A pandemia do coronavírus(COVID-19) e o boleto da mensalidade escolar


18/06/2020 às 19h04
Por Camila Guerra

A pandemia do coronavírus (COVID-19) afetou o mundo, causando profundas transformações em todas as áreas. No direito brasileiro, foram realizadas alterações trabalhistas, tributárias, comerciais, penais, processuais, bem como modificações nas relações cíveis, dentre elas as familiares, as contratuais e as relações de consumo.

 

 Em decorrência da medida de isolamento social decretada como política de enfrentamento do surto de coronavírus (prevista no artigo 3º, I, da lei n. 13.979/20201), as relações profissionais foram afetadas, tendo ocorrido sensível redução de renda para inúmeros trabalhadores cuja remuneração não é fixa. Além disso, em outros casos, ainda, foram realizadas demissões de inúmeros profissionais, ocasião em que ocorreu a efetiva perda da fonte de renda. Concomitantemente à essa situação, foram as aulas em instituições de ensino suspensas, com o objetivo de desacelerar a propagação da enfermidade. Então, a situação consequente disso tudo foi: pais trabalhadores com renda variável (ou sem renda) em casa, juntamente com os filhos impedidos de frequentar a escola. Todavia, apesar de estarem as famílias isoladas, não estão elas verdadeiramente sozinhas, porque, entre elas, há uma entidade sempre presente, entidade essa que não respeita qualquer determinação de isolamento social. Essa entidade se chama boleto.

 

 A suspensão dos serviços educacionais, nesse contexto, gerou inúmeros questionamentos a respeito da contraprestação do serviço, que consiste, justamente, no pagamento do referido boleto. Após 1 (um) mês de quarentena e mesmo período de crianças sem aulas, restou uma relação polarizada: de um lado, estavam os pais, com diminuição de suas fontes de renda, juntamente com os filhos, sem poder frequentar a escola; de outro, estava o boleto da mensalidade escolar, que permanecia ali, íntegro, inteiro, impassível a essa nova situação global, sem qualquer redução, mas supostamente sem se vincular a qualquer serviço.

 

 Sobre esse tema, é importante ressaltar, inicialmente, a natureza jurídica do tal boleto. O boleto consubstancia a prestação do serviço escolar. Tal como ocorre em qualquer relação consumerista, para cada prestação corresponde uma contraprestação. Na relação de prestação de serviços educacionais, essa contrapartida consiste, justamente, no pagamento da contribuição mensal. Todavia, no caso de suspensão da prestação do serviço, como fica a situação da contraprestação? Deve haver o pagamento do tal boleto escolar se nesse mesmo período de 1 (um) mês não houve prestação de serviço educacional?

 

 Na sequência serão apresentados pontos que devem ser considerados para responder aos questionamentos, bem como possíveis alternativas a serem trabalhadas pelas partes a fim de buscar um equilíbrio entre a manutenção do serviço educacional e a possibilidade de pagamento à escola.

 

1. Fornecimento de aulas por meios digitais

 Preliminarmente à análise da situação atual, é necessário estabelecer alguns parâmetros, os quais passam a ser aduzidos.

 

 O artigo 24, I, da lei n. 9.394/19962 (que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional), dispõe que a educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de modo que a carga horária mínima anual será de 800 (oitocentas) horas para o ensino fundamental e para o ensino médio, distribuídas por um mínimo de 200 (duzentos) dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver.

 

 Contudo, a medida provisória n. 934/20203, estabeleceu normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública já mencionada. No artigo 1º do mencionado instrumento normativo, em caráter excepcional, restou formalizada a dispensa, no estabelecimento de ensino de educação básica, da obrigatoriedade de observância ao mencionado mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual estabelecida.

 

 Ou seja, no ano corrente de 2020, devem ser respeitadas as 800 horas-aula para o ensino fundamental e para o ensino médio, não havendo necessidade de obedecer à regra do número mínimo de dias letivos, de efetivo trabalho escolar.

 

 Ademais, a Portaria n. 343/2020, do MEC4, autorizou, em caráter excepcional, enquanto durar a pandemia do coronavírus, a substituição das disciplinas presenciais por aulas em meios digitais, nas instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino. No caso específico do Estado de Santa Catarina, foi publicada pelo Conselho Estadual de Educação (CEE/SC) a Resolução n. 09/20205 a qual estabeleceu o regime especial de atividades escolares não presenciais no Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina, para fins de cumprimento do calendário letivo do ano de 2020, como medida de prevenção e combate ao contágio do coronavírus (COVID-19).

 

 Então, a escola poderá computar como horas de efetivo trabalho escolar todas as atividades educacionais que desenvolver com os alunos, inclusive as atividades a distância realizadas por meio de ferramentas digitais. Dessa forma, ao criar a possibilidade do ensino a distância na grade presencial, o objetivo da medida é manter a rotina de estudos dos alunos durante o período de quarentena, cumprindo-se, com qualidade, os planos pedagógicos previstos para o ano letivo.

 

 Já no caso das escolas que não utilizarem o ensino a distância durante esse período, terminado o período de recesso escolar forçado, deverão elas reorganizar seu calendário escolar, estabelecendo atividades escolares presenciais, com possibilidade de atividades no turno e contraturno, realização de aulas aos sábados, em feriados não religiosos e/ou, até mesmo, caso necessário, o prolongamento do término do ano letivo.

 

 Ademais, é de se esclarecer que o artigo 1º, da lei n. 9.870/19996, menciona que o contrato entre o estabelecimento de ensino e o aluno de ensino pré-escolar, fundamental, médio e superior, é realizado com a contrapartida de anuidades escolares. Já o § 5º, do referido artigo, dispõe que o valor anual será dividido em 12 (doze) parcelas mensais iguais. Dessa forma, não há mensalidade, mas anuidade, a qual pode ser paga em parcelas mensais. É interessante, portanto, destacar a diferença entre a contratação de um serviço com pagamento de anuidade em parcelas e a contratação de serviço com prestação e periodicidade mensal.

 

 Nesse sentido, não podendo ocorrer a prestação do serviço contratado durante o período de 1 mês, isso não gera, automaticamente, a desnecessidade de pagamento. Isso se justifica pelo fato de que os contratantes (pais ou alunos) se comprometeram, por meio de contrato, a arcar com quantidade pré-determinada de parcelas da anuidade em troca dos conteúdos previstos nos planos pedagógicos, os quais devem ser ministrados durante o ano letivo.

 

2. Redução proporcional à diminuição dos custos variáveis

 Nos Poderes Legislativos de diversos Estados Federativos, bem como no Congresso Nacional, foram apresentados projetos de lei que determinam a redução das mensalidades, em proporções que variam de 10% a 50%, durante o período de quarentena do coronavírus. Não há, contudo, nenhuma lei efetivamente normatizando sobre o tema.

 

 Inclusive, o Procon do Estado de Minas Gerais publicou Nota Técnica n. 01/20207, a qual estipulou que as instituições privadas de educação básica devem “conceder, aos seus consumidores, um desconto mínimo de 29,03% no valor da mensalidade de março, relativo aos dias em que não houve a prestação dos serviços, na forma contratada, salvo se no período houve férias antecipadas”. Estabeleceu-se, também, que, caso a mensalidade de março já tenha sido quitada “no valor integral originariamente previsto”, esse desconto deveria ser concedido na mensalidade de abril.

 

 Contudo, cabe considerar que a rede particular de ensino constitui universo bastante variado. Enquanto algumas escolas estão ligadas a grandes conglomerados educacionais, que lhes dão maior margem de manobra no atual momento, muitas delas são pequenas e locais, e, portanto, mais sensíveis a quedas bruscas de receita. Soma-se a isso o fato de que, embora algumas instituições possam ter tido suas despesas reduzidas, a maior parte dos gastos (75%, em média8) é fixa e se dá com o pagamento a professores e funcionários.

 

 Todavia, passado 1 (um) mês de período de isolamento social e de ausência dos alunos nas escolas, foi possível, para as instituições de ensino, observar a redução de seus gastos variáveis com custeio, como prevê o artigo 1º, § 3º, da lei n. 9.870/1999, tais como luz, água, gás, alimentação, manutenção, gastos com limpeza, entre outros. Tendo havido essa diminuição, deve ser ela transparentemente informada aos consumidores do serviço escolar, por meio da apresentação de planilha de custos, e a eles repassada por meio do abatimento proporcional no valor da parcela mensal. No caso de terem ocorrido os pagamentos integrais, devem ser os descontos realizados nos meses subsequentes.

 

 Ademais, pode haver, por parte das instituições de ensino, flexibilização no pagamento das parcelas mensais, com negociação de eventuais reparcelamentos, bem como isenção dos consumidores de potenciais multas e taxas de juros por atrasos nos adimplementos.

 

3. Retirada dos custos com atividades extracurriculares

 No caso de atividades extracurriculares oferecidas pela instituição de ensino, as quais não puderam ser cursadas pelos alunos, devem ser as cobranças a elas relativas retiradas do boleto mensal. A despeito de os custos com o pagamento de salário dos professores dessas atividades extras continuarem a ser suportadas financeiramente pela escola, como forma de repartir os ônus entre as partes e manter o equilíbrio contratual, o pagamento respectivo deve ser suspenso enquanto for mantido o impedimento de frequência presencial às aulas.

 

4. Adiantamento de férias e oferecimento de “colônia de férias” ou de contraturno

 Outra opção a ser oferecida pelas escolas, como forma de equilibrar a relação contratual com os alunos, consiste na antecipação do período de férias, de modo que, com o retorno dos pais à ativa, não ocorram mais interrupções no ano letivo.

 

 Outrossim, como forma de redistribuir o ônus das relações consumeristas, podem as instituições de ensino oferecem aos pais “colônia de férias” para compensar o período em que ficou sem prestar as atividades presenciais aos alunos, bem como ofertar ações no contraturno escolar, de forma a viabilizar as atividades laborais dos responsáveis pelo pagamento do temido boleto educacional.

 

 Nesse sentido, o que resta claro é que não há como se impor uma regra pronta a ser rigidamente seguida pelas instituições de ensino em um período que retrata, justamente, uma situação absolutamente exepcional e incomum. Deve haver o entendimento de que a exigência de oferecimento de percentuais fixos de descontos aos consumidores pode, até mesmo, colocar em risco a própria manutenção da instituição educacional.

 

 Por outro lado, deve haver transparência por parte das escolas em informar a redução dos seus custos variáveis mensais, tomando por base esse primeiro 1 (um) mês de suspensão de aulas, bem como bom senso no repasse dessa diminuição aos seus consumidores. Ademais, caso necessário, é importante que haja flexibilização no pagamento das parcelas mensais, bem como isenção de potenciais multas e taxas de juros por atrasos nos adimplementos. Ainda, para que possa a escola computar como horas de efetivo trabalho escolar as atividades educacionais que desenvolver com os alunos, inclusive as atividades a distância realizadas por meio de ferramentas digitais, durante o período de quarentena, deve a instituição de ensino cumprir, com qualidade, os planos pedagógicos previstos para o ano letivo. Se não for esse o caso, terminado o período de recesso escolar forçado, deve ser o calendário escolar reorganizado de forma a prestar atividades educacionais presenciais para repor o planejamento didático-pedagógico previsto para o ano.

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Referências

1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv934.htm

4 http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portarian343-de-17-de-marco-de-2020-248564376

5 http://www.cee.sc.gov.br/index.php/legislacao-downloads/educacao-basica/outras-modalidades-de-ensino...

6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9870.htm

7 https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/procon-mg-orienta-como-ficam-os-contratos-escolares-dura...

8 https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/o-boleto-da-escola.shtml?origin=folha


Camila Guerra

Advogado - Florianópolis, SC


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