Reflxões Acerca do Aborto de Anencéfalos


05/09/2013 às 23h08
Por Flávio Honorato Queiroga

1. INTRODUÇÃO

O aborto de fetos anencéfalos, também conhecido como aborto eugênico ou eugenésico, é tema amplamente controverso na seara jurídica brasileira e tem, em tempos recentes, suscitado discussões as mais acirradas, seja no âmbito jurídico, seja entre a população de modo geral. Tratando-se de debate tão polêmico e sujeito a variada gama de interpretações, parece-nos inviável abordá-lo em sua totalidade, o que ensejaria postura assaz ambiciosa para os limites desse trabalho.

O escopo desse artigo reside em dois pontos específicos. O primeiro consiste em assinalar a inexigibilidade de conduta diversa como possibilidade de autorização do aborto eugênico. Em segundo plano, deseja-se discursar a respeito de algumas posturas jurídicas sobre o assunto, tomando como fundamento as diferenças existentes entre a moderna doutrina e a lavra de autores que examinaram o problema em período não muito distante da década de 1940. É nesse sentido que procuramos buscar o substrato da postura de alguns eminentes juristas que, naquela época, se recusavam a aceitar a autorização para abortar fetos anencéfalos. Tal empreitada, como se verá, não resulta de afirmações passíveis de comprovação. São apenas considerações que, a despeito de seu aspecto especulativo, colocam-nos diante de um problema assaz interessante: o descompasso existente entre o direito e a realidade social relativamente a cada um desses contextos.

2. A ANENCEFALIA E A VIDA

Questão reputada essencial relativamente à discussão em tela é a definição do conceito de vida humana. O dilema a balizar o debate pode ser visto por muitos como simplório, em que pese ser dotado de enorme relevância: qual é o momento em que a vida se inicia e o momento em que ela acaba? A resposta a essa indagação seria insuficiente para os propósitos de nossa exposição, pois entendemos ser fundamental a compreensão dos limites da vida abarcados pelo direito. Dito de outro modo, de nada adianta a ciência médica conceituar a vida, estabelecendo parâmetros idôneos, se o direito não acatar tal conceituação. O conceito de vida não decorre da lei, mas é por ela fundamentado quando se tem em vista a necessidade de tutelá-la.

As discussões médicas sempre tiveram por objetivo chegar a um consenso sobre o instante em que a vida deixa de existir. A incapacidade de respiração foi, durante anos, o único parâmetro responsável por dimensionar os indícios vitais. Com o passar do tempo, novos fatores passaram a constituir elementos importantes em sua verificação. Seja como for, determinar o momento da morte do ser humano é uma das tarefas mais delicadas para estudiosos da área médica.

Vejamos algumas considerações médicas sobre o assunto: "Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular". A explicação acima consignada é bastante clara quanto às duas possibilidades de aferição da morte. Interessa-nos prosseguir com a explicação sobre a morte encefálica, objeto constitutivo de nossa exposição: "Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral. (Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº. 1.480, de 08 de Agosto de 1997). Segundo o CFM, em sua Resolução Nº. 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por não possuírem o córtex, mas apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica". É significativa a concepção que tem o Conselho Federal de Medicina sobre os anencéfalos. Sigamos, ainda mais, na esteira dessas explicações: "E sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral".

Exposta, de modo sumário, a relação entre anencefalia e a vida, vejamos então quais são, do ponto de vista médico, as características da primeira. Tome-se como referência um texto de caráter multidisciplinar: "Uma malformação que faz parte dos defeitos de fechamento do tubo neural (DFTN). Quando o defeito se dá na extensão do tubo neural, acontece a espinha bífida. Quando o defeito ocorre na extremidade distal do tubo neural, tem-se a anencefalia, levando a ausência completa ou parcial do cérebro e do crânio. O defeito, na maioria das vezes, é recoberto por uma membrana espessa de estroma angiomatoso, mas nunca por osso ou pele normal. A anencefalia é uma malformação incompatível com a vida". Parece-nos demasiado relevante a incompatibilidade entre a vida e a anencefalia. Correndo o risco do exagero, certamente há quem enxergue mais do que incompatibilidade e coloque ambos como termos antitéticos.

