RESUMO: Ao conjunto de direito e de deveres dos pais em razão do bem estar dos filhos menores, se dá no nome de Poder familiar. Era anteriormente a Constituição de 1988 o poder familiar centralizado na pessoa do pai, chefe de família, por este motivo chamava-se de "pátrio poder". Atualmente não se observa mais o tal absolutismo de poder, o que deu o direito igualitário a mãe, que com o passar dos anos foi ocupando espaço indispensável na sociedade. Com tantas modificações significativas, passaram a se constituir novas estruturas familiares, dentre elas aquelas que se compõem de pais e filhos ligados apenas afetivamente, sem qualquer identidade genética. Sendo indispensável em se tratando de assuntos pertinentes a dignidade da pessoa humana, nada mais justo que dar total atenção ao sentimento da criança envolvida nos casos de adoção por paternidade socioafetiva. O ordenamento jurídico, embora discorra a respeito da possibilidade de reconhecimento do estado de filho pelo padrasto, não se posiciona a respeito da possibilidade deste, interessado no desenvolvimento da criança, ter a legitimidade ativa e o interesse de agir na propositura de pedido de destituição do poder familiar do pai biológico, em detrimento a posterior adoção da criança envolvida. O objetivo do presente artigo é fornecer breve entendimento a respeito do poder familiar, da paternidade socioafetiva e da problemática recente e pouco discutida acerca da legitimidade do padrasto na destituição do poder familiar.
PALAVRAS-CHAVE: Família; Paternidade; Socioafetiva; Legitimidade Ativa; Interesse de agir; Destituição do Poder Familiar; Legitimidade; Adoção.
Introdução:
As relações travadas no âmbito do Direito de Família são estritamente privadas, intervindo o Estado somente quando necessário para garantia do bem-estar e do interesse daqueles em situação de risco psicológico, físico ou social.
Freqüentemente nossos tribunais têm julgado ações no sentido de compreender a sócio-afetividade e seus desdobramentos de ordem psicológica e legal. Casos como o da união homo afetiva e da relação de carinho mútuo encontrada entre padrastos e enteados têm chegado ao judiciário, visando uma decisão que ampare esse sentimento subjetivo, onde conflitam, na maioria das vezes, diferentes emoções. Situações como essas não podem ser julgadas estritamente pela letra da lei. Pelo contrário, necessita conhecer a realidade do feito que esteja sendo julgado e amparar-se em estudos e profissionais de outras áreas tais como pedagogos, psicólogos e assistentes sociais.
Em um primeiro momento o trabalho buscará relatar a evolução da família desde os tempos remotos até a atualidade, abordando o entendimento doutrinário acerca do poder familiar, bem como traçando uma análise jurisprudencial acerca de tal temática.
A adoção terá enfoque central neste artigo, pois se está tratando da legitimidade ativa do padrasto no processo de adoção do enteado e materialmente a constituição de seu direito em adotá-lo.
A pesquisa jurisprudencial foi importante fonte de recurso e de pesquisa, pois casos dessa ordem não possuem previsão legal e no silêncio da lei, é ao entendimento de nossos tribunais que se recorre, enquanto uma das principais fontes do direito.
Por fim, pode-se dizer que a concreção deste artigo científico possibilitou uma melhor discussão acerca da legitimidade ativa e interesse de agir do padrasto para propor ação com o intuito de destituir o poder familiar do pai biológico em processo de adoção movido por aquele em face deste – que por muitas vezes apenas consta como genitor na certidão de nascimento, não logrando esforços para a manutenção, assistência e carinho ao filho.
1. A Evolução da Família:
A entidade familiar é uma das instituições mais antigas da humanidade. Durante muito tempo ocupou papel central no cerne de uma sociedade patriarcal onde o chefe da família tinha o dever de garantir a coesão de sua prole. Nos tempos remotos, família era apenas a união de pessoas ligadas entre si pelo casamento, ou aquelas que obtinham vínculo pelo parentesco. No decorrer dos anos, a instituição familiar foi tendo significantes modificações, passando a valorizar e incluir no seu conceito às “relações afetivas”, vez que, com a descentralização do poder familiar, que antes era exercido pelo chefe de família (pai), o poder familiar passou a ser exercido tanto pelo pai como pela mãe, ampliando necessariamente o entendimento acerca da expressão “família”.
