1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da Uberização, decorrente de Empresas de Economia Compartilhada, é a prestação serviços de entrega e transporte por intermédio de comunicação de softwares e algoritmos que realizam a intermediação entre prestadores de serviços e consumidores finais, sem, no entendo, estes trabalhadores gozar de vínculo empregatício reconhecido pelo ordenamento jurídico e/ou leis esparsas. Fenômeno este encampado em aplicativos de entrega, como Ifood.
O objetivo deste artigo é responder quais são as mudanças decorrentes destas novas relações empregatícias que são atraídas para o meio digital e se há inseguranças para os empregados advindas da Uberização.
Pois bem. Em meados de 2020, com a consequência da pandemia e da instabilidade no mercado de trabalho, conjuntamente relacionada com o número emergente de desemprego, o trabalho informal teve um crescimento acentuado.
Isso porque, com esse cenário pandêmico que assola o mundo, muitas empresas de grande e pequeno porte tiveram altas reduções em seu balanço econômico e outras, foram levadas à falecia. A estes acontecimentos, muitos empregados foram demitidos e outros, tiveram seus contratos de trabalho suspensos, devido a Medida Provisória número 936/2020.
Neste quadro, com a alta taxa de desemprego e contratos de trabalho instáveis, estes trabalhadores não tiveram outra saída, a não ser migrar para estes trabalhos mantidos por plataformas digitais, como os aplicativos de entrega de comida, os quais tiveram certa importância no início da pandemia devida o isolamento social que impossibilitava outros de irem em restaurantes.
Nesta nova organização de trabalho, estabelece-se uma relação triangular, na qual estão presentes o entregador, consumidor final e a plataforma, que é um intermediador entre aqueles, como dispõe Ricardo Antunes.
Com essa relação, surge o processo da Uberização, no qual as relações de trabalho são atravancadas pela individualização, coadunando para si a aparência de “prestação de serviço”, fossilizando as relações de assalariamento e de exploração de trabalho.
Cumpre assinalar que a partir do desenvolvimento das empresas liofilizadas e flexíveis, surge neste cenário a tríade conhecida como terceirização, informalidade e flexibilidade, a qual vem se tornando uma base principiológica para as empresas de economia compartilhada. Com isso, observa-se uma exponencial corrosão das proteções trabalhistas, as quais foram advindas das lutas de classes.
Neste novo cenário de organização do trabalho, associado ao uso de plataformas digitais a fim de gerir e controlar os trabalhadores, cria-se uma estratégia para mascarar o assalariamento e as condições que criam o vínculo empregatício.
Isso porque, como se verá em tópicos seguintes, a relação de trabalho é banhada por cinco requisitos imprescindíveis e, na falta de um não há óbice para reconhecer a inexistência de vínculo de emprego. Outrossim, com a inexistência de relação trabalhista nos contratos firmados com as plataformas digitais, estas não dispensadas de arcar com as custas trabalhistas, previdenciárias e tributárias. Ou seja, para muitos doutrinadores, este fenômeno torna-se um litígio de três ângulos diferentes.
Portanto, o presente artigo tem a finalidade de apresentar repercussões sociais que já são observadas a partir da introdução e desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), como os aplicativos que mascaram a relação labora.
Outrossim, este artigo possui como metodologia a pesquisa exploratória a partir do estudo crítico de bibliografias e jurisprudências pátrias e internacionais, a fim de analisar decisões favoráveis ao reconhecimento de vínculo empregatício em favor dos entregadores de comida por aplicativos.
O artigo traz discussões do caráter organizacional dos entregadores a partir da ótica crítica e da teoria de Karl Marx, a fim de apontar os impactos sociais e os desafios dos trabalhadores uberizados, isso porque esta teoria está conceituada na ideia de venda da força do trabalhador, os quais recebem um valor inferior que não condiz com o trabalho realizado.
Já em consonância com o fenômeno da uberização, os trabalhadores realizam a auto exploração de seu próprio trabalho, mascarados sobre o prisma de que são prestadores de serviço, os quais são subordinados, tampouco correm os riscos da dispensa. Todavia, isso não condiz com a realidade.