As complicações maternas derivadas da gestação de fetos anencéfalos também não são suficientes para justificar o aborto. A doutrina é bastante enfática ao assinalar que o simples agravamento do estado de saúde da gestante é insuficiente para autorizar a prática abortiva. Portanto, deve a mãe correr perigo de morte para que lhe seja permitida a conduta do aborto, conforme se verá adiante.

3. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA

É sabido que o direito à vida encontra guarida jurídica em vários diplomas legais brasileiros. Não bastasse o Código Penal ampará-lo, tem-se, ainda, o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não menos importante é sua inserção no âmbito constitucional. Trazendo a discussão para essa seara e tendo-se em vista os direitos humanos fundamentais, assevera Alexandre de Moraes: "Entendemos em relação ao aborto que, além das hipóteses já permitidas pela lei penal, na impossibilidade do feto nascer com vida, por exemplo, em casos de acrania (ausência de cérebro) ou, ainda, comprovada a total inviabilidade de vida extra-uterina, por rigorosa perícia médica, nada justificaria sua penalização, uma vez que o direito penal não estaria a serviço da finalidade constitucional de proteção à vida, mas sim estaria ferindo direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos: liberdade e dignidade humanas. Dessa forma, a penalização nesses casos seria de flagrante inconstitucionalidade". Em suma, conforme apreciamos as observações do autor, se é certo que os preceitos constitucionais devam ser respeitados, não menos correto é a observância de meios que permitam a defesa intransigente dos valores humanos. Também no que se refere à proteção constitucional do direito à vida, André Ramos Tavares observa a dimensão dúplice do conteúdo desse direito: "O conteúdo do direito à vida assume duas vertentes. Traduz-se, em primeiro lugar, no direito de permanecer existente, e, em segundo lugar, no direito a um adequado nível de vida". A falta de um "adequado nível de vida" já seria, ao menos para alguns, suficiente para se justificar a prática abortiva no caso de anencefalia.

Sabe-se que a legislação penal brasileira consente o aborto mediante duas circunstâncias: quando a gestante corre risco de morte e em caso de "gravidez resultante de estupro" (art. 128 do CP). Como se vê, o ordenamento jurídico é claro quanto às duas condições sob as quais o aborto não é fato antijurídico. Além dessas, nenhuma outra condição poderá ser aceita como justificativa para a prática abortiva, nem mesmo o aborto honoris causa e o aborto social. De maneira semelhante, o aborto eugênico não se encontra entre as condições de exclusão de ilicitude. Antes de abordarmos esse ponto, deixemos claro que o aborto eugênico não se refere apenas à conduta de interrupção da gravidez por anencefalia ou acrania. Considera-se eugênico o aborto realizado em virtude da malformação fetal, sendo ela de qualquer tipo. Assim, o aborto de fetos acrânicos ou anencéfalos é uma espécie do gênero aborto eugênico. Essa não é uma informação de somenos importância, posto que a especificidade do aborto de fetos anencéfalos é o que pretendemos discutir. Ela não pode, em nenhuma hipótese, ser confundida ou associada de modo genérico e vago com a prática abortiva que se processa como conseqüência da constatação de desenvolvimento pouco exitoso do feto. Não está prevista nesse caso, portanto, a gestação de seres com simples anomalias. A deformidade que nos interessa é específica: a ausência de cérebro ou da abóboda craniana. Posto isso, a título de exposição, toda vez que nos referirmos ao aborto eugênico, estaremos nos reportando ao aborto eugênico de fetos anencéfalos.

