalidade socioafetiva, ou seja, o envolvimento do aspecto sentimental, originado pela convivência, carinho, amor e atenção. Nesse caso, fica claro que o que se pretende defender nessa monografia é que a mera ligação biológica entre pai e filho não deve ser requisito fundamental para que se prepondere sobre a socioafetiva, tendo em vista que em muitos casos a figura paterna afetiva trata com mais amor e carinho do que o próprio genitor. É baseado neste ideal que o projeto se seguirá.
1 PRINCÍPIOS QUE NORTEIAM A RELAÇÃO AFETIVA PATERNO-FILIAL
Antes que se adentre no conceito histórico e jurídico acerca do núcleo familiar, torna-se imprescindível que se fale primeiramente acerca dos princípios que regulam o tema.
A relação afetiva traz à tona a questão dos sentimentos existentes internamente em cada pessoa, como o carinho, o amor e atenção para com outrem. E é a partir daí que surge um novo conceito de paternidade, sendo ela conhecida a partir do século XXI como a Paternidade Socioafetiva.
Esse novo conceito de família e paternidade são regidos por princípios já conhecidos na Constituição Federal de 1988 (CF/88) e doutrinariamente divididos entre “Princípios Fundamentais” e “Princípios Gerais”. Os que serão estudados com mais ênfase neste capítulo são: princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da solidariedade familiar, princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e, por último, o princípio da afetividade, sendo este o de mais relevância para o tema ora em estudo.
1.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio da dignidade da pessoa humana dentre tantos outros assegurados na CF/88 é o que teve maior relevância por parte do constituinte, sendo elevado a um patamar de fundamento de ordem jurídica.[1] Acerca do assunto Paulo Lôbo (2011, p. 60) afirma que “viola o princípio da dignidade da pessoa humana todo ato, conduta ou atitude que coisifique a pessoa, ou seja, que a equipare a uma coisa disponível, ou a um objeto”.
Na família patriarcal esse princípio era distorcido, pois levava em consideração quem detinha de todos os direitos inerentes a dignidade, a figura paterna, entretanto, a CF/88, desmitificou de vez a cidadania plena concentrada apenas em uma só pessoa e trouxe direitos a dignidade das pessoas humanas para a família como um todo, ou seja, mulheres e filhos a partir de então poderiam gozar de garantias que esse princípio poderia lhes trazer.
Especificamente falando no capítulo destinado a família, a CF/88 dispõe em seu art. 226, parágrafo 7º a responsabilidade da família de fazer parte do desenvolvimento da personalidade de seus membros, tratando-os com igualdade e dignidade. Nesse contexto, Berenice Dias (2013, p. 66) leciona:
A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem, a multiplicação das entidades familiares preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum -, permitindo o pleito desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas.
Diante disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 (ECA) surgiu como preceito fundamental: o de garantir o respeito à dignidade da criança. Como fundamento, tem-se o art. 15 que diz: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Resumidamente, esse princípio no âmbito familiar busca igual tratamento a todas as entidades familiares, não devendo de forma alguma aceitar que uns sejam menos ou mais dignos que os outros.
1.2 Princípio da Solidariedade Familiar
A regra acerca do princípio da solidariedade está fundamentada no art. 3º, inciso I da CF/88[2]. A solidariedade só veio se tornar um princípio jurídico após a promulgação da Magna Carta, anteriormente era apenas considerada como um dever ético e moral a ser cumprido.
A solidariedade é a obrigação/dever que um tem para com o outro, ou seja, “é um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que compele à oferta de ajuda, apoiando-se em uma mínima similitude de certos interesses e objetivos” (LÔBO,2011, p. 62). Voltada para a entidade familiar, a solidariedade deverá ser exercida de forma recíproca entre os cônjuges e companheiros, já que os mesmos dividem de assistência moral e material. Em relação aos filhos, a solidariedade está relacionada aos cuidados com os mesmos e deverá ser exercida até eles atingirem a idade adulta (arts. 227 e 229 da CF/88 e art. 4 º do ECA). Por fim, há solidariedade para com os idosos (art. 230 da CF/88).
Acerca do tema, segue como exemplo de solidariedade a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC, dispondo que o fato do pai biológico ter desaparecido por três décadas e não dispor de nenhum vínculo afetivo com os filhos, não os obriga a pagar alimentos para o genitor apenas pelo fato do mesmo ser portador do vírus HIV, onde tal doença pode dispor de cuidados que o próprio autor poderá arcar:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS PROMOVIDA PELO PAI EM DESFAVOR DO FILHO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. GENITOR QUE NÃO MANTÉM CONTATO COM OS FILHOS HÁ TRINTA ANOS. RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR. FATO SUPERVENIENTE. AUTOR DIAGNOSTICADO COM HIV/AIDS. FATO QUE, POR SI SÓ, NÃO JUSTIFICA A IMPOSIÇÃO DO ENCARGO ALIMENTAR. FALTA DE PROVA DA NECESSIDADE DOS ALIMENTOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Não tem direito a alimentos o genitor que se revela capaz de prover as suas próprias necessidades. A solidariedade familiar não é absoluta, na hipótese de o pai ter se afastado da família e dos filhos, quando estes contavam apenas dois anos de idade, sem prestar-lhes qualquer tipo de assistência emocional, afetiva, financeira ou educacional, e, após três décadas, reaproximar-se deles para pleitear alimentos. "O mero fato de ser portador do vírus HIV não é por si só incapacitante, sendo controlável, bastando que a pessoa tome a medicação e observe uma vida regrada." (TJRS, Apelação Cível n. 70052315843, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 17-12-2012). (TJ-SC - AC: 20130078814 SC 2013.007881-4 (Acórdão), Relator: João Batista Góes Ulysséa, Data de Julgamento: 25/06/2014, Segunda Câmara de Direito Civil Julgado)
Portanto, reforçando o que foi dito anteriormente, o princípio da solidariedade familiar está visivelmente exemplificado no Código Civil de 2002 (CC/02), como o dever de prestar alimentos entre parentes (art. 1694 CC/02)[3], como a adoção que nasce com o sentimento da solidariedade (art. 1618 CC/02), como a obrigação dos cônjuges de prover o sustento da família e educação dos filhos e entre outros exemplos fortemente embutidos no CC/02.
1.3 Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente nada mais é do que tratar com prioridade absoluta os interesses da criança que estão fundamentados no art. 227 da CF/88, dentre outros, ou seja, é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar os direitos que nele anuncia, como o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, entre outros, bem como tratá-las com dignidade e respeito.
Antigamente, qualquer decisão que os pais viessem a tomar seria tendo como prioridade os seus próprios interesses, agora não se pode colocar mais em plano secundário a importância que uma criança possui no leito familiar.
