ESTUPRO MARITAL: CONJUNÇÃO CARNAL FORÇADA


03/10/2022 às 14h49
Por Franciele Rocha

1. INTRODUÇÃO

 

O estupro, crime este tipificado no art. 213 do Código Penal, refere-se à prática de constrangimento com o emprego de violência ou grave ameaça, com o intuito de forçar conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Este artigo possui como escopo principal tratar de assuntos relacionados ao crime de estupro na constância conjugal, ou seja, o chamado estupro marital, delito este praticado desde os antepassados da existência humana, época esta, em que a mulher não tinha liberdade sexual e era considerada como objeto e propriedade de seus maridos. Diferente do que acontecia em tempos passados, hoje em dia, a importância do estupro está centrada na liberdade sexual do indivíduo e no seu direito de escolha.

A presente pesquisa é de relevante interesse social, visto que o estupro marital viola um dos maiores direitos constitucionais do indivíduo, ou seja, a liberdade e dignidade sexual. A liberdade sexual do indivíduo, entende-se como a capacidade de o sujeito dispor livremente do seu corpo à pratica sexual, agindo de acordo com seus desejos e vontades, incluindo, neste disposto, a escolha do seu parceiro.

A problematização do assunto em questão se refere à como que será imputada a pena do crime de estupro quando o sujeito ativo for o próprio cônjuge, as dificuldades enfrentadas pela vítima para realização da denúncia, a questão do aborto legal diante da relação sexual forcada na constância do âmbito conjugal, dentre outras questões. Assim, objetiva-se analisar que, na pratica do ato sexual, o marido, esposa ou companheiro (a) que forçar ou constranger seu instinto sexual, poderá cometer um ilícito penal, tendo em vista o desrespeito ao consentimento ou concordância dos parceiros para a prática das relações sexuais.

No Brasil, há inúmeros casos de violência sexual, casos em que mais mulheres do que homens, são relativamente violentadas sexualmente pelo seu próprio companheiro e nem sequer sabem da proporção desta ação, outras até sabem, mas tem medo ou até mesmo vergonha de procurar ajuda, por se tratar de ações praticadas pelo próprio companheiro ou marido e ficam anos e anos vivendo essa situação.

Desta forma, os atos sexuais forçados constituem crime de estupro tipificado em lei, podendo o agressor que cometa tal ato ser punido.

Para a confecção do presente trabalho, foi utilizado o mecanismo de pesquisa exploratória em doutrinas, sites de conteúdo jurídico, jurisprudências, artigos e em trabalhos de conclusão de curso, para a obtenção de conhecimento acerca do assunto abordado.

 

2. ESTUPRO MARITAL

 

Em sua definição o estupro conjugal ou estupro marital, é uma forma de abuso dentro de um relacionamento e só difere do estupro devido ao relevante grau de intimidade efetiva de quem o comete.

Antigamente, o casamento era visto como um tipo de contrato de venda casada, onde quem ‘’ comprava’’ o casamento, obrigatoriamente deveria ‘’ levar’’ o sexo. A conjunção carnal era vista como dever e obrigação de ser cumprida pelos cônjuges, como se o corpo de um estivesse à disposição do outro, sem se importar com o seu desejo e consentimento.

Em um passado bastante recente, o sexo era considerado como parte obrigatória de uma relação. Aquelas mulheres que de alguma forma negavam praticar relações sexuais com seu companheiro podiam ser abusadas e violentadas.

O estupro marital se configura quando ocorre infringência sexual contra um dos parceiros, mesmo na constância de um relacionamento. Forçar uma relação sexual por meio de ameaça ou violência são os casos mais clássicos hoje em dia, mais também, pode ser considerado estupro marital forçar o sexo enquanto a vítima está inconsciente, seja dormindo, sob efeito de remédios ou embriagada.

Dentro de uma relação, muitas vezes pode ser difícil a constatação de que uma mulher ou um homem possa estar sendo vítima desse mal, tendo em vista que em uma sociedade completamente machista pautada pela chamada ‘’ cultura do estupro’’, o homem possui direitos de desfrutar do corpo feminino como bem entender.