Dando prosseguimento à linha narrativa que vínhamos adotando, assinalemos a postura doutrinária de Mirabete sobre o aborto eugênico: "Não prevê a lei a exclusão da ilicitude do aborto eugênico (ou eugenésico, ou eugenético, ou piedoso), que é o executado ante a prova ou até a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves ou fatais (anencefalia ou acrania, p. ex.), embora haja movimentos, a nosso ver totalmente justificados, em favor da legalização dessa prática. Já há precedentes jurisprudenciais no sentido de que, provada a anomalia grave, o aborto deve ser autorizado, mas os alvarás concedidos ainda não encontram apoio nem no direito material nem no direito processual". As ponderações do eminente jurista são claras no que se refere ao tratamento jurídico dado à matéria em questão. Note-se que, não obstante ressalte a existência de alvarás aptos a autorizar a prática abortiva, eles não encontram sustentação legal. Dito de outra forma, a despeito de haver a possibilidade de consentir a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, tal consentimento não está amparado juridicamente. Em suma, permanece como conduta alheia ao universo do direito.

Poderia soar estranho, e mesmo contraditório, que falar-se em aborto não significa referir-se a uma inequívoca violação à vida, não sendo, assim, um desrespeito notório aos princípios do direito em geral. Essa estranheza não se manifesta despropositada, em que pesem alguns aspectos cuja defesa seja necessária para a compreensão das premissas desse trabalho.

A prática de aborto de feto anencéfalo não poderá ser considerada antijurídica, já que o aborto relaciona-se à interrupção de uma vida em curso. Não sendo, pois, o feto anencéfalo dotado de vida, de acordo com as ponderações médicas, inexistiria pertinência em considerá-lo crime. Notemos: "Portanto, entendemos que o feto, desde sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a anencefalia, era merecedor de tutela penal, pelo pressuposto da existência de vida. Mas, a partir do momento em que se comprovou a morte encefálica, deixou de ser amparado pelo art. 124 do CP".

A despeito da proibição prevista no Estatuto Repressivo Penal, na prática há uma possibilidade para autorizar o tipo de abortamento que vimos analisando. Referimo-nos à inexigibilidade de conduta diversa. É justo exigir-se da mãe conduta diferente da adoção do aborto diante da ciência de que seu filho é um ser anencéfalo? E no caso dessa mãe ter abortado, é justo condená-la por isso? O que deve se entender por exigibilidade de conduta diversa? Qual é seu fundamento? Rogério Greco explica que é "a possibilidade que tinha o agente de, no momento da ação ou omissão, agir de acordo com o direito, considerando-se sua particular condição de pessoa humana". Do contrário, se o agente não dispunha da possibilidade acima aludida, não haveria como dele exigir a conduta diversa. Trata-se, nesse caso, de uma exclusão supralegal da culpabilidade. No Código Penal brasileiro, estão previstas duas situações de tal exclusão: a coação irresistível e a obediência hierárquica". Ambas estão insculpidas no art. 22, que diz: "Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem".

Questão polêmica, como bem observara Guilherme Nucci, é a aceitação da inexigibilidade de conduta diversa como "tese autônoma, desvinculada das excludentes da coação moral irresistível e da obediência hierárquica". Segundo o autor, "o legislador não definiu culpabilidade, tarefa que restou à doutrina, reconhecendo-se, praticamente à unanimidade, que a exigibilidade e possibilidade de conduta conforme o Direito é um dos seus elementos. Ora, nada impede que de dentro da culpabilidade se retire essa tese para, em caráter excepcional, servir para excluir a culpabilidade de agentes que tenham praticado determinados injustos". Diante das ponderações do autor, não parece descabido atribuir à prática do aborto de fetos anencéfalos uma causa de exclusão da culpabilidade. Enfim, resta patente a impossibilidade de exigir da mãe conduta diversa da prática do aborto.

Façamos mais indagações sobre o assunto: diante de um quadro de profundo sofrimento psíquico e mental, poderia a mãe conviver com a angústia de presenciar o nascimento de um filho que sabe não ter condições de viver? Seria possível exigir dela essa conduta? Em caso afirmativo, qual é o fundamento de tal exigência?

