A concretização do direito à saúde pelo Poder Judiciário


03/09/2014 às 16h30
Por Ivan Bandeira de Melo de Deus

I – INTRODUÇÃO

A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, subscrita pela Organização das Nações Unidas, os direitos fundamentais passaram a ser um componente indispensável ao ordenamento jurídico de toda e qualquer nação democrática. Em nossa Carta Magna estão eles dispostos na seguinte ordem: a) direitos individuais e coletivos; b) direitos sociais; c) direitos de nacionalidade; d) direitos políticos; e) direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos. No § 1º do art. 5º do Texto Constitucional está escrito: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Porém, a Carta de Outubro já conta com mais de vinte anos e as suas normas definidoras de direitos fundamentais, especialmente, no âmbito dos direitos sociais, muito ainda necessitam de atuação legislativa e governamental para serem plenamente efetivadas. A concretização do direito à saúde (art. 6º, caput; art. 196, CF), que é a um só tempo direito fundamental individual e social, encontra-se na atualidade, sendo tema que mais aflige a população. Afinal, recebeu ela do Constituinte, em 5.10.1988, a promessa formal de que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (art. 196, CF). Para ver concretizado o direito de tratar-se de suas enfermidades e defender a própria vida, o que se vê, na prática, é uma corrida dos brasileiros, não às filas dos hospitais, mas, às filas das defensorias públicas, dos PROCONs e dos escritórios de advocacia, em busca do ajuizamento de demandas judiciais. Em nome do respeito a um outro direito fundamental individual, o do livre acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF), o Poder Judiciário tem cumprido o seu papel, decidindo e efetivando suas decisões. Reconhece, porém, que tais demandas poderiam não estar acontecendo e poderiam ser evitadas, na medida em que o Legislativo e o Executivo se mobilizassem de forma produtiva e eficaz na implementação de políticas públicas de ordem social e econômica garantidoras da concretude do sagrado direito à saúde do povo. Angustiado com tal situação fática, a que chamam “judicialização da saúde”, o Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública em abril de 2009 e o Conselho Nacional de Justiça recomendou em março de 2010, a todos os tribunais de justiça do Brasil que mobilizasse juízes, autoridades legislativas e governamentais e a sociedade em geral para discussões recorrentes sobre a concretização do direito à saúde. Por isso, aqui estamos reunidos neste Primeiro Seminário de Direito Sanitário sob os auspícios do egrégio Tribunal de Justiça e da Escola Superior da Magistratura do Piauí, com especial apoio do Ministério Público do Estado e de outros órgãos estaduais com o propósito de identificar as dificuldades operacionais e apontar as soluções cabíveis e possíveis.

II – DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE

A saúde é direito fundamental de natureza social e se encontra previsto no caput do art. 6º da Constituição Federal. Mas, o que vem a ser saúde? Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, órgão da ONU, “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.” Como país membro da ONU e, por conseguinte, subscritor da OMS e de sua Constituição, a República Federativa do Brasil carrega consigo o dever de garantir aos brasileiros e aos que se encontrem em território nacional a prevenção e a cura de todas e quaisquer doenças. Com este propósito, dita a Carta Magna em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Um dos fundamentos de nossa República é a dignidade da pessoa humana (art. 3º, III, CF), princípio maior do constitucionalismo brasileiro, enquanto Estado Democrático de Direito. Seria ilógico imaginar que um ser humano, estando doente ou sob o risco de vir a contrair doença, possa gozar de bem estar físico, mental ou social. Pelo contrário, a falta de proteção à saúde ou o seu comprometimento por indiferença do poder público abalam a auto-estima, ferem a dignidade e precipitam o fim da vida das pessoas.

III – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Muito embora a Constituição Cidadã de 1988, com a sua força normativa, garanta o acesso universal, integral e igualitário à saúde, as políticas públicas ordenadas pelo Poder Constituinte não são implementadas e não lastreiam essa garantia. E assim sendo, na prática, é como se o texto constitucional do art. 196 estivesse a dizer que a saúde é direito de todos... mas o Estado não cumpre o seu dever de garantir a concretização plena desse direito fundamental. Não cumpre e explica – mas não convence – que assim age porque não dispõe de recursos financeiros suficientes para tal. Este é o seu principal argumento. Tão logo entrou em vigor a Constituição Federal, em 05.10.1988, já em 19.9.1990, era publicada a Lei federal n° 8.080, a chamada Lei Orgânica da Saúde, que instituiu o Sistema Único de Saúde no Brasil. Ainda naquele ano, entrou em vigor a Lei n° 8.142, de 28.12.1990, que disciplina a participação da comunidade na gestão do SUS e as transferências de recursos financeiros para aplicação nas ações e serviços de saúde no âmbito das três esferas de governo. A Emenda Constitucional n° 29, de 23.3.2000, dotou a Constituição Federal dos dispositivos necessários para garantir receita satisfatória ao Sistema Único de Saúde. Os recursos do SUS provêem das seguintes fontes, a saber: a) das dotações orçamentárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; b) das contribuições sociais do sistema de seguridade social (ex: COFINS – contribuição para financiamento da seguridade social; CSLL – contribuição sobre o lucro líquido das empresas; contribuição sobre a receita de concursos de prognósticos; CPMF – contribuição provisória sobre movimentação financeira, já extinta); c) da arrecadação do DPVAT3; d) de outras fontes provenientes de arrecadação direta, como multas, rendas, serviços etc.

O volume de recursos financeiros que alimentam e sustentam o Sistema Único de Saúde no Brasil é gigantesco. A Lei 8.142/90 determina que a arrecadação e a aplicação desses recursos sejam submetidas, nas três instâncias administrativas (federal, estadual/distrital e municipal), ao crivo das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde.

Há, portanto, todo um aparato legislativo suficiente para otimizar a atuação do SUS em território nacional. Ouso concluir que o que falta, a rigor, é cumprir a lei. Será que as Conferências de Saúde (nacional, estaduais e municipais), será que os Conselhos de Saúde (nacional, estaduais e municipais) estão cumprindo a contento os seus papéis? Vale dizer, será que os recursos do SUS estão sendo corretamente arrecadados? Ora, é forçoso concluir que expressiva parcela dessa gigantesca receita não esteja sendo arrecadada, seja pela sonegação de tributos, seja pela redução ou ausência de repasses governamentais. Urge, pois, que a sociedade organizada, os cidadãos em geral e as autoridades competentes, ajam em busca da correção desses desvirtuamentos que comprometem os propósitos do tão bem idealizado Sistema Único de Saúde do Brasil. E assim, não se falaria mais em ausência de recursos nem tampouco em ausência de implementação de políticas públicas na área da saúde. É certo que as mudanças sociais provocadas pelo fluir dos tempos exigem o acompanhamento de uma constante atualização legislativa, pois o Estado brasileiro é democrático e é de direito. Se na atualidade a legislação ainda é frágil para garantir a integralidade da arrecadação que alimenta o SUS e para garantir os respectivos repasses para os seus fundos, pois que se endureça a lei contra os obstaculizadores do sistema. A iniciativa popular, a atuação parlamentar e a mobilização de governos têm como fazer tais ajustes através do processo legislativo. De sua parte, o Judiciário está pronto para aplicar a lei e o direito ao caso concreto, pois esta é a sua função constitucional.

IV – CONCRETIZAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO À SAÚDE
Afora as considerações sobre os recursos financeiros do SUS, sua arrecadação e seus repasses aos Estados e Municípios, o certo é que “a saúde é direito de todos e dever do Estado.” (Art. 196, CF). Na medida em que esse direito não recebe a proteção esperada por seus titulares da parte dos órgãos públicos responsáveis, os juízes são chamados a decidir. Diante de cada caso concreto têm de interpretar a lei. Diz o § 1º, do artigo 5º, da Constituição Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Ora, o direito à saúde é uma condicionante do direito à vida, posto que “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”, conforme conclusão científica da Organização Mundial de Saúde. É de se perguntar: o direito a esse estado de completo bem-estar físico, mental e social deve ser concretizado a qualquer custo? A interpretação do § 1º do artigo 5º da Constituição Federal, no que tange à materialização dos direitos sociais, é penosa. Tem o julgador/intérprete a consciência de que o direito à saúde, uma vez não protegido, leva o seu titular a uma situação periclitante de indignidade e até de morte. Ora, o direito à vida é inviolável; e a dignidade da pessoa humana é a razão de ser da República Federativa do Brasil. Por outro lado, sabe o julgador que não poderá interpretar a Constituição em fatias, indiferente à separação dos poderes e aos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, destacando-se entre eles o princípio da isonomia. O direito ao recebimento das prestações de saúde, seja individual ou coletivo, deve merecer pronta efetividade. Esta efetividade, porém, é viabilizada somente com o emprego de recursos financeiros. Quase sempre as demandas em juízo ocorrem porque os pleitos foram indeferidos na via administrativa. Em tais litígios, os principais argumentos do Estado são a reserva parlamentar e a reserva do possível.