Esse princípio tem feito parte de costumeiras decisões acerca da filiação socioafetiva, levando em consideração o “direito à dignidade e ao desenvolvimento integral” (DIAS, 2013, p. 71). E por muitas vezes essas atenções devidas não são observadas pela família biológica, nesse caso há uma intervenção do Estado com o objetivo de propiciar as melhores condições para a criança, é o que se pode perceber na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ, Relatora Desembargadora Mônica Costa Di Piero:
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA PROVISÓRIA. REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA. CRIANÇA SOB A GUADA DOS AGRAVADOS DESDE O NASCIMENTO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DOMENOR. 1. A questão se refere à discordância do Ministério Público quanto ao deferimento da guarda provisória da criança Oliver Bulhões aos agravados, a qual já vinha sendo exercida por estes, ao argumento de que deveria ter sido respeitada a lista de antiguidade do cadastro de pessoas habilitadas. 2. Mãe biológica do menor que elegeu os agravados para entregar seu filho em adoção, sendo certo que tal modalidade não é vedada pelo ordenamento jurídico. 3. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem como alicerce os princípios do melhor interesse, paternidade responsável e proteção integral. 4. A criança encontra-se sob a guarda dos agravados desde o nascimento e os documentos acostados demonstram que os agravados vêm adotando os cuidados necessários ao desenvolvimento sadio do menor. 5. Em sede de cognição perfunctória, não se pode desprezar a circunstância fática que delineia cada caso, desconsiderando a vontade da mãe e a relação afetiva que já envolveu o menor e a nova família que o acolheu, provocando sofrimento desnecessário e sem qualquer justificativa legitima em que se possa apoiar. 6. É evidente que a análise do pleito deve ser norteada pela proteção ao melhor interesse da criança, sendo certo que, nesse momento processual, a manutenção do menor sob os cuidados dos agravados atenderá melhor seus interesses. 7. Desprovimento do recurso.
Em um sentido inverso, mas com os mesmos fundamentos, ou seja, priorizando o melhor interesse da criança e do adolescente, o julgado da relatoria do eminente Desembargado Dárcio Lopardi Mendes, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG trouxe como favorecimento a paternidade biológica, mas nesse caso, observando que havia fragilidade quanto a socioafetiva, senão observa-se o que dispõe:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO DE FAMÍLIA - ANULATÓRIA DE REGISTRO CUMULADA COM INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DE DNA COMPROBATÓRIO - PATERNIDADE BIOLÓGICA X PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA - ALTERAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO - POSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. - O reconhecimento dos filhos, por meio de registro público, é irrevogável, no entanto, tal fato não implica na vedação de questionamentos em torno da filiação, desde que haja elementos suficientes para buscar a desconstituição do reconhecimento anteriormente formulado. - O exame de DNA, por ter como resultado um erro essencial sobre o estado da pessoa, é capaz de desconstituir o registro de nascimento, pois, derruba, por completo, a verdade jurídica nele estabelecida. - Na hipótese de conflito entre a paternidade biológica e a sócio-afetiva, deve-se priorizar aquela em detrimento desta, se, pelo conjunto probatório, o julgador verificar que a paternidade sócio-afetiva é frágil e que a criança deseja que o pai biológico a reconheça, em atenção ao princípio do melhor interesse do menor.
Em meio ao assunto é interessante ver o que o doutrinador Paulo Lôbo (2011, p. 76) tem a dizer a respeito do caso:
O princípio do melhor interesse ilumina a investigação das paternidades e filiações sociafetivas. A criança é a protagonista principal, na atualidade. No passado recente, em havendo conflito, a aplicação do direito era mobilizada para os interesses dos pais, sendo a criança mero objeto de decisão. O juiz deve sempre, na colisão da verdade biológica com a verdade socioafetiva, apurar qual delas contempla o melhor interesse dos filhos, em cada caso, tendo em conta a pessoa em formação.
Portanto, o que se ver é uma unanimidade de argumentos a favor daquilo que melhor se encaixa nos interesses de crianças e adolescentes, a afetividade hoje em dia tem ganhado seu espaço e tem sido fruto de inúmeras e brilhantes decisões a favor dela.
1.4 Princípio da Afetividade
O princípio da afetividade surgiu a partir das últimas décadas do século XX, ganhando visibilidade em jurisprudências e em doutrinas jurídicas. Esse princípio traz a evolução da família, ou seja, “expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afinidade” (LÔBO, 2011, p.71).
Acerca do assunto e em meio a evolução da afetividade no âmbito familiar o doutrinador discorre de forma brilhante o que se pretende afirmar:
A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto à frente, da pessoa humana nas relações familiares. (LÔBO, 2011, p.71).
O princípio em questão está implícito em alguns parágrafos dos artigos 226 e do 227 da CF/88 e no artigo 1593 do CC/02, os fundamentos identificados e que possuem embasamento no princípio da afetividade, observe-se: a igualdade de todos os filhos independente de qualquer origem (art. 227, parágrafo 6º); “a adoção como escolha afetiva com igualdade de direitos” (art. 227, parágrafos 5º e 6º); a família formada por qualquer dos pais ou descendentes (art. 226, parágrafo 4º) e, por fim, o “direito à convivência familiar tendo como prioridade absoluta da criança, adolescente e do jovem” (art. 227). (DIAS, 2013, p. 73).
Portanto, o afeto e a solidariedade decorrem da convivência familiar e não obrigatoriamente do sangue. A família detém um conjunto de relações sentimentais, tendo como sua principal base o amor, a solidariedade, a paciência, o perdão e o afeto. A arte de conviver requer grandes virtudes, e a ignorância, o desamor e o desafeto de forma alguma devem fazer parte de laços tão ligados por um intuito tão bonito, que é o de criar e cuidar.
Para finalizar, nada seria mais justo do que concordar com o que doutrinadora Berenice Dias (2013, p. 74) brilhantemente afirma que “talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade”.
2 A ATUAL FAMÍLIA BRASILEIRA, SUA CONSTITUCIONALIZAÇÃO E A SOCIOAFETIVIDADE
Originalmente, o conceito de núcleo familiar tinha como preceito a formação de um matrimônio entre um casal de um homem e uma mulher. Baseado nisso, a família que a legislação civil tirou como modelo foi justamente a família tida como patriarcal, tendo em vista que desde a Colônia, o Império e meados do século XX o que se tinha era a figura paterna tendo total soberania sobre filhos e esposas, as relações de parentescos eram baseadas na autoridade e hierarquia. Porém, devido as grandes mudanças que vieram a ocorrer, com a defesa de liberdade e de direitos igualmente distribuídos entre homens e mulheres, é que esse conceito foi alterado não só pela sociedade, mas como também pelo ordenamento jurídico.
Portanto, em razão de diversos acontecimentos ora ocorridos na história brasileira, que vieram ocasionar grandes mudanças sociais, religiosas, econômicas, políticas e culturais bem como a emancipação conquistada pelas mulheres é que surgiram novos conceitos de família.
A evolução foi constitucionalmente aceita, a prova disso é exatamente o que dispõe os arts. 5º e o 226, parágrafo 3º da CF/88, ou seja, todos são iguais perante a lei, e mais especificamente, discorre que os direitos e deveres referentes a uma sociedade conjugal são mutuamente exercidos de forma igualitária, retirando, portanto, a soberania patriarcal.
A CF/88 inovou em outros quesitos. No seu artigo 226, parágrafos 3º, 4º e 5º e artigo 227 a própria Constituição enxerga como núcleo familiar os laços de afetividade existentes, proíbe qualquer distinção entre filhos e retirou do âmbito jurídico a possibilidade de se fazer uma família apenas com um matrimônio entre um homem e uma mulher, ou seja, a União Estável e a família formada por qualquer de seus pais ou descendentes também são formas constitucionais para a formação de um núcleo familiar.