Cremos ser possível responder a tais questões sem ponderar sobre um aspecto notadamente pessoal do problema. Não seria descabido reproduzirmos o depoimento de uma mãe cujo feto foi acometido por anencefalia. Com esse procedimento não visamos, em absoluto, dotar a discussão de traços sentimentais e tampouco apelativos da idiossincrasia de quem vivencia o problema em tela. Vejamos: "Estou grávida já no 4º mês de gestação. Através de exames soube que a criança apresenta problemas sérios cerebrais e também na coluna cervical, o que impossibilita a vida extra-uterina. Diante dessa constatação, gostaria de realizar o aborto. Tenho ciência das conseqüências que o aborto pode acarretar, mas mesmo assim estou decida a praticá-lo, pois que seria mais danoso ver a criança nascer nas condições em perspectiva. (...) Os médicos me asseguraram que a criança não vai ter sobrevivência após o nascimento".

O depoimento do pai parece-nos também de elevada relevância, pois que, embora não possa argumentar sofrer o martírio físico e correr os riscos da gestante, está sobremaneira envolvido psicologicamente com o dilema. Notemos a dramaticidade de que se reveste sua opinião: "Conversamos bastante e chegamos à conclusão de realizar o aborto, pois, pelo contrário, ao invés de prepararmos o enxoval, teríamos que preparar o caixão e o velório. Das possíveis conseqüências do aborto, tenho conhecimento que o mesmo possa dificultar futura gravidez".

Note-se que, em ambos os depoimentos, clara está a ciência dos males que podem decorrer do processo abortivo. Esse dado é significativo de como estava o casal decidido a interromper a gestação, mesmo sabendo que, no futuro, poderia haver dificuldade de nova gravidez. Haveria, aqui, argumento mais forte para legitimar a decisão do aborto? Poder-se-ia exigir do casal outra conduta, diversa desta expressa em seus depoimentos?

Parece-nos paradigmática, nesse sentido, a sentença proferida pelo Juiz José Henrique Rodrigues Torres, acerca de um caso ocorrido na cidade de Campinas. Na percuciente exposição que fizera para fundamentar sua decisão, encontramos o oportuno trecho que segue: "...as circunstâncias do fato desvelam a inexistência de reprovabilidade para o abortamento que se pretende realizar, pois, à evidência, outra conduta não se pode exigir da requerente. Urge a prática do abortamento, na espécie, em face das circunstâncias peculiares e excepcionais que caracterizam a gravidez da requerente. Não se pode exigir, social ou juridicamente, que a requerente leve a termo a sua gravidez. [...] Há inexigibilidade de conduta diversa no que diz respeito ao comportamento da gestante e, obviamente, também no que concerne à intervenção do médico e de todos os profissionais que participarem do abortamento".

Sob essa perspectiva, a defesa do aborto de fetos anencéfalos é realizada por um significativo número de autores e juristas consagrados.

A temática do aborto de fetos anencéfalos sempre foi bastante delicada e discutida por juristas de posições as mais distintas. No entanto, foi apenas recentemente que ganhou notoriedade e ensejou debates entre a opinião pública de modo geral.

Em 1º de julho de 2004, o ministro Marco Aurélio de Mello concedeu liminar que autorizava o abortamento de feto anencéfalo com base em pedido realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS). Pouco tempo se passou para que, em 20 de outubro do mesmo ano, o julgamento da decisão monocrática fosse levado a termo. Apenas quatro dos magistrados do Supremo Tribunal Federal votaram pela manutenção da liminar: o próprio Marco Aurélio de Mello, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Eros Grau justificou seu voto contrário alegando que "o Código Penal não pode ser reescrito pelo Judiciário e permitir uma terceira modalidade de aborto". Seus argumentos, assentes na observância do dispositivo sobre o aborto, foram amplamente aceitos pelos demais ministros, o que resultou na imediata cassação da liminar.

Desde então, a polêmica acerca do aborto de feto anencéfalo tem dividido opiniões, envolvendo um leque diversificado de questões que vão desde valorações éticas a religiosas. Como é costume em casos jurídicos que abarcam a defesa da vida, a Igreja Católica não se furtou a manifestar sua posição. Embora laico, o Estado brasileiro ainda se vê às voltas com a influência de opiniões religiosas, chegando mesmo, em algumas circunstâncias, a ter de colocar em pauta as posturas assumidas por seus líderes.

O processo de laicização do Estado, ocorrido sobretudo após a Revolução Francesa, propiciou a dissociação entre a religião e o Estado e motivou uma nova forma de concepção a respeito de certos temas. Além disso, se na época do Ancien Régime a religião católica praticamente determinava a visão de mundo do indivíduo, com o surgimento de uma nova realidade social – fundada na crescente racionalização do mundo – ela terá papel secundário. Ainda assim, é curioso notar que não obstante tenha abolido a religião como dado estrutural de sua existência, o próprio Estado permite a ingerência da Igreja Católica em questões que não são de sua alçada, chegando a influenciar tribunais jurídicos.

Seria, contudo, restringir o foco da contenda à esfera religiosa se não admitíssemos a presença de outros setores sociais que, de uma maneira ou de outra, mostraram-se sequiosos de participar da discussão.

A despeito da cassação acima consignada, a liminar de Marco Aurélio de Mello ensejou intensa polêmica. Não bastassem as justificativas apresentadas pelo ministro quando de seu parecer, ainda se propôs a discutir o tema abertamente, publicando artigo em jornal de ampla circulação. Não lhe seria necessária uma tal postura, posto que sua função de magistrado não exige esforços de esclarecimentos diante da opinião pública. Ainda assim, parece-nos que sua motivação ao escrever o texto se pautava na intenção de trazer a lume ideias caras ao debate.

Esse debate teve seu clímax quando o Supremo Tribunal Federal finalmente pôs fim a discussão, com o julgamento da ADPF 54, que será tratada em capítulo próprio.

4. O STF E O JULGAMENTO DA ADPF 54

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 autorizou a interrupção de gestação com feto anencéfalo.

Anencefalia, como já conceituada, é a malformação congênita do feto, por ausência de crânio e de encéfalo. Segundo a ciência médica, causa morte em 100% dos casos. O feto, se alcançar o final da gestação, sobrevive minutos ou dias, no máximo.

A decisão, nas palavras do Ministro Cezar Peluso, foi a mais importante da história do STF.

A questão consistia em saber se a interrupção da gestação de feto sem cérebro caracteriza o crime de aborto, previsto no artigo 124 do Código Penal.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número 54 – ADPF 54 foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, cuja atuação foi representada pelo atual ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e que aviou, em resumo, as seguintes alegações:

a) a hipótese em julgamento não configura aborto, que pressupõe potencialidade de vida do feto. A interrupção da gravidez de feto anencéfalo não configura hipótese prevista no artigo 124 do Código Penal;

b) o sistema jurídico pátrio não define o início da vida, mas fixa o fim da vida (com a morte encefálica, nos termos da Lei de Transplante de Órgãos). Na hipótese em julgamento não haveria vida e, portanto, não haveria aborto;

c) as normas do Código Penal que criminalizam o aborto são excepcionadas pela aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).

O STF, por maioria de votos (8 x 2), julgou procedente o pedido veiculado na ADPF 54. Em resumo, foram utilizados os seguintes fundamentos:

Min. Marco Aurélio (relator): o feto anencéfalo é incompatível com a vida e por isso não é proporcional defender o feto – que não vai sobreviver – e deixar sem proteção a saúde da mulher – principalmente a mental;

Ministra Rosa Weber: deve-se proteger a liberdade individual e de opção da gestante, pois não há interesse jurídico na defesa de um feto natimorto;

Ministro Luiz Fux: o Código Penal é da década de 1940 e na época não era possível prever e identificar um feto anencéfalo. Atualmente, trata-se de uma questão de saúde pública que deve ser respeitada em prol da mulher.

Ministra Cármen Lúcia: considerando que o feto não tem viabilidade fora do útero, deve-se proteger a mulher, que fica traumatizada com o insucesso da gestação.

Ministro Ayres Britto: afirmou que todo aborto é uma interrupção da gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto, de modo que não se pode impor à mulher o martírio de gestar um feto anencéfalo.

Ministro Gilmar Mendes: a interrupção da gestação, no caso, tem por finalidade proteger a saúde da gestante e o legislador do Código Penal não possuía elementos para a identificação da anencefalia na gestação.

Ministro Ricardo Lewandowski: votou pela improcedência do pedido, entendendo que o STF não possui legitimidade para deliberar sobre o caso, apenas o Congresso Nacional, por meio de lei.

Ministro Joaquim Barbosa: acompanhou o voto do relator.

Ministro Celso de Mello: não se trata do aborto previsto no Código Penal, pois o feto sem cérebro não está vivo e sua morte não tem por origem alguma prática abortiva.

Ministro Cezar Peluso: votou pela improcedência do pedido, afirmando que o feto anencéfalo é um ser vivo e, por conseguinte, a interrupção da gestação caracteriza o aborto.

Ministro Dias Toffoli: não participou do julgamento, pois atuara na condição de Advogado Geral da União.

A tese abraçada pelo STF segue a linha adotada pela medicina, que considera o feto anencéfalo um natimorto cerebral.

A decisão afasta, mais uma vez, o dogma do legislador negativo, segundo o qual o Judiciário tem legitimidade apenas para excluir do sistema jurídico normas incompatíveis com o texto da Constituição. Na ADPF 54, a decisão demonstra que o STF atuou como legislador positivo. Isto porque o Código Penal apenas prevê duas hipóteses de aborto sem a criminalização, nos termos do seu artigo 128 [Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal].

A decisão proferida na ADPF 54 acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto, qual seja, quando se tratar de feto anencéfalo.

É verdade que o foro adequado para a análise da questão é o Congresso Nacional que, entretanto, omitiu-se na apreciação da matéria. E a inércia do órgão de representação democrática permite a intervenção judicial, pois a proteção de direitos fundamentais é tarefa indispensável do Estado, a exigir a tutela estatal, nos termos do que preconiza o artigo 5ª, inciso XXXV, da Constituição.

Sobre esta questão, é importante a lição de Luís Roberto Barroso:

A vida na democracia é feita pelo processo político majoritário, que se desenrola no Congresso, e pela proteção e promoção dos direitos fundamentais via Constituição e Supremo Tribunal Federal. Quando o processo majoritário está azeitado, fluindo bem, com grande legitimidade, a jurisdição constitucional recua. E quando o processo político majoritário emperra ou enfrenta dificuldades para votar determinadas matérias, o STF tem seu papel ampliado.

Ainda, não se trata de uma obrigação ou dever da mulher de interromper a gestação. O STF apenas autoriza e faculta a prática da cessação da gestação, ao nuto de mulher grávida, em prol da sua dignidade e a fim de minorar seu sofrimento – de saber que o feto não terá viabilidade.

A partir da decisão, portanto, caberá ao SUS promover a política pública de saúde adequada (com apoio psicológico e obstétrico), orientando a mulher grávida de feto anencéfalo, para que tenha a liberdade, a coragem e a sabedoria de adotar uma decisão que melhor se ajuste ao seu sofrimento e à sua situação particular.

A posição manifestada pelo STF decorre da impossibilidade de proteger-se deficientemente a mulher. Vale dizer, não pode o Estado deixar de tutelar determinado titular de direito fundamental, sob pena de violar o princípio da vedação de proteção insuficiente, implícita ao princípio da proporcionalidade.