Com essa necessidade social de mudança no conceito de família, o termo passou a significar o conjunto de pessoas ligadas, tanto consanguineamente, quanto por relações afetivas, que se amparam física, psicológica e financeiramente.
Embora seja a família uma instituição única, cada membro tem um papel específico e indispensável à sustentação desta, sendo extremamente necessária a ocupação e a presença constante de cada um nesta relação, base para o desenvolvimento dos filhos decorrentes da união estabelecida entre pai e mãe, independentemente da forma com que esta se sucede.
O poder familiar deve ser igualmente exercido pelo e pai e pela mãe, porém, em muitos casos isto não ocorre, ficando assim os filhos fadados ao abandono do amparo familiar, o que acarreta a necessidade da intervenção do Estado, ou, ainda, nos casos em que este abandono se dá apenas por um dos genitores, pelo próprio cônjuge ou interessado no desenvolvimento da criança envolvida.
Em muitos casos, inclusive, há famílias em que não se observa a presença de um dos genitores, que, não raro, manifestam desinteresse na assistência tanto educacional, moral, financeira e afetiva do próprio filho, sendo, consequentemente, substituído por alguém que assume o papel do pai ausente, estabelecendo assim a chamada paternidade sócio-afetiva.
Entende-se como paternidade sócio-afetiva aquela que se baseia no sentimento, afeto e interesse por pessoa que não tem ligação consangüínea como o “filho de criação”, mas que age como se pai fosse, dando-lhe total apoio ao seu desenvolvimento saudável e sólido. A relação sócio-afetiva se revela na convivência. Surge da vontade igual de duas pessoas em serem considerados e tratados como se pai e filho fossem.
Aquele que não cumpre com deveres pertinentes à criação de seu filho pode vir a ser destituído do poder familiar, como meio de segurança da criança, que tem o direito e dever de ser tratada e amparada da melhor forma possível pelos pais e pelo Estado.
Em face da destituição do poder familiar, pelo abandono do filho, surge importante debate recente sobre possibilidade de o padrasto, que goza de relação afetiva sólida, de fato, pleitear perante a justiça a adoção do filho(a) de criação, com pedido preparatório de destituição do poder familiar em detrimento do genitor. Discute-se, assim, a possibilidade de o padrasto ter legitimidade ativa e interesse de agir no pedido de destituição do poder familiar.
2.1 O Poder Familiar:
O Código Civil de 1916 trazia a expressão “pátrio poder” referindo-se ao poder do pai em relação aos filhos, descartando a possibilidade da genitora exercer tal poder. Com o avançar histórico da sociedade, a legislação foi sendo modernizada e, já em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente inovou, trazendo, uma nova interpretação com relação ao pátrio poder. Colaciona-se o artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art.21. O pátrio poder será exercido em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurando a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.
O Código Civil de 2002 trouxe para a letra da lei, a expressão “poder familiar”, reservando o capítulo V para tratá-lo. Esse poder familiar deve ser exercido em termos de igualdade pelo pai e pela mãe dos menores. O caput do artigo 1.630 do Código Civil afirma: “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores” seguido pelo artigo 1.631 “durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade”.
Hoje, o poder familiar, constitui-se, nos dizeres de CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2010):
No conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores. O instituto em apreço resulta de uma necessidade natural. Constituída a Família e nascidos os filhos, não basta alimenta-los e deixa-los crescer à lei da natureza, como os animais inferiores. Há que educa-los e dirigi-los.
Dessa forma, não resta dúvida de que a ambos os pais compete importante missão, qual seja, educar os filhos e prestar-lhe total assistência.