Ainda é visto com muita naturalidade, fazer sexo sem que haja desejo mútuo e progressivo no casamento ou no namoro, mas qualquer forma de coerção sexual, seja ela física ou emocional, é sim, estupro conjugal. Aquelas praticas mais agressivas, como por exemplo o sadomasoquismo, ou posições sexuais que causem constrangimento à vítima, podem se enquadrar enquanto o estupro conjugal ainda não sejam plenamente consentidas, assim como forçar uma relação sexual sem o uso de preservativo com a parceira ou parceiro.

 

2.1. Classificação doutrinária

 

O crime de estupro é considerado como pluri ofensivo, isso porque tutela mais de um bem jurídico: a dignidade sexual e a liberdade sexual. O objeto material é a pessoa contra quem a conduta criminosa se dirige, independentemente de seu sexo. O núcleo do tipo é ‘’ constranger’’, no sentido de forçar/coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Desta forma, é um comportamento que infringe os princípios fundamentais da pessoa humana, sendo eles, a liberdade de autodeterminação, bem como a sua dignidade.

Para que haja o constrangimento da vítima, o agressor se utiliza de meios de execução para a obtenção do estupro: a violência e a grave ameaça, dessa forma, o agente constrange alguém para que consiga a conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

O sujeito passivo (vitima) pode ser qualquer pessoa que sofra o constrangimento.

Atualmente, o crime tipificado no art. 213 do Código Penal contempla a espécie bi comum, onde qualquer pessoa pode se classificar tanto como sujeito passivo quanto como sujeito ativo.

No entanto, no que se refere à modalidade de conduta do crime de estupro para Fayet (2011, p. 80) se classifica como crime formal, possuindo diversas ações, de procedimentos variáveis, ou seja, podendo ser também considerado um crime praticado de forma livre e comissivo.

Quanto à modalidade de conduta, é crime formal (pois se consuma com a simples prática da conduta descrita), de ação múltipla, de conduta variável ou de forma livre (porque pode ser cometido tanto por conjunção carnal como por qualquer outro ato libidinoso), e comissivo (pois os verbos do tipo indicam ação).

A lei 13.718/18, de 24 de setembro de 2018, deu nova redação ao art. 225 do Código Penal, alterando o seu caput e revogando o parágrafo único. A redação anterior estabelecia que os crimes contra a dignidade sexual, em regra, eram de ação penal pública condicionada à representação, salvo quando a vítima fosse menor de dezoito anos, ou pessoa vulnerável, casos nos quais a ação penal seria pública incondicionada. Agora, com a nova redação, independentemente da idade ou condição do ofendido, todos os crimes tipificados nos capítulos I e II do título VI do Código Penal são de ação penal pública incondicionada.

O entendimento atual acerca do crime em questão, não possui distinções como possuía antigamente em legislações penais. Nos dias atuais, os homossexuais, os transexuais, as prostitutas, são consideradas iguais e podem figurar como sujeito passivo ou ativo, não havendo mais distinções.

 

2.2. Ação penal

 

Com a nova redação do art. 225 do Código Penal, não mais será exigida a representação da vítima para o exercício da ação penal pública, ainda que se trate de maior de dezoito anos e pessoa não vulnerável, vejamos:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada à representação. (Redação dada pela Lei nº 13.718, de 2018).

Há, um dispositivo legal que exige a representação para o exercício de uma ação penal pública, tem, indiscutivelmente, um aspecto híbrido. Tratando-se de uma ‘’ condição especifica de procedibilidade’’, que é visível o seu caráter processual penal. Nada obstante, há também um aspecto que ‘’ toca’’ o direito material, pois, como se sabe, a representação submete-se a um prazo decadencial (seis meses), findo o qual ocorrerá a extinção da punibilidade, pela decadência, nos termos do art. 107, IV, do Código Penal. O art. 225 do referido código, trata-se portanto, de uma norma processual material.

Diante disso, chega-se à conclusão que, relativamente aos crimes contra a dignidade sexual tipificados nos artigos. 213 a 218-C do Código Penal, e praticados antes da vigência da nova lei (e aqui relevante será a data da ação ou da omissão, nos termos do art. 4º. do Código Penal), o início da persecução penal (desde a instauração do Inquérito Policial) continua a depender da representação, salvo, evidentemente, tratando-se de vítima menor de dezoito anos ou vulnerável. Em outras palavras: o novo art. 225 não pode retroagir, sendo forçoso admitir uma verdadeira ultra atividade da disposição antiga.

 

2.3. Das penalidades cabíveis

 

Sabe-se que a violência sexual ou grave ameaça empreendida pelo marido ou companheiro com intuito de satisfazer seus próprios desejos carnais contra sua esposa, configura-se em estupro (alicerçado no art. 213 do CP), ou seja, o chamado estupro marital. Neste contexto, segundo dizeres de Masson (2014), o Código Penal brasileiro em seu artigo 226, traz uma questão importante quanto ao aumento de pena. Se o autor do crime se enquadrar em alguma das hipóteses previstas em sua redação, poderá ter sua pena aumentada, sendo assim, este fato demonstra que o cônjuge que comete tal delito estará sujeito as regras estipuladas neste artigo em questão, vejamos:

Art. 226. A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou embargador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela.

Nesse prisma, de acordo com Pereira (2006, p. 06) o marido empreende violência sexual contra sua esposa quando: “forçar ou obrigar relações sexuais (mesmo sem uso de violência física); forçar práticas sexuais que causam desconforto ou repulsa; obrigar a vítima a olhar imagens pornográficas, quando ela não deseja ou obrigar a vítima a fazer sexo com outras pessoas”.

Entretanto, a mulher sendo casada ou não, possui seus direitos garantidos por lei para dispor de seu próprio corpo ou da sua liberdade sexual como assim desejar e bem entender, portanto, afirma os dizeres do art. 5º, II, da Constituição Federal (CF) que descreve o seguinte; “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Segundo Taquary (2013, p.01):

A Constituição Federal Brasileira, de 1988, protege a liberdade da pessoa humana, prevendo constitucionalmente em sua forma geral, mas na legislação infraconstitucional é categorizada em liberdade sexual; de locomoção; de pensar; de expressão, de religião; de credo e todas as suas derivações, de modo a realizar a dignidade da pessoa humana.

 A mulher tendo a coragem de sair daquele ambiente de violência, muda o comportamento do homem, porque ele não vai agredi-la mais. Assim sendo, diante do exposto sabe-se que para provar esse crime específico existem alguns obstáculos, resultados de muitas vezes a vítima não denunciar o fato ocorrido, onde inúmeras das vezes por medo, vergonha, dependência econômica, emocional, e outros.

 

2.4. Estupro marital: análise da legislação ao redor do mundo

 

No dia 11 de outubro de 2017, em decisão histórica, foi noticiado pelo mundo que a Suprema Corte da Índia decidiu que sexo com esposa menor de 18 anos é estupro. Tal sentença foi extremamente importante, pelo fato de afastar diversas meninas, tendo em vista que as leis que protegem os direitos das mulheres concernentes as relações conjugais são frágeis.

Na Índia é muito comum a prática do casamento infantil, principalmente nas zonas rurais inalcançadas pela atividade estatal e a legislação indiana decreta que é permitido a relação sexual de um homem com sua esposa entre 15 e 18 anos. As leis indianas ainda são muito frágeis para protegerem todas as mulheres vítimas de estupro dentro do casamento, sendo elas maiores de idade dessa vez.

Para Inácio Carvalho Neto, em sua obra Reparação Civil na separação e no divórcio, da Editora Saraiva, do ano de 2002, o sexo é visto como uma obrigação conjugal diante da doutrina jurídica, como em que considera a recusa injustificada ao ato sexual um débito conjugal e que tal ato causa sérios danos psicológicos à vítima, o que gera um ato ilícito por infração ao dever de vida em comum no domicílio conjugal e que a pessoa que o pratica deve, inclusive, reparar os danos sofridos pelo cônjuge.

No caso da Índia, por exemplo, o estupro marital não é considerado crime. A lei diz que: “relação sexual de um homem com sua própria esposa, a esposa não sendo menor de 15 anos de idade, não é estupro”.

Esse problema se alastra em um contexto mundial, pois apenas 52 países dos 193 que fazem parte da Organização das Nações Unidas (ONU) consideram o estupro marital como crime em suas respectivas legislações, apesar de ter sido declarado como violação de direitos humanos pela organização em 1993.

Entre os países que não consideram o estupro entre marido e mulher como crime estão China, Afeganistão, Paquistão e Arábia Saudita. No Sudão do Sul, a legislação é clara ao dizer que a relação sexual entre marido e mulher nunca é estupro, mesmo quando não é consentida. Na maioria desses países, a influência religiosa é quem dita as regras. Para o hinduísmo, religião predominante da Índia, a mulher deve tratar o marido como um deus. Essa influência acaba, consequentemente, atingindo a legislação.

Segundo dados do relatório ‘’ estupro no Brasil, Uma Radiografia Segundo Dados da Saúde’’, divulgado em 2014 pelo Ipea (instituto de pesquisa econômica aplicada), 9,3% dos casos de abuso sexual sofridos por mulheres maiores de idade, são praticados pelo marido cônjuge e, 1,6% delas sofreram abusos por parte do namorado, número este, extremamente alto. Muitas mulheres acreditam que é seu dever ceder o seu corpo para satisfazer a necessidade sexual do seu parceiro. Com isso, não é incomum que muitas mulheres deixem seus corpos disponíveis para uso e abuso do homem durante o sexo.

Em um outro levantamento realizado no ano de 2016 pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, esse tipo de estupro ficou bem claro, já que 11% das mulheres entrevistadas afirmou espontaneamente já ter sofrido violência sexual, mas o percentual subiu para 39% quando era apresentados os diversos tipos de situação que configuram uma agressão nestes termos. São inúmeras as possibilidades para que uma relação sexual entre o casal envolvido efetivamente acabe descambando para o estupro marital.

No Brasil, a recusa de sexo de esposa para com o marido já foi motivo para anulação de casamento, sendo classificado pela doutrina como um débito conjugal. Em pesquisa realizada em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 25% dos entrevistados concordam que as mulheres devem satisfazer os maridos sexualmente mesmo sem vontade e isso não seria estupro.

3. A NATURALIZAÇÃO DO ESTUPRO MARITAL CONTRA A MULHER EM FASES DO COTIDIANO

 

Atualmente, a violência contra a mulher é sistêmica e acontece de várias formas e se faz presente em diversos espaços: em casa, na rua, no ambiente virtual e até mesmo no parto.

A naturalização da violência contra a mulher coloca as agressões dentro de um relacionamento como um descontrole, um mero desentendimento, um problema privado e até mesmo como algo motivado pela própria vítima e essa culpa faz com que o silencio e a vergonha façam parte do cotidiano de um número elevado de mulheres. 

Existem muitas falas que achamos inofensivas e que muitas das vezes contribuem diretamente para a violência misógina ser tão naturalizada e acabam por legitimar, socialmente essas agressões. É necessário refletir sobre elas e parar de usá-las.

Os discursos mais comuns são representados por frases como: Falar ‘’ Ele te bateu porque gosta de você’’ para as crianças. Essa frase coloca a violência como uma forma de demonstrar carinho/ amor/ afeto. É algo comum de serem ditas para meninas quando elas apanham de meninos na escola. Falar isso para crianças, é o mesmo que ensinar que a violência faz parte do amor.

 

4. DISSENSO DA VÍTIMA: NÍVEL DE RESSISTÊNCIA

 

Na maioria das vezes, a mulher que sofre o estupro marital não denuncia o agressor por medo, medo de ser assassinada, espancada, medo dos filhos sofrerem agressões ou de perder a guarda deles. Além desse medo, há por trás disso tudo uma dependência emocional, financeira e até mesmo vergonha de se sentirem culpadas pelos acontecimentos e isso só intensifica cada vez mais a culpabilidade da vítima e faz com que se mantenham em silencio sobre o que passam ou passaram.

O controle motivado por ciúmes não é amor e muito menos romântico. Controlar o que a parceira veste, com quem ela conversa, onde ela vai, proibir que ela faça algo, não é sintoma de paixão, é sinal que o relacionamento é abusivo e nada saudável.

Quebrar o silencio e sair de um relacionamento abusivo é muito difícil e a pessoa precisa e necessita receber apoio de amigos e familiares e não absorver os comentários que a culpa diante da sociedade.

A cultura machista influencia em tudo: em como o judiciário irá aplicar o disposto em lei, em como os profissionais de saúde e os policiais atenderão a vítima de violência e em como a sociedade irá encarar a violência sofrida por uma mulher em nosso cotidiano.

 

5. A POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DO ABORTO LEGAL

 

O ordenamento jurídico brasileiro, dispõe sobre o aborto nos seus artigos 124 a 128 do Código Penal, sendo considerado crime todas as modalidades, tendo como exceção o aborto legal, previsto no artigo 128 do Código Penal.

Em seu dispositivo legal, o artigo 128 do Código Penal, contempla uma causa especial de exclusão da ilicitude, ou seja, não há crime devido ao fato de ser permitido pela legislação brasileira:

 

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante do estupro

II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL, 1940)

 

Em caso de gravidez decorrente de estupro, o aborto é uma das hipóteses em que o dispositivo legal, artigo 128, II, do Código Penal se permite a realização desse aborto sem que haja crime, encontrando fundamento de validade na dignidade da pessoa humana, ou seja, o legislador entende que não se pode exigir da mulher a aceitação em manter uma gravidez, criar um filho, resultante de um momento trágico, covarde e indesejável.

O aborto decorrente do estupro, também conhecido como aborto sentimental, possui um grande envolvimento da questão dos sentimentos da mulher em ter gerado um fruto de um momento de medo, terror e, é nesse sentido que acredita-se que a mulher não precisa gerar um ente sabendo que este não foi concebido consensualmente, com aceitação e amor, e ter que criar uma criança nessa situação seria triste e frustrante.

Logo, o estupro marital traz consigo inúmeras dificuldades, tanto no reconhecimento de que houve o crime, quanto no ato da denúncia, bem como no momento de admitir aos familiares e conhecidos sobre os abusos sexuais domésticos.

Pelo imenso repúdio ao referido crime, muitas das vezes a sociedade custa a acreditar na frequência com que as mulheres são abusadas sexualmente dentro de seus próprios lares e pelo próprio marido. Além da indignação, ocorre ainda que, diante de problematizações enfrentadas pela vítima para a realização da denúncia, acaba que o crime não se torna reconhecido pelas autoridades policiais e pela sociedade.

 

6. A REALIDADE BRASILEIRA

 

6.1. Análise a lei Maria da Penha (nº 11.340/2006)

 

A Lei Maria da Penha foi sancionada no ano de 2006, visando a proteção da mulher e é aplicada a diversas forma de violência doméstica, que inclui a sexual. Esta lei é considerada como um avanço na legislação brasileira, visto que a ONU (organização das nações unidas) a considera como uma das três maiores legislações do mundo no que se refere ao enfrentamento a violência contra a mulher.

Em seu artigo 1º a referida lei dispõe:

 

Art. 1º - Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (BRASIL, 2006)

 

O estupro marital também está abarcado na Lei Maria da Penha, já que a referida lei busca punir a violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial que ocorrem na constância domiciliar, entretanto, por mais que a Lei traga consigo um extenso rol de punições para os agentes que praticam tais crimes, também possui diversas modalidades de medidas protetivas à mulher vítima de violência doméstica.

 

A Lei Maria da Penha em seu artigo 7º, III, esclarece a violência sexual da seguinte forma:

 

Art. 7º - São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:  

(...)         

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

(...) (BRASIL, 2006)

 

Desta forma, o conjugue que praticar relação sexual com sua mulher mediante a coação incorrerá no crime tipificado pelo mencionado artigo e poderá sofrer as medidas punitivas, bem como respeitar as medidas de proteção à mulher.

 

7.  A VITIMIZAÇÃO DA VÍTIMA NO ATENDIMENTO INSTITUCIONAL

 

Grande parte das mulheres vítimas da violência sexual na constância do matrimonio deixam de realizar as denúncias e de procurar ajuda das autoridades policiais devido ao mau funcionamento das redes de atendimento das delegacias e de seus funcionários.

O Estado é omisso no momento de aplicar as normas pertinentes e há uma má configuração das políticas públicas de atendimento à mulher, juntamente com o escasso preparo de atendimento daqueles que integram a equipe de atendimento.

A ideia de revitimizar a mulher se dá da seguinte forma: primeiramente a figura feminina sofre violência doméstica perpetrada pelo próprio cônjuge, e após o período de sofrimento e anseios de denunciar ou não o agente, quando a vítima decide denunciar o agressor e procurar ajuda, ela novamente se torna vítima em outra situação, dessa vez, secundariamente pelo Estado com seu mau funcionamento.

Os órgãos públicos e seus agentes são os responsáveis por vitimizar a mulher ao invés de acolhe-las após o sofrimento do abuso sexual ou qualquer outro tipo de violência doméstica e familiar. 

Além disso, a lei Maria da Penha, prevê que as vítimas deverão serem amparadas por uma equipe eficiente, bem preparada e capacitada com o conhecimento amplo na violência baseada no gênero. E ainda, conta com uma multidisciplinariedade, por incluir assistências nas mais variadas áreas, sendo a área psicossocial, a área de saúde e etc.

No mais, de acordo com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2006, p.41 e 42), no que se refere às Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, devem ser inseridas nas mesmas, medidas preventivas com objetivos de instigar, incitar e amparar organizações seja governamentais ou não com intuito de erradicar a violência, seja ela, moral, sexual, psicológica, física, patrimonial e dentre outras contra as mulheres. No entanto, tal Instituição menciona algumas ações preventivas, a serem seguidas, sendo as mesmas:

• Campanhas de comunicação com filmes, cartilhas e informativos a serem divulgados, sobretudo, entre as (os) profissionais de segurança pública, em escolas, rádios comunitárias e espaços da mídia em geral;

• Realização de Oficinas dirigidas às mulheres, pautadas por conteúdos afirmativos em relação ao papel da mulher na sociedade e disseminar ações que promovam a mudança de paradigma em relação aos papéis masculino e feminino;

• Promoção de campanhas pela cultura de não violência, que mobilizem, sobretudo, a juventude como forma de prevenção à violência de gênero;

• Divulgação da Central de Atendimento à Mulher – “Ligue 180”;

• Apoio e Estímulo à criação de Defensorias específicas de Atendimento à Mulher no âmbito das Defensorias Públicas;

• Implementação da política de valorização profissional destinada às mulheres policiais, levantando junto a essa categoria quais as suas prioridades, necessidades e demandas.

Verifica-se desta forma, que o estupro marital é um inimigo sorrateiro, que age dentro das quatro paredes de um lar, na maioria das vezes agregado à violência ou grave ameaça, obrigando, portanto, a cônjuge virago a praticar conjunção carnal sem o seu consentimento. Sendo assim, percebe-se que tal delito fere, não só o corpo, mas também princípios e diretos basilares garantidos constitucionalmente ao ser humano, como a integridade moral e a dignidade da pessoa humana.

 

7.1. Comprovação da ocorrência de violência sexual

 

A prova que constata a ocorrência do crime sexual, principalmente a do estupro, é feita através do exame de corpo de delito, onde se verificará a materialidade do crime.

Entretanto, vale destacar que o exame de corpo de delito irá identificar os vestígios deixados pelo agente delituoso, ou seja, se houve por exemplo introdução peniana ou de algum outro objeto, procurará presença de espermas na vítima, lesões nas regiões intimas da vítima, entre outros. 

Ocorre, que na maioria das vezes, o exame de corpo de delito gera medo e constrangimento na mulher devido a situação a qual será exposta, e, além disso, nem sempre poderá se comprovar algo através do mesmo, diante do fato de que, às vezes a mulher denuncia após uma tentativa do cônjuge de obter uma relação sexual forçada, sendo assim, nada será constatado no exame, assim Nucci dispõe que:

 

Como regra, havendo violência real e comparecendo a vítima para analise médica, obtém-se sucesso na elaboração do exame de corpo de delito; entretanto, nos casos de grave ameaça e nas situações de vulnerabilidade, torna-se praticamente impossível a realização da perícia. Ressalte-se ainda, casos em que ocorrem atos libidinosos diversos da conjunção carnal, como um beijo lascivo forçado, imune a exames periciais. (NUCCI, 2011, p. 29)

 

Devido ao constrangimento pelo qual a vítima deverá passar ao ser submetida ao exame de corpo de delito, deve caber ao bom senso comum dispensar a perícia, nas hipóteses em que sua realização não seja mais possível ou que ainda causa danos ainda maiores à vítima.

O doutrinador criminalista Guilherme Nucci, menciona que:

 

A realização desta perícia é um dos meios mais seguros de prova. Não sendo possível, substitui-se o exame de corpo de delito pela prova testemunhal, querendo com isto, apontar para a narrativa das pessoas que tenham visto a ocorrência do crime, embora sejam leigas e não possam atestar cientificamente a prática do crime. (NUCCI, 2011, p. 47)

 

Por mais que a perícia seja um dos meios de prova mais relevantes, a vítima poderá dispensá-lo em determinados casos, não precisando novamente ser exposta a uma condição de elevado constrangimento. Portanto, deverá provar por meio de prova testemunhal, o que é muito mais difícil.   