Portanto, o STF decidiu com acerto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não restam dúvidas de que um dos maiores dilemas do mundo jurídico é sua incapacidade de acompanhar o movimento da sociedade em sua totalidade. Esse dilema encontra acentuado relevo quando se trata de examinar a legislação penal. Concebido em período de costumes e cultura extremamente diversa da atual, o Estatuto Repressivo Penal se afigura, em muitos de seus capítulos e títulos, como diploma legal vetusto, ineficaz e em flagrante dissonância com a realidade social. Não constitui exagero, portanto, a afirmação daqueles que professam sua reformulação, adaptando-o às vicissitudes da moderna sociedade brasileira. A discussão sobre o aborto de fetos anencéfalos é um imperativo dos tempos hodiernos e não se pode deixar de realizá-la, sob pena de perpetuação do caráter antiquado e ultrapassado do Código Penal. É nesse prisma que devemos ler as palavras de Cezar Roberto Bitencourt: "... o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal – não se ignora essa realidade – é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza. Vive-se esse turbilhão de mutações que caracteriza a sociedade moderna, e que reclama permanente atualização do direito positivo que, via de regra, foi ditado e editado em outros tempos, e somente pela interpretação do cientista ganha vida e atualidade, evoluindo de acordo com as necessidades e aspirações sociais, respondendo às necessidades da civilização humana".

A perspectiva jus filosófica e sociológica sobre o aborto eugênico, mormente a respeito da decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, seria capaz de sugerir a seguinte reflexão: ao negar a prática abortiva de fetos anencéfalos por falta de condições legais, não estaria o magistrado impedindo uma conduta legítima por parte da gestante? Expondo a questão em outros termos, não se estaria dando primazia à legalidade em detrimento da legitimidade? As respostas a tais questões, embora pareçam simples, não podem ser dadas de modo maniqueísta. No que consiste, aqui, a legitimidade da interrupção da gravidez por parte da gestante? Salvo melhor entendimento, ela está ancorada do direito de dispor do próprio corpo com o fito de não provocar, em si mesma, qualquer tipo de lesão física ou psíquica. Pauta-se, também, na defesa dos "direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos: liberdade e dignidade humanas". Até mesmo os incautos apreciadores da questão são capazes de admitir, tirante qualquer discussão de ordem jurídica, as nefastas consequências para uma mãe que gerou e pariu um feto sem cérebro.

É preciso entender, no entanto, que conceder autorização para o aborto de fetos anencéfalos não é o mesmo que exigir tal conduta de todas as mães acometidas por esse tipo de problema em sua gestação. Não se poderia, à exceção da hipótese de risco de morte, ordenar que agissem dessa maneira. O que se coloca em questão é tão somente a possibilidade de abortamento diante de uma circunstância que certamente gerará inúmeros transtornos psíquicos à mãe do feto em questão. De modo a evitar transtornos como esse parece admissível também o art. 5º, III, da Constituição Federal, que diz: "Ninguém será submetido a tortura e nem a tratamento desumano ou degradante". Com efeito, exigir o nascimento de uma criança sem cérebro, sem perspectivas sólidas de vida futura, não seria o mesmo que impingir um tratamento desumano à sua mãe? A resposta negativa não seria digna de crédito no reino das ponderações humanitárias.

Repensar as possibilidades de garantir a realização do aborto às mães de fetos comprovadamente anencéfalos é mais do que um exercício especulativo. Constitui uma premente necessidade, apta a evidenciar que, a despeito das lamentáveis oportunidades perdidas com legalismos de toda sorte, é possível dar guarida a um direito assegurado constitucionalmente, e que, graças à feliz decisão do Supremo Tribunal Federal no Julgamento da ADPF 54, finalmente recebeu o respaldo jurídico necessário à sua aplicação no mundo concreto.

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VIANNA, Túlio Lima. Debate sobre aborto demonstra influência religiosa no STF. Revista Consultor Jurídico. 24.10.204. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/30783,1 Acesso em 02.08.2013.

  • Aborto
  • Anencéfalos
  • ADPF54
  • Direito à Vida

Flávio Honorato Queiroga

Bacharel em Direito - João Pessoa, PB


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