Como meio de iminente necessidade de proteção aos direitos dos menores, o poder familiar é imposto aos pais como meio de propiciar um desenvolvimento coerente e justo em favor dos filhos e da própria família, atendendo assim um princípio constitucional da paternidade responsável, como se verifica pelo fundamento constitucional no art. 226;
A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O poder familiar, por ser indisponível, não pode ser alienado, renunciado, delegado ou substabelecido, uma vez que não é permitido que os pais abram mão deste poder sendo ele de ordem pública. Em face desse mandamento, há uma única exceção em que se transfere o poder familiar a outra pessoa, no caso em que se coloca o menor em família substituta, passando assim o poder familiar do genitor, que abre mão deste direito, ao adotante do menor, processo este realizado judicialmente e previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 166;
Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.
Outra característica do poder familiar é a sua imprescritibilidade, ou seja, mesmo que o genitor não aja de acordo com suas funções pertinentes ao desenvolvimento saudável do filho, não será ele destituído do dever, nem mesmo poderá ao menor ser instituído tutor, salvo se a lei determinar, em ambos os casos, a suspensão ou destituição do poder familiar.
Por outro lado, o Código Civil estabelece que estejam sujeitos ao poder familiar os filhos, enquanto menores, entendidos estes como aqueles não emancipados, providos ou não no casamento desde que tenham sido reconhecidos, bem como aqueles que tenham sido adotados em conformidade com a lei, devido ao fato de que o parentesco somente é estabelecido com o devido reconhecimento do estado de filho.
A discussão em razão do poder familiar se encerra quando ocorre a maioridade do filho, ou quando este é emancipado, pelo fato de o menor ao atingir qualquer destas situações, estar habilitado à prática de todos os atos da vida civil, não sendo-lhe mais necessário ampla assistência como antes enquanto mantinha-se sob a direção de seus pais.
2.2. Suspensão, Perda e Extinção do Poder Familiar:
Sendo o poder familiar exercido em razão do interesse do filho menor, cabe ao Estado interferir nesta relação, que, é base da instituição familiar. Na lei, se encontra descriminado casos em que o titular do poder familiar deve ser privado de exercer tal poder, vindo a ser, por determinado tempo, ou definitivamente.
2.2.1 Da Extinção do Poder Familiar:
A legislação infraconstitucional tratou de regular a questão da extinção do poder familiar. O Código Civil apresenta um rol de casos em que ocorrerá a extinção do poder familiar. À luz do art. 1635 destaca-se:
Extingue-se o poder familiar:
I – pela morte dos pais ou do filho;
II – pela emancipação, nos termos do art. 5°, parágrafo único;
III – pela maioridade;
IV – pela adoção;
V – por decisão judicial, na forma do artigo 1.638.
Como é visto, havendo o falecimento de um dos pais, não cessa o poder familiar, que passa a ser destinado apenas ao genitor sobrevivente.
Pela emancipação se atribui a plena capacidade de direito conferida à pessoa abaixo da idade da maioridade, sendo, maioridade aquela adquirida aos 18 anos, idade esta em que a pessoa passa a ser considerada capaz para os atos da vida civil. Segundo o art. 5° do Código Civil, a menoridade cessa nos seguintes casos:
Aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
II – pelo casamento;
III - pelo exercício de emprego público efetivo;
IV - pela colação de grau em curso de ensino superior;
V - pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.
A extinção do poder familiar dá-se também pela adoção e é está forma que é relevante para a concreção do presente trabalho. Portanto, quanto à adoção, o poder familiar passa a ser exercido pelo adotante, vez que, ela extingue o poder da família original. Nesse sentido MARIA HELENA DINIZ (2002, p.462) afirma: “a adoção extingue o poder familiar do pai ou da mãe carnal, transferindo-o ao adotante” Todavia, SILVIO DE SALVO VENOSA (2003, p.367), afirma que não há que se falar em extinção do poder familiar pela adoção e sim uma transferência;
Na verdade, a adoção transfere o pátrio poder, não o extingue. Quando o indivíduo for adotado pelo casal, aos pais adotivos cabe o exercício do poder familiar. Quando a pessoa for adotada só pelo marido ou companheiro, ou só pela mulher ou companheira, só ao adotante, individualmente, compete o exercício do poder familiar.
O entendimento majoritário da doutrina é em falar de extinção do poder familiar pela adoção. É somente com a extinção de um poder familiar que pode se constituir outro em detrimento do mesmo menor.