Dando razão ao que foi dito logo acima, a doutrinadora Leila Donizetti (2007) afirma que tais acontecimentos deram margem ao surgimento de novos modelos familiares, cujo alicerce principal passou a ser o afeto, a solidariedade e a cooperação. O modelo tradicional, fundado exclusivamente no casamento, ruiu, uma vez que os laços de afetividade começaram a ter mais importância do que os laços sanguíneos. Seguindo pelo mesmo raciocínio, a doutrinadora harmoniza ainda mais com o que se pretende falar:
Sem dúvida alguma, a família idealizada constitucionalmente é multifacetária e aberta e, por essa razão, acolhe todo e qualquer modelo de família forjado pelos indivíduos no cotidiano. Inserem-se aqui as famílias monoparentais, as famílias formadas por netos e avós, por tios e sobrinhos, irmãos, e também fundadas em relacionamentos homoafetivos. A família, nesse milênio, é o instrumento canalizador de todos os afetos; o ambiente ideal para a realização espiritual e física do ser humano, e não uma instituição voltada apenas para a procriação e para a deseja de aspectos patrimoniais. (DONIZZETI, 2007, p.13)
Foi no começo do século XXI que as filiações socioafetivas começaram a crescer consideravelmente. Fala-se, portanto, de homens que possuem filhos sem nenhum vínculo biológico, ou seja, homens que acolhem esses filhos oriundos de uma nova união como se seus realmente fossem, educando-os, dando qualquer tipo de assistência e acima de tudo, amando-os.
Esses novos modelos familiares baseados na socioafetividade passou a ser cada vez mais comum, trazendo um maior despertar ao olhar jurídico atual. Tal termo traz consigo um fator tanto social quanto psicológico. Nesse sentido, o doutrinador Lôbo (2011, p.29, grifo do autor) expressa de forma clara aquilo que se pretende concluir:
O termo socioafetividade conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do princípio normativo (afetividade).
Ademais, Lôbo (2011) afirma que a família sempre será socioafetiva, em razão de ser um grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva. Todavia, a socioafetividade é empregada no Brasil para significar parentesco não biológico, de parentabilidade e filiação. E é justamente pela questão da filiação e paternidade socioafetiva que tal assunto tem ganhado cada vez mais abrangência no Brasil.
No decorrer do trabalho, as jurisprudências vão comprovar o que acima foi dito, isto é, o termo socioafetividade tem se tornado de suma importância e tem tido cada vez mais relevância no ambiente jurídico, tendo em vista que o mesmo deseja que sempre haja uma aproximação entre ele e a sociedade. Há todo um aparato por parte de doutrinadores para consolidar de vez o que dispõe o assunto e quanto aos juristas, os mesmos tem recorrido cada vez mais aos princípios para dirimir a questão tratada.
2.1 O Conceito de Filiação no Ordenamento Jurídico Brasileiro
A filiação é definida como a forma que uma pessoa possui de compartilhar o seu tempo cuidando de outrem de forma solidária, ou seja, é uma relação estabelecida por pais e filhos, gerando, portanto, efeitos e consequências jurídicas, conforme determina a CF/88 no seu art. 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
No Código Civil de 1916 (CC/16) o legislador estabeleceu três espécies de filiação: a legítima, a ilegítima e a legitimada. Seria legítimo aquele filho oriundo de uma união entre um homem e uma mulher. Por outro lado, seria ilegítimo a filiação que não houvesse sido concebida por uma união legalmente formalizada, conforme se pode perceber no art. 226 onde dizia que “Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos” e o art. 358 do referido diploma legal, onde dispunha que os filhos incestuosos e os adulterinos não poderiam ser reconhecidos.
Porém, diante das mudanças ocorridas ao longo do tempo na sociedade, conforme já foi mencionado anteriormente, a CF/88 e o Novo Código Civil (NCC) alterou consideravelmente os conceitos de filiação, a prova disso é o que estabelece o parágrafo 6º do art. 227 da CF/88, em que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
E foi levando em consideração os dispositivos legais acima mencionados que o legislador modificou no NCC a forma que se deve reconhecer um filho havido fora do casamento. Porém, nesse contexto, o magistério de Maria Berenice Dias (2013) ensina que o legislador permanece fazendo presunções acerca da paternidade, pois tal fato ainda ocorre porque há uma tentativa de, a qualquer custo, manter uma visão sacralizada da família e de preservá-la ao máximo, pois o legislador permanece distinguindo por títulos os filhos concebidos no casamento e aqueles havidos fora dele.
Mesmo havendo críticas por parte da doutrinadora acima mencionada, o que se pode ver no art. 1609 do Código Civil de 2002 (CC/02)[4] é que o conceito de filiação ilegítima foi definitivamente retirada do ordenamento jurídico, pois na referida norma que se encontra os direitos aos filhos concebidos fora do casamento de serem reconhecidos legalmente. Conforme se pode ver abaixo:
Já no que tange ao filho maior de idade, o mesmo não poderá ser reconhecido sem o seu consentimento e o que seja reconhecido enquanto for menor de idade, poderá impugnar o seu reconhecimento em um prazo de 04 (quatro) anos que suceder a sua maioridade e emancipação, tal ação é conhecida como ação de impugnação ao reconhecimento (art. 1614 CC/02).
Por outro lado, enfatizando mais a questão da atual filiação, Berenice Dias (2013, p.360) exemplifica claramente os conceitos de filiação para a biologia e para o direito, veja-se:
Para a biologia, pai é unicamente quem, em uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho. Para o direito, o conceito sempre foi diverso. Pai é marido da mãe. Até o advento da Constituição, que proibiu designações discriminatórias relativas à filiação (CF 227 §6º), filho era exclusivamente o ser nascido 180 dias após o casamento de um homem e uma mulher, ou 300 dias depois do fim do relacionamento. Essas presunções buscavam prestigiar a família, único reduto em que era aceita a procriação. A partir do atual Código Civil, a presunção de paternidade não é exclusivamente da filiação biológica.
Portanto, conforme se ver, a origem genética deixou de ser um fator determinante para constituir filhos. Deste modo, com o advento da CF/88, criou-se novos conceitos de filiação, são elas: filiação biológica, heteróloga, homóloga e a socioafetiva.
Tem-se como filiação biológica aquela originada pela consanguinidade, ou seja, aquela de origem natural, que pode ser comprovada por meio de exames de DNA, levando a uma verdade mais técnica acerca da paternidade.
Já a filiação heteróloga nada mais é do que aquela que é originada por meio de uma inseminação artificial onde o sémen utilizado para fecundar os óvulos de uma mulher não é do atual marido da mesma, e sim de um outro homem. Tal fato deve decorrer de um consentimento daquele que irá ser pai não de fatos biológicos, mas de fatos juridicamente aceitos (art. 1597, inciso V do CC).
Não tão diferente, a filiação homóloga consiste também na inseminação artificial, porém, o sêmen e o óvulo utilizado é o do próprio casal, mas eles não conseguem fecundá-los por meio de um ato sexual. Tal situação está prevista no art. 1597, incisos III e IV do CC.
Por fim, a filiação socioafetiva, é aquela proveniente da convivência familiar onde há afeto. Trata-se de um novo conceito que vem retratando a atual realidade. Ou seja, a socioafetividade está fundamentada muito mais na questão do amor do que em qualquer outro aspecto.
2.2 A Paternidade decorrente da Filiação Socioafetiva
Na última década, mais precisamente nos dois últimos anos (dois mil e doze e dois mil e treze), a paternidade decorrente da filiação socioafetiva vem se tornando cada vez mais comum. Homens que ao se casarem ou começarem a viver uma união estável com uma mulher, recebem, como se seus fossem, os filhos oriundos de um outro relacionamento e mesmo assim os tratam com muito amor e os educam.