Neste ângulo, pretende-se comprovar por meio das teorias, pesquisas e doutrinas a configuração da relação empregatícia entre os entregadores e as empresas de comida por aplicativo, mais precisamente, Ifood. E mais, tem o condão de delinear nessa busca todos os requisitos exigidos para coadunar relação de emprego, os quais sejam subordinação, pessoalidade, não eventualidade, pessoa física e onerosidade.
2. SURGIMENTO DA UBERIZAÇÃO
A uberização é um processo crescente em que as relações de trabalho se transformam em individualizadas, as quais assumem uma aparência de “prestação de serviço”, uma vez que o vínculo empregatício passa a ficar nebuloso sobre o prisma da falta de subordinação, principalmente.
Ademais, com essa nova organização de trabalho, o assalariamento e as proteções empregatícias são obliterados pela máscara da autonomia, vez que os empregados ficam à disposição de uma plataforma digital.
Neste quadro, veja que esses trabalhadores têm a ilusão de que seriam empreendedores de si mesmos. Mas na realidade não é o acontece, isso porque, como já dito anteriormente, estes vendem a sua força de trabalho para os detentores do capital. Ou seja, segundo a visão de Marx sobre o fenômeno da Uberização, esta relação é claramente um exemplo vívido e lúcido de Mais-Valia. (Marx, 1957)
Esse fenômeno foi advindo da Industria 4.0, com surgimento na Alemanha em 2011, com o objetivo de elevar a tecnologia, a qual estaria estruturada nas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Todavia, com essa nova onda tecnológica há uma visível redução do trabalho vivo, o qual está sendo substituído por plataformas digitais e ferramentas robotizadas.
Outrossim, cumpre salientar que a uberização não está calçada nas empresas tradicionais, as quais perfaz com as normas e legislações vigentes na esfera trabalhistas. Na realidade, esse processo está intrinsicamente relacionado com as empresas de economia compartilhada, chamadas também de Sharing Economy, que por sua vez é a prática de dividir o uso ou a compra de serviços facilitada, principalmente, por aplicativos que possibilitam uma maior interação entre as pessoas. (ANTUNES, 2020. Pág. 61).
Esta economia compartilhada surgiu nos Estados Unidos, em meados de 1990, a qual foi impulsionada pelos avanços tecnológicos que propiciaram a redução dos custos de transações on-line peer-to-peer, que por sua vez é um projeto arquitetônico de redes em que cada par coopera entre si, com a finalidade de prover serviços um a outro, sem que haja a necessidade de existir um serviço central (ANTUNES, 2020. Pág. 61).
Ainda, cumpre dizer que estas empresas viabilizaram a criação de novos modelos de negócios os quais são calcados em trocas e compartilhamento de bens e serviços que ocorrem entre pessoas, as quais podem ser chamadas de consumidoras finais.
No mesmo sentido, nota-se que a uberização foi possível a partir dessas empresas de economia compartilhadas, como Uber, Ifood, Rap10 e 99car as quais gerenciam, controlam e produz seus serviços com auxílio de redes de algoritmos presentes nas plataformas digitais, as quais realizam a conexão entre o entregador do aplicativo de comida e o consumidor final.
Com isso, pode concluir que, por intermédio da interligação entre empresas de economia compartilhadas e os proletariados que vendem suas forças de trabalho mediante de plataformas digitais, relação esta banhada pelos conceitos uberizados, coaduna uma precarização do trabalho informal, a qual deve ser dirimida por aqueles que gozam de competência para tantum.
3. ELEMENTOS DE VÍNCULO DE EMPREGO
Inicialmente cumpre dizer que para que haja uma relação de emprego, é precioso haver a incidência de cinco requisitos, os quais estão acimentados no artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, quais sejam a pessoalidade, pessoa física, onerosidade, não eventualidade e subordinação.
Salienta-se que na falta de um deles, a relação não será mais reconhecida como trabalhista. Neste sentido, será ela tratada como um contrato civil de prestação de serviço e, por consequência, em observância ao artigo 114 da CLT, não será da competência da Justiça do Trabalho dirimir este litígio e sim da Justiça Comum. (LEITE, 2021. Pág. 199)
Com essas breves pinceladas, cumpre explicar individualmente as particularidades de cada um dos requisitos.