2.2.2 Da Suspensão do Poder Familiar:
Haverá a suspensão do poder familiar quando o juiz assim determinar, após apuração de falta grave, podendo ser pleiteada tal suspensão por qualquer parente, pelo Ministério Público, ou até mesmo de ofício. A suspensão tem um lapso temporal a critério do juiz, podendo este, vir a determinar outras medidas necessárias.
Nesse sentido, o art. 1637 do Código Civil, refere que podem ser suspensos os pais que abusarem de sua autoridade, faltando aos deveres inerentes a eles ou arruinando os bens dos filhos. Dispõe também que será suspenso do poder familiar os pais que forem condenados em crime cuja pena exceda a dois anos de prisão, conforme parágrafo único do mesmo artigo. Registrando-se que este poder poderá ser restabelecido ao cessar os motivos ao qual se sucedeu.
2.2.3 Da Perda do Poder Familiar:
A sanção mais grave imposta ao genitor é a perda ou destituição do poder familiar, que se caracteriza pela falha aos deveres para com o filho, não agindo de acordo com a sua condição de pai. O Código Civil determina as ocasiões em que ocorre a perda do poder familiar, casos em que se comprova falta, omissão ou abuso. Na forma do art. 1638, perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
As situações que dizem respeito à falta, omissão e abuso dos pais, são de competência da Justiça da Infância e Juventude, prevista no art. 98, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como, na forma do parágrafo único, letra d do art. 148 do ECA, é competente o Juiz da Infância e da Juventude para “conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna, em relação ao exercício do pátrio poder”.
Como observa SÍLVIO RODRIGUES (1999, pág. 359);
A suspensão ou destituição do pátrio poder constituem menos um intuito punitivo dos pais e mais um ato em prol dos menores, que ficam afastados da presença nociva. Uma vez decretada a perda do poder familiar a um dos genitores, o outro passa a exercê-lo isoladamente, salvo se não tiver condições, caso em que deverá ser nomeado um tutor ao menos.
O procedimento de perda ou suspensão do poder familiar terá início por iniciativa do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse. Ao processo de perda ou suspensão do poder familiar, se deve assegurar ao réu o princípio do contraditório e da ampla defesa, sendo, findo o procedimento judicial, averbado no registro de nascimento do menor, conforme art. 164 do Estatuto da Criança e do Adolescente e art. 102, § 6°, da Lei dos Registros Públicos (arts. 24 e 155 do ECA).
3. Paternidade Sócio-afetiva:
Como já se disse, paternidade sócio-afetiva é aquela que se constrói pelos laços de afetividade entre duas pessoas que não apresentam parentesco consangüíneo, mas que vivem como se pai e filho fossem, perante os olhos da sociedade. Nesse sentido PAULO LUIZ NETTO LÔBO (2006):
Muito se avançou no Brasil no que a doutrina jurídica especializada denomina paternidade (e filiação) socioafetiva, assim entendida a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho. A denominação agrupa duas realidades observáveis: uma, a integração definitiva da pessoa no grupo social familiar; outra, a relação afetiva tecida no tempo entre quem assume o papel de pai e quem assume o papel de filho. Cada realidade, por si só, permaneceria no mundo dos fatos, sem qualquer relevância jurídica, mas o fenômeno conjunto provocou a transeficácia para o mundo do direito, que o atraiu como categoria própria.
Ressalva-se que, anteriormente à redação da Constituição de 1988, esta relação não tinha valor ou proteção alguma no ordenamento jurídico pátrio, mas com a ampliação de casos fáticos de ocorrência da paternidade sócio-afetiva se passou a dar importância a esta relação familiar.
Importante salientar, ainda, que, com esta previsão também tendo sido implementada no Código Civil de 2002, o conceito da família moderna, que antes era aquela composta pelos genitores e o filho decorrente desta união, agora passou a ser entendida, por vezes, por aquela em que se fundamenta no convívio diário de afetividade entre pais e “filhos de criação”.