Eis o dilema do julgador: deferir ou indeferir o pleito do requerente? Em socorro da primeira alternativa estão, entre outros, os seguintes fundamentos: a) a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (art. 2º, Lei 8.080/90); b) o direito à saúde é uma consequência e uma condicionante do direito à vida; c) o respeito à dignidade humana exige promoção, proteção e recuperação da saúde. Em socorro da segunda alternativa, entre outros, destacam-se estes fundamentos: a) o julgador não deve substituir-se ao legislador nem ao administrador; b) o julgador não deve deferir o inexequível. Nesse contexto fático, concordo, em parte, com a ideia de que a melhor solução passa por uma ponderação de princípios, que proporcione um mínimo existencial garantidor da vida e da dignidade humanas. Este mínimo existencial se traduz como aquilo que seja imprescindível ao ser humano em matéria de alimentação, moradia, saúde e educação, conforme doutrina de RICARDO LOBO TORRES. O constitucionalista INGO WOLFGANG SARLET, que é Juiz de Direito no Rio Grande do Sul, lembra, recorrendo à doutrina alemã, que “um direito subjetivo a prestações não poderá abranger – em face dos limites já referidos – toda e qualquer prestação possível e imaginável, restringindo-se, onde não houver previsão legal, às prestações elementares básicas.”

Em matéria de assistência à saúde, entendo que este mínimo a que se refere a doutrina deverá ser o razoavelmente satisfatório para salvaguardar a vida com dignidade plena e não uma vida com dignidade mínima, uma meia-vida ou uma vida breve. Não se pode esquecer, todavia, que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Porém, este dever do Estado, pela própria dicção da Lei Orgânica da Saúde, não exclui o dever das pessoas, da família, das empresas e da sociedade (art. 2º, § 2º, Lei 8.080/90). Por outro lado, o Estado, em matéria de seguridade social, capítulo em que se inclui a saúde (artigos 194, 196, 0CF), tem de guiar-se, entre outros, pelos parâmetros da universalidade e da igualdade.

Quer isto dizer que com a prestação dos serviços de saúde, o Estado tem o dever de atender a todas as pessoas e de forma igualitária. Esse atendimento, entretanto, há que ser ainda integral (art. 198, II, CF). Vale dizer, o beneficiário do SUS tem o direito a uma assistência terapêutica completa, seja ela de baixa, média ou alta complexidade, mas que garanta ao paciente a prevenção e ou a cura de doenças. Neste passo, cumpre ao Estado planejar e executar políticas sociais e econômicas para desincumbir-se do mandamento constitucional do art. 196 da Carta Magna. Não o fazendo ou sendo essas políticas inconstitucionais, cabe ao Judiciário, sendo provocado, suprir tais falhas e omissões e garantir efetividade ao direito fundamental da saúde, que é pressuposto da dignidade humana e do direito à vida. E o Judiciário, como fará isto? Conforme sábia lição do Professor INGO WOLFGANG SARLET: “A solução, portanto, está em buscar, à luz do caso concreto e tendo em conta os direitos e princípios conflitantes, uma compatibilização e harmonização dos bens em jogo, processo este que inevitavelmente passa por uma interpretação sistemática, pautada pela já referida necessidade de hierarquização dos princípios e regras constitucionais em rota de colisão, fazendo prevalecer, quando e na medida do necessário, os bens mais relevantes e observando os parâmetros do princípio da proporcionalidade.”

V – CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico brasileiro, de que é expoente a Carta Cidadã de 1988, no enfrentamento judicial de quaisquer situações fáticas, proporciona ao julgador a real possibilidade de proferir uma decisão justa. Os valores mais preciosos do ser humano são a vida e a liberdade. O direito à saúde é uma condicionante do direito à vida e a ela se equipara. Uma decisão justa, nesta seara, há de ser, com as palavras de um célebre voto do Ministro CELSO DE MELLO, “aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.”

  • direito à saúde

Referências

 Fonte:Dr. Oton Lustosa


Ivan Bandeira de Melo de Deus

Advogado - Teresina, PI


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