3.1. PESSOALIDADE
A pessoalidade determina em linhas gerais que aquele contrato que será firmado é personalíssimo, possuindo o título de “intuito personae”, o qual não admite que aquela função delineada no contrato de trabalho seja realizada por outrem senão o empregado contraente.
Por outro olhar, deve-se enfatizar que este requisito incide apenas sobre o empregado, já que a figura do empregador pode ser substituída por outra pessoa. Ou seja, não importa para o contrato laboral quem está no polo passivo, o qual configura a pessoa que detém o capital. (LEITE, 2021. Pag. 201)
Todavia, não se pode olvidar que a substituição eventual de funcionários de trabalho não impede a caracterização do vínculo empregatício, além de que o caráter personalíssimo não pode ser explicado como a infungibilidade da prestação de serviços. Há de se apontar que as atividades que foram transferidas para o outro funcionário são idênticas para todos, não havendo diferenciação de labor.
Veja que o caráter personalíssimo da relação de emprego resulta do fato de o emprego se colocar à disposição empregador, não devendo ser entendido como infungibilidade, digo novamente.
No sentido das relações advindas das plataformas digitais é muito comum haver a substituição de empregado para realizar entrega específica. Porém, não se pode olvidar que dentro da organização empresarial há funções cujo exercício pressupõe qualificações relativamente homogenias, de modo que a mera substituição eventual de um trabalhador para outro não desvirtualiza a o caráter intuito personae, como assegura a Desembargadora Cristiana Maria Valadares Fenelon, relatora do processo de número 01908-2011-030-03-00-7 (AIRR). (Substituição eventual de trabalhador por colega não impede caracterização de vínculo empregatício, 2012)
E mais, neste mesmo quadro, relembre-se o artigo 450 da CLT que determina que aquele que substituiu outrem, lhe serão garantidos os direitos e contagem de tempo para aquele lapso temporal que realizou a ocupação substituta.
Art. 450 - Ao empregado chamado a ocupar, em comissão, interinamente, ou em substituição eventual ou temporária, cargo diverso do que exercer na empresa serão garantidas a contagem do tempo naquele serviço, bem como volta ao cargo anterior
Desta forma, este requisito deve ser visualizado na relação empregatícia para haver o reconhecimento do vínculo, sem o qual, não se pode reconhecer como tal.
3.2. PESSOA FÍSICA
Em uma visão ampla, devemos ter em mente que o contrato de trabalho é firmado entre uma pessoa física, qual seja aquela mais fraca da relação, e uma pessoa jurídica, esta que detém os meios de produção e capital.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, não é possível a contratação de pessoa jurídica por pessoa jurídica, quando se trata de relação de emprego. Todavia, é comum se deparar com a contratação irregular, em que o empregado é obrigado a abrir pessoa MEI (Microempresa Individual), como pressuposto para celebrar contrato com aquela determinada empresa.
Esse fenômeno é conhecido como “Pejotização”. Essa relação representa um ilícito sob a vertente de 3 (três) pontos: trabalhista, previdenciário e tributário. Isso porque, no primeiro caso, o artigo 9º da CLT determina em linhas gerais que será reconhecida a nulidade do contrato de trabalho que possuem o intuito de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na CLT.
Ainda nesta semântica, ao realizar o contrato com pessoa jurídica é dispensado o empregador de arcar com as custas trabalhistas, reduzindo os gastos empresariais.
Já em relação ao prisma do Direito Previdenciário, este representa uma redução abrupta dos rendimentos da Seguridade Social, uma vez que é obrigação do empregador o repasse para o INSS referente ao valor da Previdência Social do empregado.
E, por fim, há o ilícito tributário, ante que o empregado não mais tem a obrigação de quitar os tributos advindos da relação empresarial, pelo fato de que pessoa jurídicas, no polo ativo do contrato, não gera fato gerador para estes tributos.
Por esta forma, caso ambas as partes forem pessoa jurídica, a contratação é tida como irregular e, por consequência, faz jus a parte hipossuficiente requerer a nulidade do pacto laboral, sob o prisma do artigo 9º da CLT.
3.3. ONEROSIDADE
Na sequência, outro elemento indispensável é a Não Gratuidade, ou Onerosidade que, como o nome já diz, deve haver contraprestação paga pelo empregador para o empregado, em função as atividades laborais realizadas por este. Ou seja, este elemento envolve em si ônus daquele que detêm o capital de pagar a força de trabalho dispendida pelo proletariado (empregado).
Em outras palavras, a onerosidade possui relação com uma contraprestação de fundo econômico, cuja retribuição é partir de importes salariais ou misto, como é o caso de auxílios de alimentação, moradia, alimento e demais conteúdos econômicos. (LEITE, 2021. Pág. 203)
Neste diapasão, aquele prestador de serviço que nada recebe pelas atividades laborais, ele será um mero voluntariado e não um empregado.
3.4. NÃO EVENTUALIDADE
Vislumbra-se ainda o caráter não eventual da relação de emprego, de forma que a prestação de serviço deverá ocorrer de forma continuada e não esporádica. Neste sentido faz-se mister analisar entendimentos jurisprudenciais os quais acertam que para um pacto laboral ser considerado habitual, deve ter, no mínimo, a prestação de serviço em 3 (três) ou mais dias da semana. (Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região TRT-1 - RECURSO ORDINÁRIO: RO 0010048-98.2013.5.01.0037 RJ, 2015)
VÍNCULO DE EMPREGO DOMÉSTICO – CARACTERIZAÇÃO I – É fato que a continuidade, nos moldes da Lei nº 5.859/72, não pode ser confundida com a não-eventualidade exigida pelo artigo 3 o da Consolidação das Leis do Trabalho para a configuração do vínculo empregatício. Eventual é todo acontecimento incerto, casual, acidental. Deve-se analisar a continuidade do trabalho como permanência, mesmo que em dias alternados, porém certos, de acordo com o pactuado entre as partes. Daí deflui que a permanência e a regularidade da prestação de serviços, mesmo que em alguns dias da semana, afina-se como critério que melhor se coaduna com a intenção do legislador para se inferir a continuidade do labor doméstico. II – Entendo que, na hipótese vertente, ante a prestação de serviços em três dias na semana (sempre nos mesmos dias, durante seis anos e mediante pagamento mensal), restou provado o vínculo de emprego doméstico. III – Recurso conhecido e parcialmente provido.
(TRT1-RO- 0000078-55.2011.5.01.0551, Ac. 7.ª Turma, Relator: Evandro Pereira Valadao Lopes, DOERJ 03-09-2013.)
Há de reconhecer que, mesmo sendo exercido 3 (três) vezes por semana, porém em dias não sequenciais, não há óbice para que haja na relação o requisito de habitualidade.
3.5. SUBORDINAÇÃO
Neste passo, para que seja caracterizada com todos os requisitos elencados no artigo 3º da CLT é necessária a figura da subordinação, a qual mediante dela em que o empregado recebe ordens e determinações daquele que detêm os meios de produção.
Neste prisma, deve-se afirmar que a subordinação é observada também por auxílio de instrumentos de controle, como aplicativos para determinar os horários de trabalho, como é o que acontece com os trabalhadores uberizados. Em análise, estes instrumentos podem ser observados por intermédio de uma lente que o conceitua como controle da força de trabalho. (ANTUNES, 2020).
Em epitome, cumpre analisar o voto da desembargadora em votação colegiada da 7ª Turma do TRT da 1ª Região, a qual deu provimento ao recurso ordinário interposto por motorista que pleiteou o reconhecimento do vínculo empregatício entre o obreiro e a empresa Uber. Cumpre ainda salientar que o colegiado acompanhou a decisão da Relatora Desembargadora Carina Rodrigues Bicalho. (Migalhas, 2021) Senão vejamos:
"Em resumo, o que Uber faz é codificar o comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, onde insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte, sendo alimentada pelo enorme volume de dados tratados, captados a cada instante da prestação de serviços. Realiza, pois, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista. O conceito de subordinação, assim, torna-se mais sofisticado, mas não deixa de ser a forma pela qual se dá a organização do processo produtivo." (BICALHO, Carina Rodrigues. 2021)
Nesta postura, cumpre assinar que a subordinação, abarcada por intermédio de algoritmos, é também observada por meio do artigo 6º da CLT. Isso por que, para Delgado (2017), esse fenômeno é aplicado nas relações laborais por intermédio do artigo supracitado, o qual traz em seu berço o avanço tecnológico tutela o trabalho realizado fora das dependências do empregador. Ou seja, a Consolidação das Leis Trabalhistas abarca agora a possibilidade dos trabalhos prestados de forma remota, de modo que a subordinação não se confunde mais com o controle de jornada. Senão vejamos.
Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio
Veja que aquele que presta serviços fora das dependências empresariais é tratado também como empregado celetista (regido pela CLT). E mais, o artigo em destaque completa o entendimento dos artigos 2º e 3º, de modo que esclarece que, para fins de relação empregatícia, pode o empregado ser controlado e supervisionado por meio telemáticos, como os algoritmos
Nesta postura, cumpre vislumbrar o entendimento jurisprudencial e da CLT que estipula que o ônus probatório recai ao empregador para provar inexistência de vínculo empregatício em face da prestação de serviço. Isso porque, segundo o artigo 818, I e II da CLT, incumbe a quem alegar fato impeditivo, modificativo e extintivo de direito.
Desta forma, deve este impugnar e trazer provas cabíveis de evidenciar a falta de subordinação e provar a mera prestação de serviço. Todavia, nessa nova organização de trabalho por intermédio de tecnologias, as provas documentais que de se extrai são é contrato de prestação de serviço, o qual tem o intuito de mascarar a relação empregatícia, bem como as rotas e viagens realizadas pelo empregado.
Neste interim, diante dessa novidade temática e controvérsias sobre o tema, deve o magistrado apreciar aquele caso sob a ótica do Princípio da Realidade a fim de se reconhecer o vínculo empregatício. Senão vejamos os ensinamentos do ilustre jurista Américo Plá Rodrigues:
“O princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge dos documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos.” ("Princípios do Direito do Trabalho", LTr, 4ª tiragem, SP, 1996, p. 217).
Ademais, o sistema jurisprudencial pátrio ainda é muito dispare no assunto temático, haja vista a discordância de entendimento, vez que muitos magistrados não reconhecem, ainda, a relação de emprego. Senão vejamos seguinte jurisprudência proferida pelo TST em voto do Relator Alexandre Luiz Ramos: (Tribunal Superior do Trabalho TST - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA: AIRR 10575-88.2019.5.03.0003, 2020)
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA RECLAMANTE. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DAS LEIS Nºs 13.015/2014 E 13.467/2017. PROCEDIMENTO SUMARÍSSIMO. RELAÇÃO DE EMPREGO. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO. TRABALHADOR AUTÔNOMO. MOTORISTA. APLICATIVO. UBER. IMPOSSIBILIDADE. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA. NÃO PROVIMENTO. I. Discute-se a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista profissional que desenvolve suas atividades com utilização do aplicativo de tecnologia “Uber” e a sua criadora, Uber do Brasil Tecnologia Ltda. II. Pelo prisma da transcendência, trata-se de questão jurídica nova, uma vez que se refere à interpretação da legislação trabalhista (arts. 2º, 3º, e 6º, da CLT), sob enfoque em relação ao qual ainda não há jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho ou em decisão de efeito vinculante no Supremo Tribunal Federal. Logo, reconhece-se a transcendência jurídica da causa (art. 896-A, § 1º, IV, da CLT). III. Na hipótese, o Tribunal Regional manteve, pelos próprios fundamentos, a sentença em que se reconheceu a condição de trabalhador autônomo do Reclamante . No particular, houve reconhecimento na instância ordinária de que o Reclamante ostentava ampla autonomia na prestação de serviços, sendo dele o ônus da atividade econômica. Registrou-se, ainda, a ausência de subordinação do trabalhador para com a Reclamada, visto que “o autor não estava sujeito ao poder diretivo, fiscalizador e punitivo da ré”. Tais premissas são insusceptíveis de revisão ou alteração nessa instância extraordinária, conforme entendimento consagrado na Súmula nº 126 do TST. IV. A relação de emprego definida pela CLT (1943) tem como padrão a relação clássica de trabalho industrial, comercial e de serviços. As novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego. O contrato regido pela CLT exige a convergência de quatro elementos configuradores: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica. Esta decorre do poder hierárquico da empresa e se desdobra nos poderes diretivo, fiscalizador, regulamentar e disciplinar (punitivo) . O enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a respectiva plataforma deve se dar com aquela prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade, como é o caso da definida pela Lei nº 11.442/2007, do transportador autônomo, assim configurado aquele que é proprietário do veículo e tem relação de natureza comercial. O STF já declarou constitucional tal enquadramento jurídico de trabalho autônomo (ADC 48, Rel. Min. Roberto Barroso, DJE nº 123, de 18/05/2020), a evidenciar a possibilidade de que nem todo o trabalho pessoal e oneroso deve ser regido pela CLT. V. O trabalho pela plataforma tecnológica – e não para ela -, não atende aos critérios definidos nos artigos 2º e 3º da CLT, pois o usuário-motorista pode dispor livremente quando e se disponibilizará seu serviço de transporte para os usuários-clientes, sem qualquer exigência de trabalho mínimo, de número mínimo de viagens por período, de faturamento mínimo , sem qualquer fiscalização ou punição por esta decisão do motorista, como constou das premissas fáticas incorporadas pelo acórdão Regional, ao manter a sentença de primeiro grau por seus próprios fundamentos, em procedimento sumaríssimo. VI. Sob esse enfoque, fixa-se o seguinte entendimento: o trabalho prestado com a utilização de plataforma tecnológica de gestão de oferta de motoristas-usuários e demanda de clientes-usuários, não se dá para a plataforma e não atende aos elementos configuradores da relação de emprego previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, inexistindo, por isso, relação de emprego entre o motorista profissional e a desenvolvedora do aplicativo, o que não acarreta violação do disposto no art. 1º, III e IV, da Constituição Federal . VII . Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento. (TST – AIRR: 105758820195030003, Relator: Alexandre Luiz Ramos, Data de Julgamento: 09/09/2020, 4ª Turma, Data de Publicação: 11/09/2020).
Veja que o entendimento do Relator foi baseado no fato de que o trabalhador que presta serviços por intermédio de plataformas digitais não goza dos elementos dos artigos 2º e 3º da CLT, que, por consequência, desconstitui o vínculo empregatício.
Neste ínterim, há de reconhecer que na quarta revolução industrial que nutri as relações empregatícias há novos conceitos e outros métodos de controle de jornada, os quais são aduzidos por intermédio de algoritmos, os quais serão definidos a seguir.
4. ALGORITMOS E DECISÕES
Em breves pinceladas, os algoritmos, termo este que tem origem matemática, é caracterizado por conjunto de etapas das quais um software precisa para chegar a um resultado. Este conceito matemático tem o condão de manter e alterar estratégias e soluções.
Com esse breve conhecimento, necessário é realizar uma ponte lógica entre esses algoritmos e a subordinação nas relações empregatícias. Veja que atualmente, há uma obediência dos empregados por meio de tecnologia, uma vez que estes não são mais subordinados de superiores hierárquicos, mas sim de regras de computadores. Neste ínterim, os entregadores de comida não gozam mais de liberdade, mas experimentam reações controladas por algoritmos.
Isso porque, nesta governança cibernética, há uma relação triangular entre o consumidor final, entregador e a plataforma digital, sendo que esta última é um intermediário na relação do contrato de trabalho entre as outras duas partes da relação por intermédio dos algoritmos (ANTUNES, 2020, pág.85).
Nesta esteira, esses dados computadorizados estão enraizados nessas novas relações de trabalho advindas da Industria 4.0, isso porque, o algoritmo irá conectar o consumidor final ao motorista, distribuindo para este a demanda, de acordo com a procura naquela região.
Todavia, há uma ilusão de que o motorista possui a liberdade de aceitar ou rejeitar aquela demanda, sem consequências. Mas não é o acontece. No momento em que há o preterir entregas, o motorista perde suas “estrelas” e há uma redução de proposta de entregas, até que este é desligado indiretamente da plataforma (ANTUNES, 2020, pág.83).