Como se vê, na atualidade, a paternidade se baseia muito mais nos valores morais e éticos adquiridos no convívio familiar no percurso de seu desenvolvimento pessoal do que propriamente no genitor que apenas oferece ao filho o registro de nascimento.
Em decorrência de toda essa mudança social e legislativa, no direito civil atual, vige a sócio-afetividade pelo fato de ser considerado pai ou mãe aquele(a) que demonstram interesse pela criança, oferecendo-lhe assistência para que esta tenha um desenvolvimento saudável, amparo financeiro, bem como total atenção e carinho a fim de que se construa um futuro adulto de caráter e moral, não necessariamente que haja obrigatoriedade de ligação genética.
4. Análise Jurisprudencial:
A temática escolhida para a concreção do presente artigo, ainda é escassa, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Dessa forma, torna-se relevante a discussão da temática de destituição do poder familiar do pai biológico para que o padrasto possa adotar o seu enteado.
Em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, a Corte admite a possibilidade de o padrasto ocupar o pólo ativo da ação de destituição do poder familiar do pai biológico. Tal decisão, fundamentada nos laços de afetividade, baseia o presente artigo científico que introduz a legitimidade do padrasto equiparando-lhe a pessoa interessada prevista do art. 155 de Estatuto da Criança e do Adolescente:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.106.637 - SP (2008/0260892-8). RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI. EMENTA: Direito civil. Família. Criança e adolescente. Adoção. Pedido preparatório de destituição do poder familiar formulado pelo padrasto em face do pai biológico. Legítimo interesse. Famílias recompostas. Melhor interesse da criança. STJ, Terceira Turma - REsp 1.106.637-SP, Rel. Min. Nancy Andrighijulgado em 01/06/2010 - Fonte: Informativo STJ nº 437, em 04/06/2010. Cuida-se de ação de adoção com pedido preparatório de destituição do poder familiar ajuizada por padrasto de filha menor de sua esposa, com quem tem outra filha. A questão posta no REsp consiste em definir se o padrasto detém legitimidade ativa e interesse de agir para propor a destituição do poder familiar do pai biológico em caráter preparatório à adoção de menor. É cediço que o art. 155 do ECA dispõe que o procedimento para a perda do poder familiar terá início por provocação do MP ou de pessoa dotada de legítimo interesse. Por outro lado, o pedido de adoção formulado nos autos funda-se no art. 41, § 1º, do ECA, o qual corresponde ao art. 1.626, parágrafo único, do CC/2002: um dos cônjuges pretende adotar o filho do outro, o que permite ao padrasto invocar o legítimo interesse para a destituição do poder familiar do pai biológico devido à convivência familiar, ligada essencialmente à paternidade social ou socioafetividade, que, segundo a doutrina, seria o convívio de carinho e participação no desenvolvimento e formação da criança sem a concorrência do vínculo biológico. Para a Min. Relatora, o padrasto tem legítimo interesse amparado na socioafetividade, o que confere a ele legitimidade ativa e interesse de agir para postular destituição do poder familiar do pai biológico da criança. Entretanto ressalta que todas as circunstâncias deverão ser analisadas detidamente no curso do processo, com a necessária instrução probatória e amplo contraditório, determinando-se, também, a realização de estudo social ou, se possível, de perícia por equipe interprofissional, segundo estabelece o art. 162, § 1º, do ECA. Observa ser importante dar ao padrasto a oportunidade de discutir a questão em juízo, em procedimento contraditório (arts. 24 e 169 do ECA), sem se descuidar, também, de que sempre deverá prevalecer o melhor interesse da criança e as hipóteses autorizadoras da destituição do poder familiar, comprovadas conforme dispõe o art. 1.638 do CC/2002 c/c art. 24 do ECA, em que seja demonstrado o risco social e pessoal ou de ameaça de lesão aos direitos a que esteja sujeita a criança. Entre outros argumentos e doutrinas colacionados, somadas às peculiaridades do processo, a Min. Relatora, acompanhada pela Turma, reconheceu a legitimidade ativa do padrasto para o pleito de destituição em procedimento contraditório, confirmando a decisão exarada no acórdão recorrido. REsp 1.106.637-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 1º/6/2010.
