Como mencionou Cássio Scapin (o eterno Nino, do Castelo Rá-Tim-Bum), em vídeo publicado na Folha Online1 para explicar às crianças a respeito do coronavírus, o tal “bichinho minúsculo, que veio lá do outro lado do mundo só para complicar a nossa vida” realmente gerou inúmeras alterações na forma de vida que conhecíamos até então.
Em decorrência da adoção da medida de isolamento social gerada por conta do surto do COVID-19 (lei n. 13.979/2020)2, as relações familiares foram as primeiras a sofrer as consequências das mudanças. Como decorrência, rapidamente decisões sobre Direito de Família passaram a ser proferidas pelos tribunais pátrios tratando de soluções jurídicas excepcionais para situações fáticas igualmente incomuns.
Na sequência, serão apresentadas as principais flexibilizações jurisprudenciais em Direito de Família ocorridas por conta da pandemia do coronavírus (COVID-19).
1. Possibilidade de prisão domiciliar para os encarcerados por inadimplemento de obrigação alimentar
A Recomendação n. 62/2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3, em seu artigo 6º, aconselha aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus.
Inclusive, o STJ, em decisões monocráticas4, vem se manifestando no sentido da concessão de prisão domiciliar aos idosos devedores de alimentos como forma de adoção de medidas de contenção do coronavírus. Ademais, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino estendeu os efeitos de decisão liminar concedida a um caso concreto para todo o território nacional, excepcionalmente, mencionando que: “considerando a gravidade da atual situação de pandemia pelo coronavírus - Covid-19 -, a exigir medidas para contenção do contágio e em atenção à Recomendação CNJ nº 62/2020, deve ser assegurados aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar”5.
Mesmo em outros casos, o ministro do STF Gilmar Mendes proferiu decisão6 no sentido de converter prisões preventivas em domiciliares no caso de mães lactantes pelo fato de que “o Estado deve adotar uma postura proativa para reduzir os danos que certamente assolarão diversas vidas”.
2. Possibilidade excepcional de redução no pagamento de alimentos
Diante dos impactos na vida financeira daquele que paga alimentos em decorrência do isolamento social ocorrido no período de quarentena como medida de enfrentamento ao coronavírus, muito se fala na possibilidade de não pagamento de verbas alimentícias nesse momento de quarentena, ou, ao menos, na redução dos valores, por aqueles diretamente afetados em sua renda.
Inicialmente, é importante destacar que, mesmo em tempos de normalidade, o desemprego, por si só, não consiste em motivo bastante para o não pagamento de pensão alimentícia, já que ela possui, justamente, natureza alimentar. Nesse sentido, Silvia Felipe Marzagão (2020) menciona7 que não se se pode admitir que o surto de COVID-19 sirva de pretexto automático para reduções no importe, já que a perda de capacidade financeira não pode ser presumida, razão pela qual deve ser analisado o caso concreto, devendo haver lastro probatório mínimo da impossibilidade momentânea ou, ao menos, da redução das mesmas possibilidades. O principal fundamento para tanto consiste no fato de que, por serem os alimentos fixados com base no binômio necessidade-possibilidade (possibilidade de quem paga e necessidade de quem recebe), as necessidades dos alimentandos continuarão a existir no mesmo patamar anterior. Ademais, há a possibilidade de ter ocorrido a redução de renda também do outro genitor que não é o obrigado à obrigação alimentar, o que comprometeria, ainda mais, o sustento do alimentando. Ainda, destaca-se ter em vista que a obrigação alimentar é de ambos os genitores.
Contudo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pronunciou decisão8 permitindo a alteração do valor do pagamento de alimentos devidos pela mãe à filha, que mora com o pai, em razão da pandemia de COVID-19 durante os meses de março, abril, maio e junho de 2020, em atenção à redução da atividade econômica decorrente do isolamento social. Findo o período, entendeu-se pelo retorno da obrigação alimentar ao seu normal patamar.
Ressalta, portanto, Conrado Paulino da Rosa (2020) que, “sem decisão judicial, não pode o alimentante alterar o valor pago” e, também, que “o pagamento em valor menor do que o fixado pode ser objeto de cobrança, inclusive, sob pena de prisão”9.
3. Suspensão temporária do direito de convivência familiar
A despeito da enorme importância do direito à convivência familiar para o pleno desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, vêm os Tribunais pátrios flexibilizando o direito de convivência familiar em decorrência da pandemia do COVID-19.
Em decisão recente10, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu pela suspensão temporária do direito de convivência familiar entre pai e filho, pelo fato de exercer o pai profissão de alta probabilidade de exposição ao coronavírus, em atenção ao melhor interesse da criança.
Na decisão restou claro que esse seria um caso de excepcionalidade, dadas as restrições de locomoção de pessoas em todos os continentes, em razão da pandemia decorrente da propagação do coronavírus. Todavia, também constou da deliberação que poderia ela perdurar pelo período compatível com as restrições recomendadas pelas autoridades públicas de saúde.
No mesmo sentido, expressou o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná deliberação11 a respeito da suspensão temporária do direito de convivência entre pai e filho sob o fundamento da necessidade da medida pelo fato de residir a criança com pessoa enquadrada em grupo de risco do COVID-19. Ressaltou, todavia, a decisão a importância do vínculo paterno-filial, razão pela qual o contato com o genitor deveria ocorrer, nesse momento, de forma virtual, mediante chamada de vídeo.
Ainda, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também seguiu o mesmo entendimento e manifestou-se12 no sentido de suspender o direito de convivência familiar entre pai e bebê de menos de 1 ano de idade, em atenção à pouca imunidade de criança na primeira infância, inserindo-se ela em grupo de elevado risco. Portanto, alterou-se, temporariamente, a forma de convívio para o meio virtual no período em que durar a pandemia de coronavírus, e enquanto houver a necessidade de isolamento social.
4. Suspensão temporária do direito de visita avoenga
No caso da convivência familiar entre avós e netos, em decisão atual13, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná entendeu que, no caso concreto, deveria ocorrer a suspensão temporária das visitas presenciais enquanto viger a situação de emergência para o combate da pandemia do novo coronavírus, devendo o contato dos avós com os netos ser realizado por meios digitais. O fundamento da deliberação foi, justamente, a preponderância do direito à saúde, a fim de impedir a vivência de situações que possam acarretar a contaminação pelo coronavírus.
5. Concessão de guarda de menor em acolhimento institucional a casal interessado na sua adoção
De forma vanguardista, o ministro do STJ Villas Bôas Cuevas proferiu decisão14 deferindo pedido de liminar para que um bebê de 8 (oito) meses de idade fosse retirado do abrigo em acolhimento institucional e devolvido a um casal que buscava regularizar a sua adoção, em razão dos perigos decorrentes da epidemia do novo coronavírus e como forma de proteger o melhor interesse da criança, já que possuia ele problemas respiratórios.
A deliberação levou em conta que “o acolhimento institucional não poderia se sobrepor à manutenção da criança no núcleo familiar que a recebeu desde o seu nascimento, especialmente por inexistir evidência de conduta prejudicial por parte do casal”, bem como que ainda assim havia a possibilidade de se investigar, em paralelo, eventual interesse de família natural extensa em acolher o menor ou até mesmo colocá-lo em outra família adotiva, ao menos até o trânsito final dos processos de guarda e acolhimento". Entendeu-se, então, que não havia, portanto, que se falar em burla ao procedimento de adoção previsto na legislação brasileira.
Também o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do STJ, manifestou-se15 no sentido de conceder guarda provisória, durante o período de pandemia do coronavírus, de bebê de pouco mais de 2 (dois) meses de idade, em processo de adoção, para casal guardião que já estava na posse de fato do menor. O fundamento principal da decisão consiste nas circunstâncias manifestamente excepcionais enfrentadas pelo País em decorrência do crescimento exponencial da pandemia de COVID-19, produzida pelo vírus SARS-Cov2, visando unicamente preservar o melhor interesse do menor.
Em caso similar, o Tribunal de Justiça do Paraná proferiu decisão16 no sentido de deferir a guarda provisória de bebê a casal que com ele conviveu por 8 (oito) meses, e que, após, foi incluído em programa de acolhimento institucional, ao menos até o julgamento final do recurso de apelação, sob o argumento de que as medidas de enfrentamento ao coronavírus poderiam prejudicar o convívio do casal com o menor acolhido em instituição, o que poderia obstar o estreitamento do vínculo afetivo até então mantido.
Ainda, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também decidiu17 que deveria conceder a guarda de menor a casal ainda não habilitado no cadastro de adoção, diante as peculiaridades do caso concreto, em atenção à primazia dos princípios do melhor interesse e da proteção integral da criança.
6. Possibilidade de realização de casamento de forma virtual
O meio virtual também foi a solução encontrada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco para a realização de um casamento, de forma que uma chamada de vídeo permitiu o contato entre o juiz, no fórum, e o casal, no cartório junto a um oficial de registro civil, tendo a medida impedido aglomeração de convidados.
Por fim, assim como tudo em direito, não há, nesse caso, regra pronta. Em atenção à situação absolutamente excepcional vivenciada em decorrência do surto mundial de COVID-19, devem ser as decisões tomadas com cautela, regidas pelo bom senso, pela boa-fé e pelo diálogo. Devem, portanto serem as situações analisadas caso a caso, considerando o panorama atual e os riscos dele advindos para todos os envolvidos.