As teorias sociológicas da posse e o instituto da usucapião no Direito Civil Brasileiro.
Francine Strogulski Cechet[1]
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar as teorias sociológicas da posse, suas características e aplicações no Direito Civil Brasileiro, em especial no instituto da usucapião.
Palavras-chave: Posse. Teorias Sociológicas. Usucapião.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende abordar o estudo de direito de propriedade, sua evolução histórica e função social, através da exposição do conceito de posse e suas divergências doutrinárias, trantando, ainda, das diferentes teorias sobre a posse. Além de acostar as teorias aceitas e discutidas pela doutrina e jurisprudência, demonstra-se, no presente artigo, a teoria aplicada no instituto da usucapião.
2 O CONCEITO DE POSSE
É sabido que ao longo da história a posse assumiu diversos conceitos distintos. Porém, a doutrina atualmente define a posse como sendo uma situação fática, de caráter potestativo, decorrente de uma relação sócio-econômica entre o sujeito e a coisa, e que gera efeitos no mundo jurídico[2].
Já para o Supremo Tribunal Federal não existe conceito definitivo de posse no direito brasileiro, eis que conhecemos apenas as características de posse trazidas por Savigny e Ihering, sendo que o conceito de posse muitas vezes é confundido com o conceito de possuidor.
A posse, porconseguinte, não pode ser confundida com a propriedade. A propriedade é baseada de uma relação de direito, enquanto a posse é fundada em uma relação de fato[3].
3 AS TEORIAS DA POSSE
Três teorias foram desenvolvidas acerca da posse: a teoria subjetiva, a teoria objetiva e a teoria sociológica.
3.1 A TEORIA SUBJETIVA
A teoria subjetiva, desenvolvida pelo jurista Carl Von Savigny, no seu “Tratado da Posse”, é aquela em que, para restar caracterizada a posse, é necessário estar presente um elemento subjetivo consistente na vontade de ser dono da coisa. A posse, então, seria a união de dois elementos: corpus + animus domini.
O animus domini consiste na vontade de ter a coisa como sua (ser proprietário). Sem essa intenção não há o que se falar em posse, havendo somente detenção. Após abrangeu também a intenção de possuir outros direitos reais, até chegar-se às coisas incorpóreas.
O corpus é o contato físico do possuidor com a coisa. Posteriormente, o corpus passou a consistir na mera possibilidade de exercer o contato, tendo a coisa à sua disposição.
Nesse sentido, o locatário, o depositário e outros sujeitos em situação semelhante, ou seja, sem animus domini, não seriam possuidores e sim meros detentores, pois não teriam qualquer intenção de tornarem-se proprietários da coisa[4].
No Brasil, a teoria de Savigny é aplicada, por exemplo, para explicar a Posse Usucapiendo, eis que basta que possua a coisa com vontade de ser o proprietário para que tenha acesso aos interditos e possa beneficiar-se da usucapião[5].
3.2 A TEORIA OBJETIVA
A teoria objetiva, desenvolvida pelo jurista Rudolph Von Ihering, no seu “O papel da vontade na posse”, é aquela em que, par restar caracterizada a posse, basta a experiência do corpus, sendo que este corpus é mais do que o contato físico com a coisa, é a exteriorização do direito de propriedade.
Para esta teoria, a conduta de dono liga-se a maneira como age o sujeito sobre a coisa, expondo o seu poder fático sobre a coisa, sendo esse poder a posse.
Ihering dizia, em suma, que a posse é composta de apenas um elemento. Propagava que o animus estaria composto no corpus e que este seria a conduta de dono. A posse seria um direito, uma exteriorização do domínio ou da propriedade, sendo dispensável a análise de qualquer elemento subjetivo[6].
Nessa esteira, por exemplo, foi elaborado o artigo 1.196 do Código Civil Brasileiro de 1916[7]:
“Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Consequentemente, para ser caracterizada a posse, basta haver aparência de domínio, é o fato de agir como se dono fosse ou affectio tenendi.
Salienta-se que para Ihering, a detenção somente existiria em razão da existência de algum impedimento ou obstáculo legal. Se a conduta da pessoa para com a coisa for similar à conduta de proprietário, tem-se posse, independentemente da existência ou não de animus domini.
3.3 A TEORIA SOCIOLÓGICA
Desenvolvida, entre outros, por Silvio Perozzi, Raymond Saleilles e Hernandez Gil, a teoria sociológica defende que a posse existe quando a sociedade atribui ao sujeito o exercício da posse. Aquele que der a destinação social ao bem da vida será o possuidor. Sua teoria preconiza que a posse tem autonomia em face da propriedade[8].
A Constituição Federal de 1988[9], no inciso XXIII, do art. 5º, consagra a função social da propriedade: “a propriedade atenderá a sua função social”.
Perozzi entende que a desistência de terceiros diante de uma situação é o que legitima a posse.
Para Saleilles o possuidor é aquele que manifesta a independência econômica para, por exemplo, arcar com a manutenção e sustentabilidade da coisa.
Já Gil acredita que a propriedade deve servir a propósitos coletivos.
Visando adaptar o nosso Código Civil à Teoria Sociológica, bem como aos conceitos de função social da posse e da propriedade presentes na Constituição Federal e legislações esparsas, ainda em 2002, quando foi publicada a Lei 10.406/2002, apresentou-se na Câmara dos Deputados, por iniciativa do então Deputado Ricardo Fiúza, o Projeto de Lei de n.º 6.960/2002, que propõe esta redação ao artigo 1.196 do Código Civil:
“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência sócio-econômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse.”
Conclui-se, por fim, que o Código Civil de 2002 adota a tese da posse-social, sustentada por Perozzi, Saleilles e Gil[10].
4 APLICAÇÃO DAS TEORIAS DA POSSE NO INSTITUTO DA USUCAPIÃO
Em regra, a teoria aplicada em nosso ordenamento jurídico é a Teoria Objetiva de Ihering, conforme se denota do artigo 1.196 do Código Civil de 2002[11]:
Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Porém, nos artigos referentes à usucapião, o Código Civil de 2002, à semelhança do Código de 1916, estabelece um ponto de contato, uma interferência entre teoria objetiva e teoria subjetiva, que pode ser notado, por exemplo, no art. 1.238.
No caso de usucapião o nosso ordenamento, fazendo uma exceção à teoria objetiva, exige a intenção de possuir a coisa como dono para que haja a aquisição, tornando-se necessário o exame do animus do possuidor no caso concreto.
Em geral, o instituto da usucapião no nosso ordenamento envolve a noção do animus domini do possuidor, tal como definia Savigny, não bastando a affectio tenendi, sendo esta uma importante concessão feita pelo nosso ordenamento à teoria subjetiva, da qual o legislador do Código de 2002 não conseguiu desvincular-se.
Segundo Maria Helena Diniz[12], o animus domini é o elemento psíquico da usucapião, e o objetivo da análise desse elemento seria exatamente evitar a possibilidade de usucapião pelos fâmulos da posse.
Ademais, cumpre ressaltar que a Teoria da Função Social é aplicada nos casos de redução de prazos na usucapião extraordinária de bem imóvel, em que a posse prolongada de 15 (quinze) anos pode ser reduzida para 10 (dez) anos, desde que demonstrada a destinação social, isto é, a função social da pose, de acordo com o artigo 1.238, parágrafo único, do Código Civil.
Já nos casos de aquisição de propriedade por usucapião ordinária de bem imóvel, a redução dos prazos também é aplicada, sendo necessária a demonstração de justo título e boa-fé, podendo o prazo ser reduzido de 10 (dez) anos para 5 (cinco) anos, desde que seja respeitada a função social da posse, com fulcro no artigo 1.242, parágrafo único do Código Civil.
Através desta análise, observa-se que a Constituição de 1988, em contemplação da evolução do abuso de direito, traz em seu bojo a função social da propriedade. Advinda da segunda geração direitos fundamentais, a propriedade passa a possuir uma íntima ligação com os direitos coletivos. Em suma, cuida-se de um pano de fundo para uma série de normas e atitudes estatais, que vão dar destinação úteis para os bens, que valoriza a desapropriação, que diminui o tempo para usucapião e fomenta condutas que dão utilidade à propriedade.
Entendemos ser essencial vincular a posse ao princípio da função social, pois é ela quem dá verdadeira utilidade às coisas. Seria difícil positivar a vinculação da posse à função, pois o conteúdo deste instituto ainda é mais fático que jurídico. O STF já reconheceu a necessidade da posse e da propriedade manterem um meio ambiente equilibrado, em valorização ao princípio da função social, vejamos um breve trecho desta decisão:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DA SÚMULA 282 DO STF. FUNÇÃO SOCIAL E FUNÇÃO ECOLÓGICA DA PROPRIEDADE E DA POSSE. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVA LEGAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELO DANO AMBIENTAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. DIREITO ADQUIRIDO DE POLUIR. ...3 Décadas de uso ilícito da propriedade rural não dão salvo-conduto ao proprietário ou posseiro para a continuidade de atos proibidos ou tornam legais práticas vedadas pelo legislador, sobretudo no âmbito de direitos indisponíveis, que a todos aproveita, inclusive às gerações futuras, como é o caso da proteção do meio ambiente[13]
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizamos este trabalho com a consolidação do entendimento que as teorias de Savign e Jhering ainda são aplicadas pelo ordenamento jurídico brasiliro, percebe-se que quanto a posse o CC/02 adotou a teoria de Jhering, já quanto a usucapião a teoria Savigny foi adotada, porém a estas teorias devemos acrescentar a valoração jurídica que traz o princípio da função social. Para a melhor adaptação das teorias possessórias, faz-se mister adequá-las a nova hermenêutica constitucional, que valoriza princípios e reconhece a dignidade da pessoa humana como o centro do ordenamento jurídico.
Tanto o discurso de Savigny quanto o de Jhering sobre conceituação de posse não podem ser hoje subscritos em sua literalidade, o que acaba por determinar a adoção, no plano dogmático, de uma das teorias, com concessões em determinados pontos para a teoria rival.
[1] Francine Strogulski Cechet, pós graduanda do curso de Direito Civil e Processo Civil do Centro Universitário Ritter dos Reis.
[2] FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003.
[3] AQUINO, Álvaro Antônio Sagulo Borges de. A posse e seus Efeitos, p. 39. São Paulo: Editora Atlas.
[4] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. P. 708. São Paulo: Método, 2011.
[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, volume 4: Direito das Coisas. p. 52. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direitos Reais. p. 14. 7. Ed, v. 5, São Paulo: Saraiva, 2010.
[7] BRASIL. Código Civil (1916). Lei no. 3.071 de janeiro de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em 18 de junho de 2016.
[8] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. p. 715. São Paulo: Método, 2011.
[9] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
REPÚBLICA, Presidência da. Lei 5869. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 21 de junho de 2016.
[10] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. p. 716. São Paulo: Método, 2011.
[11] BRASIL. Código Civil (2002). Lei no. 10.406 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em 21 de junho de 2016.
[12] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º vol.: Direito das Coisas. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[13] REsp 948921 / SP. RECURSO ESPECIAL 2005/0008476-9 Relator(a) Ministro HERMAN BENJAMIN (1132). Data do Julgamento 23/10/2007. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Default.asp?registro=200500084769&dt_publicacao=11/11/2009. Acesso em 21 de junho de 2016.