O julgado acima transcrito se trata de Recurso interposto pelo pai biológico em razão de ação proposta por padrasto de pedido de adoção em relação à menor, filha de sua esposa, com pedido preparatório de destituição do poder familiar do pai biológico.
A sustentação do autor se dá pelo fato de que a mulher manteve a guarda de fato da menor desde seu nascimento, bem como é detentora da guarda provisória por meio de decisão judicial. Nota-se que o padrasto, do julgado em tese, passou a conviver com a mãe da criança, desde que esta completara dois anos de idade, passando a assumi-la como sua filha de criação, cumprindo, de fato, com todos os deveres e obrigações de pai. Embora a menor tenha tido o conhecimento da paternidade biológica, não apresentou qualquer ligação amorosa com o progenitor, considerando como pai aquele que ela chama “pai de coração”.
Com base nos fatos demonstrados, o autor buscou pleitear que fosse decretada a perda do poder familiar do genitor da menor, como medida preparatória para a instauração do procedimento de adoção, a teor do art. 155 do ECA.
O pai biológico, como forma de contestar tal pedido, alegou a ilegitimidade ativa do padrasto, afirmando que somente o representante do Ministério Público ou a mãe da menor detém legitimidade para a propositura da ação, haja visto que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê a legitimação do padrasto que pretende adotar.
No referido Recurso Especial, foi mantido a decisão inicial do juiz pela Ministra, com base no entendimento de que o pedido de adoção tem como alicerce a relação afetiva que propicia a formação de uma real entidade familiar. A decisão resultou em um entendimento não antes mencionado no ordenamento jurídico pátrio, trazendo desta forma, discussões relevantes ao entendimento da possibilidade de se reconhecera legitimidade do padrasto no pedido preparatório de destituição do poder familiar.
A relatora do recurso no STJ Ministra Nancy Andrighi, afirmou que o pedido de adoção de fundamenta da convivência afetiva entre a criança e o padrasto. De acordo com suas palavras no Recurso Especial 1.106.637 (SP);
Desse arranjo familiar, sobressai o cuidado inerente aos cônjuges, em reciprocidade e em relação aos filhos, seja a prole comum, seja ela oriunda de relacionamentos anteriores de cada consorte, considerando a família como espaço para dar e receber cuidados. (Informações da Assessoria de Imprensa do STJ)
Desta forma, entende-se que é possível se caracterizar a legitimidade do padrasto, sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao admitir que seja cabível a proposição de ação referente à perda do poder familiar por qualquer pessoa dotada de legítimo interesse, nada mais esclarece ao falar de legitimidade.
5.1 Condições da Ação:
Segundo HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (2009, p.60): são três as condições da ação: possibilidade jurídica do pedido; interesse de agir e legitimidade de parte.
A possibilidade jurídica do pedido é definida, nos dizeres de ARRUDA ALVIM (2002, p.316):
Pela possibilidade jurídica, indica-se a exigência de que deve existir, abstratamente, dentro do ordenamento jurídico, um tipo de providência como a que se pede através da ação. Esse requisito, de tal sorte, consiste na prévia verificação que incumbe ao juiz fazer sobre a viabilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte em face do direito positivo em vigor.O exame realiza-se, assim abastrata e idealmente, diante do ordenamento jurídico.
Portanto, observa-se que há possibilidade jurídica do pedido do padrasto para destituir o poder familiar do pai biológico, vez que existe viabilidade jurídica do pedido, tendo em vista que é o padrasto quem dá a base moral, social, psicológica e financeira para o menor.
Já o interesse de agir é a possibilidade de intentar a ação para postular o direito material que se diz violado, amparado na intervenção dos órgãos jurisdicionais, ou seja, deve estar presente o binômio necessidade-adequação para se buscar uma sentença de mérito. De acordo com VICENTE GRECO FILHO (1995, p.81):
É inútil a provocação da tutela jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção argüida na inicial. Haverá, pois, falta de interesse processual, se, descrita determinada situação jurídica, a providência pleiteada não for adequada a essa situação.