 

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com base no que foi exposto, nota-se que desde os primórdios da humanidade há uma cultura enraizada na sociedade acerca das práticas abusivas sexuais, psicológicas, morais, sociais, pelo homem diante da mulher. O homem é visto pela sociedade como uma figura que deveria ser servida e obedecida a todo instante pela mulher e ainda ser visto como o chefe patriarcal da família.

Desde cedo, a figura feminina foi inserida na situação de subordinação, respeito e dedicação à satisfação do cunho sexual do varão. A prova disso, é que a Constituição Federal de 1824 nem considerava as mulheres como cidadãs, ou seja, nem se quer tinham seus direitos assegurados, não tinham direito a nada, apenas a servidão ao homem.

O crime de estupro ainda é muito relativizado, visto que os antigos ordenamentos penais eliminavam e até mesmo descaracterizavam o crime de estupro em diversas hipóteses, entre elas está a relação sexual abusiva intramatrimonial, que era vista como a prática dos direitos sexuais do homem, ou seja, a mulher tinha a obrigação de apenas aceitar e cumprir com o seu ‘’ dever’’.

Com o decorrer dos anos, pode-se dizer que a sociedade teve uma grande evolução em seus ordenamentos e também trouxeram consigo inúmeros avanços jurídicos e sociais. Entretanto, mesmo diante de todos esses avanços, ainda permanecem nos tempos atuais muitas das culturas ancestrais e, isso faz com que ainda exista por parte da sociedade, uma enorme falta de informatização e desconhecimento a respeito dos seus direitos, deveres e desigualdade entre a figura feminina e masculina.

O crime de estupro nas relações matrimoniais é um tema ainda desconhecido por grande parte da população, muitos acreditam que a mulher deva satisfazer os desejos sexuais do cônjuge e por esse motivo, muitas das vezes as mulheres que se submetem à pratica de relações sexuais não consentidas, na maioria das vezes desconhecem a configuração do crime de estupro, devido ao fato de que, o agente é seu próprio cônjuge e por acreditarem que estão ‘’ cumprindo a sua função’’ de esposa.

A mulher que sofre o abuso marital, ainda encontra inúmeras dificuldades para se realizar a denúncia contra o agressor e, isso se dá por conta de diversos fatores, sendo eles: a falta de um funcionamento correto das delegacias especializadas, a precariedade no atendimento à mulher, a falta de ética, profissionalismo e preparação das autoridades e funcionários para lidarem com a situação narrada pela vítima, o descaso, a vergonha e até mesmo humilhação que a vítima poderá sofrer no ambiente familiar, social, na delegacia, a dificuldade na obtenção de provas materiais e testemunhais, pelo fato de o crime ocorrer silenciosamente na constância do próprio lares, entre vários outros motivos.

No ano de 2006, houve a criação da Lei Maria da Penha, lei esta, que visa coibir a prática de violências domésticas contra homens e mulheres e traz em seu texto medidas protetivas, amparo e uma certa segurança à aquelas pessoas que sofrem tais condutas delituosas. Esta lei, busca dar à mulher um atendimento especifico e multidisciplinar, mas sua aplicabilidade, infelizmente nem sempre é eficaz.

Além do mais, a sociedade brasileira necessita urgentemente se conscientizar e entender que a desigualdade de gênero não pode continuar existindo, há uma necessidade de maior informatização dessas pessoas a respeito das hipóteses de denúncia, para que o agressor possa ser punido pelos atos praticados e não permaneça impune e, também, que haja uma maior aplicabilidade das medidas protetivas à mulher e melhora das medidas punitivas dos agentes que praticam crimes de violência doméstica.

  • Conjunção
  • Estupro
  • Violência
  • Ameaça
  • Crime
  • Ato Libidinoso

Referências

BARROSO, LUÍS ROBERTO. A Dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. 2010. Disponível em:< http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa_humana_no_direito_constitucional.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2018.

 

BARBOSA, Celísia; TESSMANN, Dakiri Fernandes. Violência Sexual nas Relações Conjugais e a Possibilidade de Configurar-se Crime de Estupro Marital, 2014.

 

BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível em: <http://www2.câmara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890 503086-publicacaooriginal-1-pe. Html>. Acesso em: 25 nov.2018.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

 

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Franciele Rocha

Advogado - Fernandópolis, SP


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