Além disto, cabe aqui falar que o pai afetuoso é de uma função extremamente especial no crescimento de uma família e mais especificamente de uma criança, pois aqui acredita-se que o “pai é aquele ligado pelos intensos e inesgotáveis laços de afeto. Aquele que cuida, protege, alimenta, educa, que participa intensamente do crescimento físico, intelectual e moral da criança, dando-lhe o suporte necessário para que se desenvolva como ser humano”. (DONIZETTI, 2007, p. 15). Ou seja, um bom pai ensina os verdadeiros valores da vida, ensina a conviver em sociedade de forma honesta e digna, traz paz e tranquilidade.
Seguindo com o entendimento, recentemente criou-se um novo conceito de parentesco, o de parentalidade socioafetiva, ou seja, é o envolvimento do aspecto sentimental, originado pela convivência, levando a um laço afetivo de carinho, amor e atenção, e esse tipo de parentesco deixou de ser necessariamente consanguíneo, deixando de lado a questão econômica, religiosa e patrimonialista que se tinha de uma família. É nesse sentido que Berenice Dias (2013, p. 363) dispõe:
Todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. ditas expressões nada mais significam do que o reconhecimento, também no campo da parentalidade, do novo elemento estruturante do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de paternidade, que compreende o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente de sua origem, se biológica ou afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos.
Doutrinariamente existem quatro modalidades de paternidade socioafetiva, são elas: a adotiva, ora previsto em lei; as dos filhos de criação, é aquela criança carente que passa a conviver junto com uma família sabendo que não há qualquer vínculo biológico entre as duas partes; a adoção à brasileira, ou seja, é o registro de filho alheio como próprio, este está tipificado no caput do art. 242 do Código Penal Brasileiro (CPB), sendo considerado crime; e por fim, o reconhecimento voluntário, que é decorrente da paternidade socioafetiva e é justamente o que se falará neste trabalho científico.
A figura da paternidade socioafetiva vai muito mais além do que a de um laço biológico, afinal, não basta apenas ter o título de pai, tem que criar. E é nesse contexto que se pode retirar do art. 226, parágrafo 7º junto com o art. 229 da CF/88, a figura da paternidade responsável, onde há o dever de assistir, zelar, criar e educar os filhos. Porém, há muitos pais socioafetivos que proporcionam esse “dever” de uma forma muito mais conveniente do que o próprio pai biológico. É a partir daí que surge de uma forma bem simplificada a frase: “pai não é aquele que te coloca no mundo, pai é quem cria”. É o que diz Lôbo (2011, p. 218):
[...] A responsabilidade e os deveres dos pais derivam dos direitos dos filhos à igualdade. O direito anterior, assentado nas restrições e limitações dos direitos dos filhos, contribui para as reduções proporcionais dos deveres e da responsabilidade dos pais. A igualdade dos filhos igualou a responsabilidade dos pais para com eles.
É diante disso que vale a pena relembrar um caso bem recente acerca do menino Bernardo, de 11 anos, que veio a ser encontrado morto na cidade de Três Passos – RS. O menino, antes de ser morto pela madrasta com o suposto aval do pai, relatou ao Ministério Público local que sofria de “indiferença e desamor”. Em vídeos pessoais do celular do pai e divulgado pela polícia, é notório o sofrimento que essa criança tinha nos olhos, ela era visivelmente perturbada e constrangida pelo próprio pai. Portanto, Bernardo sofria de evidências claras de abandono afetivo no seu âmbito familiar, devendo a todo instante ter lidado com a falta de amor, carinho e cuidado do seu pai.
Acerca do abandono afetivo, é válido trazer algumas considerações, pois o tema tem levado bastante discussões aos Fóruns e Tribunais de todo o Brasil por sua divergência no que diz respeito as indenizações pleiteadas por um filho em face da não afetividade por parte do pai. Foi por meio de inúmeros processos a respeito do assunto que o Superior Tribunal de Justiça em recente decisão (EREsp 1.159.242/SP, relatado pelo Ministro Marcos Bruzzi) terá a oportunidade de uniformizar o entendimento, ou seja, o intuito é de fazer com que juízes de todo o território brasileiro tenham por base uma definitiva orientação jurisprudencial da Corte.
Nesse contexto, a ministra Nancy Andrighi no brilhante julgado do REsp 1.159.242/SP, em 24 de abril de 2012, conceituou os motivos pelos quais a indenização em favor do filho é completamente cabível, levando em consideração que o abandono afetivo constitui um descumprimento ao art. 227 da CF/88, que é justamente o dever legal de cuidar, educar e criar.
[...] Dessa forma, está consolidado pelo Tribunal de origem ter havido negligência do recorrente no tocante ao cuidado com a sua prole. Ainda, é prudente sopesar da consciência do recorrente quanto as suas omissões, da existência de fatores que pudessem interferir, negativamente, no relacionamento pai-filha, bem como das nefastas decorrências para a recorrida dessas omissões – fatos que não podem ser reapreciados na estreita via do recurso especial. Dessarte, impende considerar existente o dano moral, pela concomitante existência da tróica que a ele conduz: negligência, dano e nexo.
Portanto, o que se pode retirar acerca do abandono afetivo é que a presença da afetividade é definitivamente de extrema importância para uma relação fraternal entre pai e filho. O pai não somente deve cumprir com as suas obrigações e consequências de ser pai, mas também deverá dar ao filho o amor.
Acerca do que dispõe a socioafetividade, o art. 1593 do CC/02 mostra que “o parentesco pode ser natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Desta forma, os doutrinadores são bem pacíficos ao afirmar que o termo "outra origem” ora dito no artigo, venha dispor também de laços familiares afetivos, bem como a paternidade afetiva.
No mesmo sentindo, o art. 1584[5], parágrafo quinto fala acerca da guarda de terceiros, ou seja, o juiz verificando que o filho não deve permanecer sob a guarda dos pais, irá deferir a guarda da criança para à pessoa que mostre compatibilidade com o grau de afinidade e afetividade. O artigo constata o que foi dito em relação aos princípios acima descritos, onde a maior preocupação é sempre o bem-estar da criança.
É importante ressaltar que as jurisprudências são essenciais para o desenvolvimento do tema, tendo em vista que se trata de casos sociais, mostrando, por conseguinte, a veracidade do tema dentro da sociedade. Diante disso, segue a jurisprudência do STJ reconhecendo claramente a paternidade socioafetiva, tendo como Relatora a Ministra Nancy Andrighi, REsp 878.941/DF, Terceira Turma:
Ementa: RECONHECIMENTO DE FILIAÇAO. AÇAO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇAO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ. O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrário sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido.
Portanto, o que se pode ver é que em caso prático, os próprios Tribunais vêm preponderando a questão afetiva, caso em que cada vez mais ganha o seu devido reconhecimento por parte de doutrinadores e demais julgadores.
2.3 Posse de estado de Filho
Primeiramente, a posse de estado de filho vem tratar acerca da filiação socioafetiva, diz respeito a criação feita por convivência familiar oriunda de amor, ou seja, conceitua-se como uma “relação psicoafetiva existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobretudo afeto, dedicação, cuidado e abrigo assistencial”. (GAMA, 2008, p. 399).
A posse de estado de filiação vem basear-se na teoria da aparência, isto é, ela vem tratar acerca de uma situação aparente, ou seja, “a posse de estado de filiação refere à situação fática na qual uma pessoa desfruta do status de filho em relação a outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal.” (LÔBO, 2011, p. 237). Como exemplo, tem-se os filhos de criação. Em meio ao tema da teoria da aparência, Berenice Dias (2013, p. 380) leciona:
A aparência faz com que todos acreditem existir uma situação não verdadeira, fato que não pode ser desprezado pelo direito. Assim, a tutela da aparência acaba emprestando juridicidade a manifestações exteriores de uma realidade que não existe. Os vínculos de parentalidade fornecem grandes exemplos à teoria da aparência: a paternidade se faz, como diz Luis Edson Fachin, o vínculo de paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir. Essa realidade corresponde a uma aparente relação paterno-filial.
O reconhecimento do estado de posse de filiação se fundamentará em meio ao princípio da afetividade. No CC/02 esse reconhecimento estará disposto nos artigos 1593[6] e 1605[7] e dar-se-á por meio de três requisitos: nomem (a pessoa se utiliza do nome de família dos pais), tractatus (a pessoa tem o tratamento e o cuidado como se filho fosse, bem como dar aos que cuidam dela o tratamento de pais) e, por fim, a fama (a pessoa tem o reconhecimento de filha não só perante a família, mas também diante da comunidade da qual é inserida). Todos esses requisitos devem ser comprovados por meio de documentos, testemunhas, entre outras provas que garantem a filiação existente.
Dessa forma, quando se faz presente o reconhecimento da paternidade socioafetiva, se percebe claramente a vontade de ambos os lados, ou seja, a vontade de ser pai e filho, devendo haver, nesse caso, não só os cumprimentos legais existentes, mas, acima de tudo, deverá levar em consideração a criação feita com sentimentos que priorizem o afeto, cuidado, carinho, enfim, sentimentos imprescindíveis para uma formação saudável de uma criança.
3 DOS EFEITOS JURÍDICOS DECORRENTES DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A nova concepção de família, a socioafetiva, passou a ter uma característica comum entre alguns juristas brasileiros. Ao fundamentarem as suas decisões, os magistrados têm buscado interligar os princípios que melhor se adequam ao assunto em questão, como o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e o reconhecimento da posse de estado de filho, ensejando, portanto, a filiação de caráter socioafetivo. Senão observa-se o que dispõe a decisão do Relator Desembargador Cláudio Neves do Tribunal de Justiça do Pará – TJPA:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.618 a 1.629 DOCC. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO À UNANIMIDADE. I. A boa doutrina, perfilhada pelo eminente professor Luiz Edson Fachin, leciona que a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação psicoafetiva, aquele, enfim, que além de poder lhe emprestar seu nome de família, o trata verdadeiramente como seu filho perante o ambiente social, o que se mostra patente nos presentes autos. II. Recurso conhecido e provido à unanimidade. (TJ-PA - AC: 200830025654 PA 2008300-25654, Relator: CLAUDIO AUGUSTO MONTALVAO DAS NEVES, DJe: 15 de dezembro de 2008, Data de Publicação: 18/12/2008.)
Nesse caso, quando se percebe que o vínculo afetivo está acima do vínculo biológico, não há motivos para que se deixe de reconhecer a paternidade e nem de afastar a criança daquilo que visivelmente é o melhor para ela. É o que diz a doutrinadora Berenice Dias (2013, p. 412): “[...] assim, em vez de se buscar a identificação de quem é o pai ou de quem é a mãe, passou-se a atentar muito mais ao interesse do filho na hora de descobrir quem é o pai “de verdade”, ou seja, aquele que o ama como seu filho e é amado como tal”.
Diante disso, é possível afirmar que os Tribunais têm procurado atender aos anseios da sociedade no que diz respeito ao assunto em questão, valorizando, portanto, o princípio da afetividade e viabilizando interessantes possibilidades no âmbito jurídico-social, ou seja, no que diz respeito as lacunas ora encontradas no Direito de Família em relação ao assunto em questão, os julgadores não tem tomado uma posição de omissão, pelo contrário, os mesmos tomam como base para fundamentarem suas decisões os princípios inerentes e eficazes no caso concreto. Uma das decisões estudadas e ora trazidas para fins de análise, diz respeito a consolidação da paternidade socioafetiva:
Ementa: CIVIL - FAMÍLIA - AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO - PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA CONSOLIDADA - PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE - SENTENÇA MANTIDA. 1. para consolidação da paternidade sócio-afetiva é necessário que seja estabelecido vínculo de afetividade entre o pai registral e a menor, além de serem bem atendidos os interesses primordiais da criança como proteção, educação, alimentação, saúde, afeto, etc. 2. se pelas provas existentes nos autos não pairam dúvidas acerca da existência dos requisitos que dão ensejo à paternidade sócio-afetiva, tendo o pai registral efetuado, por livre e espontânea vontade, o registro de nascimento da menor como se sua filha fosse, além dos depoimentos colhidos e dos laudos psicossociais darem conta de que a menor se encontra inserida no seio familiar paterno, deve ser mantida a sentença que julga improcedente o pedido de anulação de registro civil de nascimento. 3. recurso conhecido e não provido. (TJ-DF - APL: 127207020048070007 DF 0012720-70.2004.807.0007, Relator: HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, Data de Julgamento: 07/10/2009, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: 16/10/2009, DJ-e Pág. 143)
A contrario sensu, percebe-se que quando há decisões em que não há o reconhecimento da paternidade socioafetiva, uma das primeiras ressalvas feitas por magistrados é justamente o fato de não ter sido evidenciado o vínculo socioafetivo entre suposto pai e filha(o), ou seja, é de suma importância que o reconhecimento da relação de afetividade existente entre pai e filha seja comprovada, pois a falta de quaisquer pré-requisitos para que se reconheça a paternidade socioafetiva já se torna o suficiente para fins de ação negatória de paternidade, em que o juiz defere a supressão do registro civil o nome da figura paterna lá existente. Diante disso, atente-se com o que dispõe o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. SENTENÇA QUE JULGOU EXTINTO O FEITO COM FUNDAMENTO NO ART. 267, V, DO CPC, DIANTE DA OCORRÊNCIA DE COISA JULGADA. PATERNIDADE RECONHECIDA ESPONTANEAMENTE. MÉRITO. IRRESIGNAÇÃO DO AUTOR. DÚVIDA POSTERIOR AO RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO E ALEGAÇÃO DE INDUÇÃO A ERRO PELA GENITORA E INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO SOCIOAFETIVO. EXAME DE DNA NÃO REALIZADO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. CERCEAMENTO DE DEFESA CONFIGURADO. SENTENÇA CASSADA. Nos termos do julgamento do RE 363.889/DF, com repercussão geral "deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo" RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ-SC - AC: 20120218051 SC 2012.021805-1 (Acórdão), Relator: Rubens Schulz, Data de Julgamento: 09/03/2014, Câmara Especial Regional de Chapecó Julgado)
É importante ressaltar que o termo “paternidade socioafetiva” ganhou uma maior conotatividade no âmbito jurídico através dos julgados do Tribunal do Rio Grande do Sul que, desde o início da relação com o tema até hoje, proferiu decisões que não deixam de ser um grande aprendizado a referida temática. Diante disso, segue uma ementa do referido Tribunal para fins de observação:
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. REGISTRO CIVIL. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. DESCABIMENTO. 1. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB). 2. A anulação do registro, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro, dolo, simulação ou fraude), mas tal prova não foi produzida. 3. Se o autor registrou a ré há vinte anos, mesmo sabendo da possibilidade desta não ser sua filha, e a tratou sempre como filha, então não pode pretender a desconstituição do vínculo, pela inexistência do liame biológico, não havendo dúvida alguma sobre a existência da paternidade socioafetiva. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70060814498, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 27/08/2014) (TJ-RS - AC: 70060814498 RS , Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 27/08/2014, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/09/2014).
Embora quase não haja controvérsias entre a doutrina e a jurisprudência em relação ao tema, tendo em vista que aplicação do afeto está visivelmente configurada como um princípio a ser seguido, é importante que se fale acerca do Projeto de Lei 2.285/07, mais conhecido como o Estatuto das Famílias (elaborado pelo IBDFam – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias, em comemoração aos seus dez anos no ano de 2007). A mencionada proposição legislativa, mesmo depois de sete anos, ainda continua em tramitação no Congresso Nacional, trazendo uma inovação no seu artigo 10, o qual expressa que o parentesco pode se dar por meio da consanguinidade, socioafetividade ou afinidade. Acerca do Projeto de Lei (PL), Rodrigo da Cunha Pereira (2011, online) em seu artigo acerca do novo Estatuto das Famílias interessantemente dispõe:
Casamentos, uniões estáveis, famílias recompostas, monoparentais, nucleares, binucleares, homoafetivas, família geradas por meio de processos artificiais... Esses são alguns dos diversos arranjos familiares do século XXI que compõem a nova realidade, cujo ordenamento jurídico atual não traduz. A família não está em desordem. Ela foi, é e continuará sendo o núcleo básico, essencial e estruturante do sujeito. O Estatuto das Famílias pretende regulamentar e legitimar todas as formas de família. Ele certamente trará incômodo e talvez até arrepios, mas não poderia deixar de ser a mais autêntica tradução da realidade. O PL traz consigo, em sua essência, o valor jurídico norteador de todas as relações: o afeto.
Desta feita, o doutrinador fala que o PL dispõe acerca da realidade fática ora vivenciada no cotidiano da sociedade e, enquanto não aprovada, os eminentes julgadores deverão basear-se na flexibilização e nos princípios fundamentais inerentes ao Direito de Família, e não apenas na legislação ora vigente.
Ademais, vale salientar que a constatação da paternidade socioafeitiva trará todos os efeitos que lhes são sujeitos, segundo a doutrina de Berenice Dias (2013, p.383), in verbis:
O reconhecimento da paternidade socioafetiva produz todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inerentes. O vínculo de filiação socioafetiva, que se legitima no interesse do filho, gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil. Se menor, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de segunda classe. O princípio da solidariedade se aplica a ambos (DIAS, 2013, p. 383,).
Por esse motivo é que se torna válido salientar que o reconhecimento da paternidade do pai não-biológico trará responsabilidades que o mesmo estará obrigado a cumprir.
3.1 O Registro de Nascimento
De acordo com o que já foi visto no decorrer deste trabalho, a filiação parental está diretamente ligada ao registro de nascimento (art. 1603 CC/02)[8], ou seja, é o meio probatório para fins de filiação, o mesmo goza de fé pública e tem como objetivo promover a autenticidade aos atos advindos da condição de ser pai.
Entretanto, esse meio não é exclusivo, pois há que se falar que também serão admitidas para fins de filiação a posse de estado de filho, ou seja, a que se dá por meio da convivência familiar (art. 1605 CC/02), nem definitivo, tendo em vista que o mesmo é passível de anulação (art. 1604 CC/02). Porém, no que diz respeito a anulação, a jurisprudência atual tem levado em consideração se há ou não a existência de vínculos socioafetivos, para fins de comprovação, segue o julgado da TJ/RS:
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. REGISTRO CIVIL. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. DESCABIMENTO. 1. O ato de reconhecimento de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB). 2. A anulação do registro, para ser admitida, deve ser sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro, dolo, simulação ou fraude), mas tal prova não foi produzida. 3. Se o autor registrou a ré há vinte anos, mesmo sabendo da possibilidade desta não ser sua filha, e a tratou sempre como filha, então não pode pretender a desconstituição do vínculo, pela inexistência do liame biológico, não havendo dúvida alguma sobre a existência da paternidade socioafetiva. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70060814498, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 27/08/2014) (TJ-RS - AC: 70060814498 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 27/08/2014, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/09/2014).
Mais adiante, Berenice Dias (2013, p. 373) fala que hoje o registro diante da socioafetividade se tornou inferior, porém, ele ainda é a “principal fonte de direitos e deveres: gera dever de alimentos e de mútua resistência, alicerça o direito sucessório e as limitações legais que regulam atos jurídicos entre ascendentes e descendentes”. Adequando o entendimento, a doutrinadora continua:
[...] No momento em que se admitiram entidades familiares não constituídas pelo matrimônio, passou-se a reconhecer a afetividade como elemento constitutivo da família. Essa mudança de paradigma não se limitou ao âmbito das relações familiares. Refletiu-se também nas relações de filiação. Com isso o estado de filiação desligou-se da verdade genética, relativizou-se o papel fundador da origem biológica. Como diz Paulo Lôbo, na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar.
Assim sendo, o que todos esperam que exista em uma entidade tão importante são os sentimentos verdadeiros, a paz, união, solidariedade, amor, generosidade, enfim, objetos fundamentais para que uma criança viva bem, tendo em vista que, vale ressaltar, acima de tudo, todas as crianças devem ser tratadas com profundo respeito.
Também é reconhecido nos Tribunais brasileiros que se havendo consciência de que tal pessoa não é o pai biológico e ainda assim faz questão de ter o seu nome no registro da criança, ao querer se desfazer de tal feito, não há como, tendo em vista que já estabeleceu um tipo de filiação: a socioafetiva. Senão observe o que diz a seguinte jurisprudência do Tribunal do Rio Grande do Sul – TJRS:
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL, MARIDO DA MÃE. DECLARAÇÃO DA VERDADE BIOLÓGICA. INTERESSE PATRIMONIAL. DESCABIMENTO DA ALTERAÇÃO DOS REGISTROS DIANTE DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONSOLIDADA HÁ MEIO SÉCULO. 1. Se o autor foi registrado pelo marido da sua mãe quando já contava 13 anos e sempre soube que não era filho do pai registral, então essa condição de filho restou consolidada como relação jurídica de paternidade socioafetiva que perdurou até o óbito do pai registral, quando já contava 49 anos de idade, sendo que somente providenciou na ação investigatória 6 anos após a morte do pai registral, visando vantagem patrimonial pois o pai biológico era pessoa abonada. 2. É irrelevante o fato de não ter sido discutida no processo a paternidade socioafetiva, pois essa relação emerge da condição de quem ostenta a posse do estado de filho, o que restou configurado, pois foi registrado como filho pelo marido da mãe que essa condição se manteve ao longo de várias décadas de vida. 3. É preciso ter em mira que a família é protegida de forma especial pelo Estado por ser a própria base da sociedade, cuidando o Estado para que, dentro dela, as pessoas se mantenham protegidas na sua dignidade, recebendo as primeiras e mais importantes noções de vida social e também os preceitos morais que devem nortear as suas vidas. 4. Não é possível desconsiderar a figura de quem foi sempre o verdadeiro pai do autor, que lhe deu o nome e o sustento, isto é, o amparo material e moral, bem como o suporte afetivo, ao longo de toda a sua vida, e cujo nome já carrega há mais de cinqüenta anos, descabendo promover alteração no registro civil. 5. Se o propósito da parte era conhecer o seu vínculo biológico, tal pretensão foi atendida com o exame de DNA realizado. Recursos desprovidos. (Apelação Cível Nº 70061424107, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 29/10/2014). (TJ-RS - AC: 70061424107 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 29/10/2014, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/11/2014)
O julgado acima só vem mostrar tudo que foi dito no decorrer do trabalho e o que mais se pretendeu discutir até aqui, ou seja, a figura paterna tendo consciência de que não é o pai biológico, mas ao casar com a mãe da criança, que não havia conhecimento de quem era o genitor, o mesmo fez questão de se tornar o pai registral e tal vínculo passou a ser reconhecido juridicamente como pai e filho socioafetivos. O julgador reconheceu sabiamente que não há que se falar em alteração de registro civil após 50 anos em que o autor carregou o nome do pai não-biológico, que foi sustentado pelo mesmo, e que foi ele quem lhe deu apoio moral e material, ou seja, o Relator entendeu, que pai é realmente aquele que cria, quem cuida, e tudo que o autor da ação queria, depois de todos esses anos sem conhecer o pai biológico, era obter vantagem patrimonial.
Nesse caso, resta claro que “a filiação socioafetiva é a real paternidade do afeto e da solidariedade; são gestos de amor que registraram a colidência de interesse entre o filho registral e o seu pai de afeto”. (SANTOS, in BROCHADO; RIBEIRO, 2010, p. 180).
Em contrapartida, a Ministra Nancy Andrighi em um dos seus julgados recentes, trouxe à tona que a paternidade socioafetiva não afasta o direito de reconhecimento da paternidade biológica, esclarecendo melhor os fatos, a filha que foi registrada pelo companheiro da sua mãe entrou com uma ação de investigação de paternidade pretendendo ser biologicamente reconhecida e pedindo a alteração do seu sobrenome no registro de nascimento bem como ser inserida no rol de herdeiros universais no inventário do seu pai biológico. Desta feita, decidiu a Ministra:
FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENÉTICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL. Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. [...] É importante frisar que, conquanto tenha a recorrida usufruído de uma relação socioafetiva com seu pai registrário, nada lhe retira o direito, em havendo sua insurgência, ao tomar conhecimento de sua real história, de ter acesso à verdade biológica que lhe foi usurpada, desde o nascimento até a idade madura. (STJ, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/10/2013, T3 - TERCEIRA TURMA)
No caso narrado, ocorreu que a autora da ação, ou seja, a filha, teve sua história escondida por muitos anos, sem que ela tivesse um direito de escolha, sem que ela pudesse saber da sua verdade real. Nesse caso a ministra afirmou que “a paternidade socioafetiva não pode ser imposta contra a pretensão de um filho, quando é ele próprio quem busca o reconhecimento do vínculo biológico”.
Portanto, o que se observa com o que foi trazido até aqui é que o registro vem consolidar os direitos inerentes a dignidade da pessoa humana, não sendo ele necessariamente constituído pelo nome do genitor, tendo em vista que hoje o registro de nascimento poderá se dar por meio da posse de estado de filho, reconhecendo, nesse caso, a socioafetividade, onde a criança passa a ter todos os seus direitos reconhecidos, tais como os alimentos e os direitos sucessórios.
Por fim, cabe ressaltar um caso que ocorreu no Estado de Rondônia em março de 2011, onde um juiz reconheceu o que podemos denominar de “família multiparental”, ou seja, uma criança teve no seu registro de nascimento a presença de dois pais, um biológico e o outro socioafetivo, pois na época em que a criança nasceu o pai socioafetivo a registrou em seu nome, porém, tempos depois o pai biológico começou a ter uma relação afetiva com a criança e entrou na justiça com uma ação para que seu nome fosse incluído no registro da criança, e então, ficou decidido que a afetividade existia em ambos e que o mais viável seria colocar no registro de nascimento o nome dos dois pais. Isso é justamente o judiciário se moldando aos anseios da sociedade, é um caso admirável de se deixar registrado.
3.2 O Dever de Prestar Alimentos decorrente do vínculo Socioafetivo
Conforme já foi estudado no segundo capítulo deste trabalho, o poder familiar era tratado de forma desigual entre os pais, tendo em vista que a única pessoa que poderia exercer poderes sobre sua família era apenas a figura paterna, porém, esse contexto foi definitivamente alterado pela CF/88, cuja redação determina que a responsabilidade dentro de um núcleo familiar deve ser exercida por ambos os pais e, no CC/02, diz que na falta de um deles, o outro exercerá com exclusividade.[9]
Entretanto, a obrigação contida não é necessariamente direcionada aos pais biológicos, mais especificamente falando, o pai registral, independente dele ser biológico ou não, tendo ele a obrigação de arcar com o título que recebeu, ou seja, o de pai que guarda e zela pelo seu filho. O art. 1634[10] do CC/02 combinado com o art. 33 do ECA elenca as principais obrigações dos pais para com os seus filhos, dentre eles, está a obrigação de dar assistência moral, material e educacional. Nesse caso, a prestação de alimentos está subentendida nas obrigações inerentes aos guardiões, senão observe-se o que dispõe Berenice Dias (2013, p. 558):
Quando se fala em obrigação alimentar dos pais sempre se pensa no pai registral, que, no entanto, nem sempre é o pai biológico. Como vem sendo prestigiada a filiação socioafetiva – que, inclusive, prevalece sobre o vínculo jurídico e genético -, essa mudança também se reflete no dever de prestar alimentos. Assim, deve alimentos quem as funções parentais. O filho afetivo tem direito aos alimentos dos pais genéticos não apenas quando ocorre a impossibilidade de alimentação pelos pais afetivos, mas também quando há necessidade de complementação da verba alimentar.
A jurisprudência atribui a filiação sociafetiva com as mesmas obrigações ligadas a adoção, ou seja, uma vez qualificada a paternidade socioafetiva, os filhos deste pai terão os mesmos direitos que os filhos legítimos, retirando, no caso, a possibilidade de um arrependimento posterior, tendo em vista que a adoção é um ato irrevogável e irretratável, atribuindo-lhes o que há no capítulo acerca da adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 39 a 52), é o que mostra o julgado da Relatora desembargadora Maria Berenice Dias do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Quem, sabendo não ser o pai biológico, registra como seu filho de companheira durante a vigência de união estável estabelece uma filiação sócio-afetiva que produz os mesmos efeitos que a adoção, ato irrevogável. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE E AÇÃO ANULATÓRIA DO REGISTRO DE NASCIMENTO. O pai registral não pode interpor ação negatória de paternidade e não tem legitimidade para buscar a anulação do registro de nascimento, pois inexiste vício material ou formal a ensejar sua desconstituição. Embargos rejeitados, por maioria.
Dito isso, os alimentos se confirmam a partir do momento em que o companheiro ou cônjuge da mãe da criança e pai socioafetivo dela se separa e é a partir desse momento que a criança representada pela sua mãe poderá pleitear em face do pai socioafetivo os alimentos ora devidos, devendo o julgador ter como base as condições e necessidades do alimentando. Tal situação está respaldada no art. 1694 CC/02[11] e fundamentada na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS E AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE VONTADE NO REGISTRO CIVIL DO MENOR. EXISTÊNCIA DE PATERNIDADESOCIOAFETIVA. PARA QUE SEJA POSSÍVEL A ANULAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DEVE SER DEMONSTRADO UM DOS VÍCIOS DO ATO JURÍDICO OU A AUSÊNCIA DA RELAÇÃO DE SOCIOAFETIVIDADE. INEXISTÊNCIA DE QUALQUER DOS VÍCIOS DO ATO JURÍDICO E PELA RELAÇÃO SOCIOAFETIVA EXISTENTE ENTRE O MENOR E O PAI REGISTRAL. É CONSABIDO QUE, SEGUNDO O ARTIGO 1.694, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL, OS ALIMENTOS DEVEM SER FIXADOS EM CONFORMIDADE COM AS NECESSIDADES DO RECLAMANTE E OS RECURSOS DA PESSOA OBRIGADA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70046812434, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Munira Hanna, Julgado em 20/03/2013) (TJ-RS - AC: 70046812434 RS , Relator: Munira Hanna, Data de Julgamento: 20/03/2013, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 22/03/2013).