Dessa forma, vislumbra-se que detém interesse de agir o padrasto, vez que, o artigo 1626 do Código Civil permite ao padrasto invocar legitimo interesse para destituição do poder familiar do pai biológico, em razão da comprovação de convivência familiar, essencialmente ligada a paternidade sócio-afetiva, que por vez é o convívio de afeto e participação na formação da criança independente de vínculo biológico.
Por fim, a terceira condição da ação é a legitimidade, ou seja, a titularidade ativa e passiva da ação. Não basta ter um sujeito no pólo ativo e outro no pólo passivo, se não houver expressa previsão legal ou extensiva da norma de sua legitimidade. Segundo THEODORO JÚNIOR (2009, p.64):
Legitimados ao processo são os sujeitos da lida, isto é, os titulares dos interesses em conflitos. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva ao titular do interesse que se opõe ou reside à pretensão.
E o julgado em análise traz no bojo de sua sustentação o artigo 155 do ECA afirmando ser possível que qualquer pessoa dotada de legitimo interesse pode propor procedimento para perda do poder familiar.
Conclusão
Com advento da Constituição Federal, em 1988, se obteve uma relevante modificação no entendimento acerca da concepção de família. O poder que antes era centralizado na figura do pai, agora passou a ser dividido de forma igualitária entre pai e mãe, propiciando importantes mudanças na organização familiar.
O fundamento básico de formação de um adulto responsável e coerente está no desenvolvimento de uma infância saudável, amparada de bons costumes e ensinamentos que são transmitidos na convivência familiar, entre pai, mãe e irmãos, independente de vínculos de sangue, sendo primordial a relação afetiva desenvolvida entre os membros desta família.
Atualmente, a valorização das relações familiares está centrada principalmente no sentimento entre pais e filhos, demonstrando a vontade que estes têm de conviverem em harmonia, requisito este indispensável para uma criação saudável. Para ocupar o papel de pai, e respectivamente de filho, nada mais é necessário que ambos tenham intenção de se considerarem pai e filho, comportando-se como se verdadeiramente fossem.
Com o avanço das relações familiares, é bastante comum se encontrar famílias constituídas por apenas um dos genitores e seus filhos, o que possibilita que outra pessoa, que não o pai biológico, venha a ocupar o espaço do genitor. Não raro acontece que em face dessa união, surge a paternidade sócio-afetiva, ou seja, quando uma determinada pessoa cria filho de seu companheiro ou companheira, sem que com este tenha ligação de parentesco, vindo a educá-lo e amá-lo como se filho de sangue fosse.
A esta relação afetiva, dá-se o nome de paternidade sócio-afetiva, tornando-se pai e filho aos olhos da lei, após decisão judicial, criando vínculo de filiação, passando a ser reconhecido perante a sociedade, tendo os mesmos direitos e deveres que teria caso o filho fosse biológico. Sendo amparada pela lei esta relação sócio-afetiva, discute-se, agora, a respeito da possibilidade de o pai não biológico, tenha o pleno direito de solicitar a perda do poder familiar deste em detrimento a posterior adoção.
Ao longo deste artigo, se pretendeu demonstrar que paternidade, hoje, não se apresenta com um fundo apenas biológico. Ela é muito mais que apenas um registro de nascimento ou ligação de sangue entre pai e filho. É, na verdade, um exercício diário e constante de afeto, carinho, atenção e condições de uma vida justa e digna de qualquer ser humano.
O ordenamento jurídico, ainda encontra-se distante de solucionar tal carência em razão deste assunto, devendo-se buscar regrar as relações a partir da consideração do melhor para a vida dos interessados, principalmente para os menores de idade, levando sempre em conta o respeito à dignidade da pessoa humana e o interesse dos filhos na instituição das relações familiares que os envolvem.
A decisão judicial promulgada pela Ministra em análise é de grande relevância para modificações jurisprudenciais em função de um assunto tão importante, já que abre novos caminhos e entendimentos a respeito da legitimidade do padrasto em requerer o poder familiar. Nada mais adequado, para concluir este assunto, do que a citação pela Ministra Nancy Andrighi, do que as palavras do teólogo Leonardo Boff, quando afirma que a constituição do ser humano advém da atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro.