Cláudio-Alexandre dos Santos e Silva
Bacharel e Direito pela Universidade Tiradentes, Advogado do Escritório Ávila e Silva Advocacia, Assessor Jurídico do CREA/SE e Professor da Universidade Tiradentes, sendo Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela mesma Instituição de Ensino Superior.
Com o advento da Emenda Constitucional 45/04, chamada por muitos de Reforma do Judiciário, a legislação processual brasileira passou a sofrer um sem número de alterações sempre buscando duas palavras que soam como o Santo Graal em termos de desafogamento do Judiciário. Estamos falando de Eficiência e Eficácia.
Essas mudanças, apesar de ganharem maior impulso com a referida reforma, iniciaram ainda antes através das Leis 8.592/94 (cumprimento de sentença nas obrigações de fazer ou não fazer) e 10.444/2002 (cumprimento de sentença nas obrigações de entregar coisa), culminando com alterações mais profundas no modelo teórico processualista com a edição das Leis 11.232/2005 (cumprimento de sentença nas obrigações de pagar quantia), 11.382/2006 (nova execução de título extrajudicial), além da novel Lei 11.672/2008 (lei dos recursos especiais repetitivos), dentre outras que poderiam preencher facilmente várias páginas, o que não é objeto do presente trabalho.
Tudo, como declinado, arquitetado para buscar dar ao processo efetividade e eficácia, afinal estamos diante de nova estrutura constitucional prometendo que a “todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
Ávido por alterações o nosso Legislador que não é muito conhecido por seu rigor técnico promoveu alterações também no âmbito criminal, sendo objeto de nossa análise a Lei 11.719/2008, mais precisamente no tocante às alterações promovidas nos artigos 63 e 387 do Código de Processo Penal – CPP.
Com as alterações o artigo 387 do CPP em seu inciso IV outorgou ao Juízo Criminal quando resolver a lide penal posta à análise o dever de fixar valor mínimo para a reparação por danos – morais ou materiais – eventualmente sofridos em decorrência do ilícito.
No mesmo compasso o artigo 63 do mesmo diploma legal incluiu Parágrafo Único determinando que a execução do valor fixado nos termos do inciso IV do artigo 387 poderá ser executada, não excluindo a liquidação para apuração de outros danos sofridos.
A hipótese que queremos levantar é aquela em que o ofendido, satisfeito com o valor mínimo fixado na sentença criminal pretende a execução de tal julgado.
É cediço que para que se proceda qualquer execução faz-se necessária a apresentação de um título representativo de uma obrigação, é o chamado princípio da nulla executio sine titulo consagrada em nosso Código de Processo Civil no artigo 586.
Em acerto digno de nota o Legislador ao editar a Lei 11.382/2006 promoveu a alteração do citado artigo para ali fazer constar que o título representaria uma obrigação certa, líquida e exigível, não mais se referindo ao título como portador de tais caracteres.
Não sendo nossa intenção nesse texto explanar sobre a discussão travada na doutrina denominada clássica sobre a natureza jurídica do título executivo - Calamandrei que considerava o título como o documento, ou seja levava em consideração os aspectos formais e Liebman que defendia a a tese do título executivo como ato jurídico -, tendo em vista que hodiernamente tal discussão, do ponto de vista prático, não mais se reveste de tamanha importância, apresentaremos conceito esculpido por Carnelutti que bem soube sintetizar ao afirmar que o direito do credor "é certo quando o título não deixa dúvida em torno de sua existência; é líquido quando o título não deixa dúvida em torno de seu objeto; exigível quando não deixa dúvida em torno de sua atualidade."
Tais conceitos se mostram indispensáveis para um melhor entendimento do que se pretende aqui discutir, tendo em vista que é baseado principalmente no conceito de liquidez que desenvolveremos a linha mestra de raciocínio do presente trabalho.