Dessa maneira, é comprovado por meios de decisões e doutrinas que há cabimento de prestação de alimentos entre pais e filhos socioafetivos. Tendo em vista que conforme já foi dito, a paternidade socioafetiva ao ser reconhecida ela gerará os mesmos efeitos de uma adoção e o art. 227 da CF/88 não discrimina os tipos de filiações ora existentes, ou seja, não importa para a Magna Carta se o filho foi gerado na constância do casamento ou não, se ele é biológico ou não, o que realmente importa é justamente aquilo que por vontade de ambas as partes foi reconhecido como tal.
3.3 Os Direitos Sucessórios inerentes a Filiação Socioafetiva
Maria Helena Diniz (2007, p.3) diz que os direitos sucessórios são entendidos como um “conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio de alguém, depois de sua morte, ao herdeiro, em virtude de lei ou de testamento. Consiste, portanto, no complexo de disposições jurídicas que regem a transmissão de bens ou valores e dívidas do falecido”.
Quanto ao direito do filho socioafetivo em pleitear uma ação de alimentos, também é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que os direitos sucessórios também são de característica atribuída a filiação socioafetiva.
Diante da igualdade entre filhos atribuída pela CF/88, já fundamentada anteriormente, a filiação decorrente da paternidade socioafetiva atribuirá direitos sucessórios a esse filho ora tido como filho não biológico, mas filho de afeto, de coração.
Porém, deve restar comprovado os requisitos inerentes a socioafetividade, ou seja, o nome, o tratamento e a fama, e não apenas pleitear o direito de herança porque foi criado um vínculo desde os primeiros anos de vida, como é o caso da seguinte decisão do TJ/RS:
APELAÇÃO. ANULATÓRIA DE PARTILHA EXTRAJUDICIAL. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECONHECIMENTO. Inexistente a relação jurídica de filiação, inexiste legitimidade para postular o direito sucessório como pretende através da anulatória de escritura pública de inventário extrajudicial. Caso em que o autor alega ser filho adotivo, pois criado pelo casal desde o primeiro ano de vida, porém, ausente declaratória de vínculo socioafetivo. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70060947835, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11/09/2014) (TJ-RS - AC: 70060947835 RS , Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 11/09/2014, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/09/2014).
Portanto, individualizando cada caso e tendo comprovações legais que é a pessoa um filho socioafetivo, que está legalmente inserido no rol taxativo que comprova o estado de filiação, não há que se falar da não existência dos direitos sucessórios bem como a prestação de alimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A paternidade sempre esteve presente, porém, desde antigamente, no tempo histórico, como o Império, a Colônia e em meados do século XX, o que se observava era que a figura do pai possuía uma total soberania sobre filhos e esposas. As relações de parentescos eram baseadas na autoridade e hierarquia patriarcal. Porém, diante da evolução da sociedade bem como a mutação constitucional que ocorrera objetivando o acompanhamento junto a sociedade, ocorreram grandes mudanças na entidade familiar, como por exemplo, os direitos igualmente distribuídos entre homens e mulheres, ou seja, a mulher passou a ter o direito de voz dentro do contexto familiar.
No Código Civil de 1916 (CC/16) o legislador estabeleceu três espécies de filiação: a legítima, a ilegítima e a legitimada. Seria legítimo aquele filho oriundo de uma união entre um homem e uma mulher. Por outro lado, seria ilegítimo a filiação que não houvesse sido concebida por uma união legalmente formalizada. Porém, tais conceitos foram definitivamente abolidos pelo legislador, a prova disso é o que estabelece o §6º do art. 227 da CF/88, em que os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Foi no começo do século XXI que as filiações socioafetivas começaram a crescer consideravelmente. Fala-se, portanto, de homens que possuem filhos sem nenhum vínculo biológico, ou seja, homens que acolhem esses filhos oriundos de uma nova união como se seus realmente fossem, educando-os, dando qualquer tipo de assistência e acima de tudo, amando-os. Esses novos modelos familiares baseados na socioafetividade passou a ser cada vez mais comum, trazendo um maior despertar ao olhar jurídico atual.
A paternidade socioafetiva tem como embasamento principal os princípios que são inerentes a ela, como por exemplo os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da afetividade. Por meio da junção desses princípios foi que nasceu o conceito “Posse de Estado de Filho”, ou seja, surge-se um novo conceito de filiação, aquela que é minimamente ligada ao convívio familiar, com sentimentos bons e recíprocos. Porém, há critérios que devem ser utilizados e devidamente comprovados para levar em consideração a posse de estado de filho, são eles: nomem (a criança se utiliza do nome de família dos pais), tractatus (recebe o tratamento e o cuidado como se filho fosse, bem como dar aos que cuidam dela o tratamento de pais) e, por fim, a fama (há o reconhecimento de filha não só perante a família, mas também diante da comunidade da qual é inserida).
Diante disso, pode-se falar que quando há o reconhecimento da paternidade socioafetiva, fica declarado que há claramente a vontade de ambos os lados, ou seja, a vontade de ser pai e filho, devendo haver, nesse caso, não só os cumprimentos legais existentes, mas, acima de tudo, deverá levar em consideração a criação feita com sentimentos que priorizem o afeto, cuidado, carinho, educação, respeito e amor.
O reconhecimento da paternidade socioafetiva irá produzir todos os efeitos inerentes a paternidade, ou seja, a obrigação contida não é necessariamente direcionada aos pais biológicos. Mais especificamente falando, o pai registral, independente dele ser biológico ou não, tem a obrigação de arcar com o título que recebeu, ou seja, o de pai que guarda e zela pelo seu filho.
O registro vem consolidar os direitos inerentes a dignidade da pessoa humana, não sendo ele obrigado a se consolidar apenas com o genitor, tendo em vista que hoje o registro se dá por meio da posse de estado de filho, reconhecendo, nesse caso, a socioafetividade, onde a criança passa a ter todos os seus direitos reconhecidos, tais como os alimentos e os direitos sucessórios.
As jurisprudências equiparam a filiação socioafetiva com as mesmas obrigações ligadas a adoção, ou seja, uma vez qualificada a paternidade socioafetiva, os filhos deste pai terão os mesmos direitos que os filhos legítimos, retirando, no caso, a possibilidade de um arrependimento posterior, tendo em vista que a adoção é um ato irrevogável e irretratável, atribuindo-lhes o que há no capítulo acerca da adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 39 a 52).
Dessa forma, conclui-se que baseando-se as ideias no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como nos princípios, jurisprudências e na própria Constituição Federal, é válido afirmar que o filho socioafetivo poderá pleitear uma ação de alimentos em favor do seu pai socioafetivo, e, também é reconhecido pelas jurisprudências e doutrinadores que os direitos sucessórios também são de característica atribuída a filiação socioafetiva.
Diante de tudo que foi exposto, chega-se a uma conclusão que o que se pretendeu defender nesta pesquisa é que a mera ligação biológica entre pai e filho não deve ser requisito fundamental para que se prepondere sobre a socioafetiva, tendo em vista que em muitos casos a figura paterna afetiva trata com mais amor, carinho, respeito do que o próprio genitor. Nesse caso, o que se deseja é que a socioafetividade seja definitivamente inserida na legislação brasileira vigente, ou seja, que ela deixe de ser uma ideia dedutiva e passe a se tornar algo mais concreto, tendo em vista que a sociedade já a aceitou.