De acordo com o que preceitua o artigo 475-N do CPC, ao tratar dos chamados títulos executivos judiciais, mais precisamente no inciso II, é passível de execução a sentença penal condenatória transitada em julgado, dando azo a chamada ação civil ex delicto. Tal dispositivo nada mais é o reconhecimento de um dos efeitos provenientes da sentença penal condenatória conforme explicitado no artigo 91 do Código Penal Brasileiro.[3]
É ponto pacífico na doutrina albergado em interpretação literal - e não poderia ser de forma distinta - que apesar do novo modelo teórico da execução introduzido pela lei 11.232/2005 para que se execute uma sentença penal condenatória, necessário se faz a citação do executado para fins de liquidar o quantum debeatur.
Não é outro o entendimento encontrado na doutrina:
A execução do pronunciamento penal reclama a extração da carta de sentença, por não ser promovida perante o juízo criminal, valendo como instrumento formal do título executório, como o documento que conduz os atributos de certeza e de exigibilidade, a comportar a instauração da fase de liquidação com vista a apurar a extensão da obrigação a ser adimplida. Misael Montenegro - Curso de Direito Processual Civil, Vol. II, página 292;
Embora se trate de um título executivo judicial, a sentença penal condenatória não pode ser civilmente executada no próprio processo em que foi proferida. Nesse ponto, tem-se exceção ao regime geral estabelecido pela Lei 11.232/2005. Haverá a necessidade de instauração de um específico processo civil destinado à liquidação e à execução. Esse processo terá de ser instaurado por iniciativa do credor, mediante ação proposta perante o juiz competente (...), e nele o executado haverá de ser citado (...) Luiz Rodrigues Wambier e outros, Curso Avançado de Processo Civil, Volume 2, página 63.
O grande Humberto Theodoro Júnior vaticina:
a vítima deve, preliminarmente, promover a liquidação do quantum da indenização a que tem direito, observando-se, no procedimento preparatório da execução (arts. 475-A a 475-H do Código de Processo Civil), as normas e critério específico traçados pelo Novo Código Civil para liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos e que constam de seus arts. 944 a 954.
Finalmente Alexandre Câmara afirma que
(...) a despeito do que afirma o art. 475-N, II, do CPC – a sentença penal condenatória transitada em julgado não é verdadeiro título executivo, mas sim título para a liquidação de sentença (da mesma forma que a sentença civil que contém “condenação genérica”, anteriormente referida). Isto porque a sentença penal condenatória, embora torne certa e existência da obrigação do condenado de reparar o dano causado pela prática do crime, não determina o quantum debeatur, ou seja, não fixa o valor da indenização devida. Por esta razão, necessário se faz realizar o incidente de liquidação de sentença, para que, aí sim, possa se realizar a execução forçada da obrigação tornada certa pela condenação penal (desenvolvendo-se o incidente de liquidação e a execução forçada em um só e mesmo processo).
Assim, como declinado, não paira dúvida na doutrina sobre a necessidade de instauração do incidente de liquidação de sentença nos exatos termos do que prediz o parágrafo único do citado artigo 475-N.
Entretanto, o que se busca discutir é quando a sentença penal condenatória transitada em julgado traz em seu bojo o limite mínimo da indenização e o ofendido aceita tal valor, ou seja, torna a obrigação além de certa (obrigação de pagar quantia decorrente de sentença penal que reconhece a existência de um delito e de um dano) e exigível (trânsito e julgado), torna-se ainda em sede penal líquida por força da alegada aceitação.
No artigo 387, IV do Código de Processo Penal Brasileiro, em decorrência de alteração introduzida pela Lei 11.719/2008 o juiz é obrigado a fixar o valor mínimo da reparação pelos danos sofridos.
A partir desse dado temos que à certeza e exigibilidade já presentes na obrigação representada pela sentença penal condenatória, acrescenta-se a liquidez, mínima é verdade, para que se proceda à execução.
A pergunta que se impõe é a seguinte: em aceitando o ofendido o valor mínimo como suficiente qual seria o juízo competente para a execução de tal julgado?
A primeira resposta é que o Juízo Criminal teria competência para executar o seu julgado posto que não mais necessário seria a instauração de procedimento liquidatório sendo dispensável a jurisdição cível, até mesmo porque tal distinção possuiria efeitos meramente didáticos e administrativos e por fim alegam que quem pode o mais pode o menos.
Não se nos afigura satisfatória a solução apresentada já que o próprio Código de Processo Penal exclui tal alternativa ao dirigir para o Juízo Cível a execução da sentença criminal que fixar valor de acordo com o contido na cabeça do artigo 63, bem como se verifica a confirmação no inciso III do artigo 475-P.
Como segunda corrente temos aqueles que defendem que em verdade estaríamos diante de um vácuo legislativo, pois teríamos uma sentença penal certa, líquida e exigível, entretanto tal sentença não poderia ser executada no juízo criminal por falta de competência, nem pelo juízo cível pois não existe previsão para a execução de sentença penal condenatória transitada em julgado sem o seu antecessor lógico, qual seja o incidente de liquidação de sentença. Assim teríamos uma obrigação inexeqüível por falta de órgão competente.
De mesma maneira não haveria como sustentar tal entendimento por tudo que já foi declinado. Seja pelo âmbito do Processo Penal que remete a execução ao juízo cível, seja pela clareza do inciso III do artigo 475-P, seja pela interpretação a ser dada ao Parágrafo Único do 475-N, observa-se a existência de previsão legal que desautorizaria o entendimento de deslocamento de competência.
Defendemos assim que em nada mudou a execução nesse tipo de sentença, a solução encontra-se na própria lei, não havendo vácuo legislativo e não sendo necessário atropelar a norma posta deslocando a competência para o juízo criminal. Para tanto nos valemos do que o Juiz e Mestre em Direito Constitucional José Herval Sampaio Júnior em seu livro Processo Constitucional: Nova Concepção de Jurisdição denominou de nova interpretação constitucional concretizadora.
Em determinado ponto de sua obra diz o autor:
Destarte, a hermenêutica contemporânea, chamada aqui de constitucional concretizadora, tem como característica principal o fato do deslocamento de todo o norte da interpretação para a Constituição (...)
E continua
Com essa interpretação constitucional concretizadora, a interpretação deixa de ser vista sob a perspectiva normativo-metodológica, mas como algo inerente à totalidade da experiência humana, vinculado à sua condição de possibildiade finita, sendo uma tarefa criadora, circular, que ocorre no âmbito da linguagem e que tem como escopo principal a efetivação dos dispositivos normativos, em especial, os princípios que exprimem os valores, que são balizamentos indispensáveis à convivência social idealizada na Constituição Federal, daí a idéia do processo constitucional.
Ora esse entendimento baseia-se, a nosso sentir, numa visão moderna do que viria a ser a supremacia da Constituição anteriormente representada pela Pirâmide de Kelsen. Hoje temos que a Constituição não só ocupa o topo do ordenamento jurídico sendo fundamento de validade de todas as demais normas que a ela devem se adequar, mas também a vemos como via obrigatório por onde as normas devem passar. Dessa maneira a Constituição se insere no ordenamento jurídico de forma tanto vertical como horizontal, servindo de início meio e fim para o intérprete.
Partindo de tal premissa nos obrigamos a tentar responder ao questionamento ao menos de maneira constitucionalmente satisfatória. Analisemos o parágrafo único do artigo 63 do Código de Processo Penal:
Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.
Bem, tomando por base a hipótese lançada, o ofendido ao aceitar o valor mínimo fixado nos termos do artigo 387 do CPP terá em mãos um título certo líquido e exigível. Verifiquemos então o que preceitua o caput do referido artigo:
Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Ora, é de clareza absurda o texto da cabeça do artigo ao definir o Juízo Cível como competente para a execução, não havendo que se cogitar a transferência de competência em decorrência da norma ora discutida, atém mesmo porque inexistiu qualquer alteração nesse sentido. De posse de tal informação passemos a meditar sobre a dinâmica da execução por quantia certa baseada em título judicial.
Analisando o artigo 475-I, temos que o cumprimento de sentença (gênero) quando se tratar de obrigação de pagar quantia assumirá a forma de execução, o que está em sintonia com o preceituado no parágrafo único do artigo 67 que permite a execução do valor.
Como temos em mãos título executivo judicial líquido dependendo, quando muito, de simples cálculos aritméticos para correção e juros, posto que já houve a conformação do ofendido com o valor arbitrado, acreditamos estar diante da situação prevista no artigo 475-B do CPC combinado com o Parágrafo Único do artigo 475-N do mesmo digesto.
Conforme se observa nos referidos artigos quando estivermos diante da necessidade de utilização de simples cálculos para fins de obtenção de liquidez da obrigação certa e exigível representada pelo título judicial, o procedimento que se instaura não é o incidente de liquidação e sim o de cumprimento de sentença. Com tal autorização legal passamos a analisar o artigo 475-N que trata dos títulos executivos judiciais e se refere em seu inciso II à Sentença Penal Condenatória Transitada em Julgado.
Antes de apresentarmos a conclusão a que chegamos, convidamos o leitor a rememorar o que dissemos no início da presente digressão, mais precisamente no tocante ao inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição, adicionado pela Emenda Constitucional 45/2004 que elevou a categoria de garantia individual a razoável duração do processo.
Todas as modificações já citadas e decorrentes da reforma promovida, buscou dar ao processo uma efetividade que se julgava perdida e que para muitos é sinônimo de celeridade. Se é efetividade que se busca então teremos que interpretar o parágrafo único do artigo 475-N, a fim de não obrigar o ofendido que já possui uma obrigação certa líquida e exigível a passar pela via crucis de uma liquidação por artigos – rito ordinário de acordo com o artigo 475-F – sabidamente a mais demorada de todas, até porque não estaríamos diante de alegação e prova de fato novo, já que o dano já teria sido reconhecido e liquidado previamente. Como cediço para se promover a execução é necessária a presença de interesse de agir, ou seja, o processo deve ser necessário, útil e adequado para o fim pretendido, não se nos afigurando nenhum dos três requisitos.
Por outro lado temos que o referido parágrafo único não direciona quando estaremos diante de uma citação para liquidar ou para executar, dizendo apenas que o ato a ser praticado dependerá da presença dos requisitos da obrigação exeqüível. Assim se estivermos diante de uma obrigação certa e exigível, entretanto desprovida de liquidez a citação será para liquidar e depois iniciar-se-á a execução. Porém se a obrigação já se encontrar com os requisitos autorizadores a citação a ser realizada não será para fins de liquidar mas sim para pagar no prazo de quinze dias o valor já apresentado sob pena de aplicação de multa pelo não cumprimento voluntário, expedindo-se com requerimento do interessado o mandado de penhora e avaliação, prosseguindo a execução nos termos do artigo 475-J e seguintes do CPC.
Assim, teremos as seguintes situações:
O ofendido aceita o valor da indenização fixada pelo juízo criminal não pretendendo mais buscar qualquer valor no cível - defendemos que no caso previsto no artigo 387 do CPP, seria dispensável o incidente de liquidação de sentença por falta de interesse de agir tendo em vista que a liquidez já existe, devendo o ofendido/exeqüente utilizar o cumprimento de sentença, requerendo a citação do autor do fato para que pague em quinze dias, sendo que, após tal ato e o decurso do prazo, teríamos o prosseguimento do feito nos termos do artigo 475-J e segs. do CPC, tendo por base a alternatividade contida no Parágrafo Único do artigo 475-N.
O ofendido não concorda com o valor da indenização fixada no juízo criminal – nesse caso teríamos um requerimento de citação com função dúplice, quais sejam, a parte executada seria citada para pagar o valor incontroverso no prazo de quinze dias e no mesmo prazo deveria apresentar defesa para fins de instauração do incidente de liquidação do julgado, onde se discutiria apenas o montante que ultrapassasse o valor fixado no juízo penal. Assevere-se que tal liquidação poderia, inclusive, ser igual a zero, bastando que o juízo cível reconhecesse que o valor arbitrado como mínimo no juízo criminal já seria suficiente para ressarcir a vítima do crime.
Entender de forma diversa é acreditar que seria possível ao Magistrado quando recebesse um requerimento baseado em sentença penal condenatória transitada em julgado fechasse os olhos para a questão do interesse processual e determinasse a citação apenas para liquidar, tendo em vista que se nos afiguraria despiciendo quanto a parte incontroversa, não se mostrando o processo útil ou necessário para a pretensão da parte.
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