De forma análoga, é possível comparar este fenômeno com a Dispensa sem Justa Causa. Todavia, diferente deste desligamento, os entregadores das plataformas digitais não percebem verbas rescisórias, nem tampouco, outros direitos trabalhistas, como seguro-desemprego ou FGTS, ante a inexistência de vínculo empregatício, o que torna esse fenômeno, advindo da Industria 4.0, precário.
Nesta esteira, os algoritmos têm uma grande importância em delinear a subordinação estrutural, por intermédio dos aplicativos que enviam regularmente fluxo de ordens empresariais aos motoristas mediante aparelhos de celulares, conectados à internet. Observa-se que a subordinação tradicional está sendo diluída nesta indústria da quarta revolução industrial, a qual possui, de forma cristalina, a figura do superior hierárquico, desenvolvido a partir de programas algoritmos que tendem a aumentar e reduzir o fluxo de corridas que cada trabalhador possui.
Outrossim, cumpre dizer que, em decorrência da jornada de trabalho realizada, o empregador quita somente a atividade desempenhada e não pelo tempo de espera até receber chamado de entrega. Veja que não se controla o processo produtivo, mas somente o resultado, o qual pode ser rejeitado, levando o obreiro a prejuízos de natureza remuneratória (ANTUNES, 2020, pág.83).
E mais, como já comentado acima, um dos controles feitos ocorre por meio dos algoritmos, mais precisamente por intermédio das avaliações prévias feitas pelos consumidores finais (ANTUNES, 2020, pág.83).
Estes, que por sua vez, são importantes para definir o futuro do trabalho daquele entregador na empresa, ante que o obreiro que recebe poucas avaliações positivas é desligado, sem aviso prévio da plataforma, sem receber verbas rescisórias. Veja que, nesta ótica, com base nas avaliações feitas pelos solicitantes, ocorre um controle prévio, de modo que apenas aqueles entregadores com boas avaliações terão a oportunidade de ser contratados no futuro para a execução de novas tarefas (ANTUNES, 2020, pág.83).
Outrossim, por meio dessas novas relações de trabalho, a Suprema Corte do Reino Unido firmou entendimento sobre o vínculo empregatício, uma vez que os motoristas são funcionários do aplicativo e não mais trabalhadores autônomos. Em consequência, estes obreiros têm o direito reconhecido a salário-mínimo, aposentadoria e férias remuneradas. Desta forma, todas as Justiças laborais britânicas já decidem com base na lei aprovada (Consultor Jurídico, 2021).
Todavia, este fato não se desenvolve no ordenamento pátrio, haja vista o Conflito de Competência sob o número 164.544/MG trata do entendimento do STF que julgou a Justiça do Trabalho como sendo incompetente para dirimir ações que visam o reconhecimento de Vínculo Empregatício, ante a falta de matéria trabalhista, conforme o teor do artigo 114 da CLT, ou seja, há a falta da ratione materiae. (INFORMATIVO DE JURISPRUDÊNCIA, 2022)
Compete à justiça comum estadual julgar ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. (STF, 2019. Informativo 655).
Com o apontado até este momento, é razoável afirmar que ainda, infelizmente, o reconhecimento do vínculo empregatício nas relações entre motoristas e empresas de economia compartilhada, como Ifood são ainda desencampadas de uniformidade nas decisões monocráticas, nem tampouco, colegiadas.
Por conta disso, os motoristas se veem em situação de precariedade, isso porque os direitos básicos laborais não lhe são concedidos, nem tampouco as mínimas condições, ante que é necessário que o próprio entregador mantenha o seu meio de locomoção. Nesta esteira, cumpre assinalar que, devida a inexistência de dever do Ifood perante os motoristas, a empresa não detém a competência de zelar pelo cuidado e manutenção da moto, sendo um objetivo usado para o trabalho.
Neste diapasão, mister se faz pontuar de forma esquematizada todos os direitos e adicionais legais que esses motoboys têm direito, com vistas à sentença da Ação Trabalhista de Rito Ordinário dos autos do processo de número 000846-49.2020.5.23.0002, disponível no endereço eletrônico do Tribunal regional do Trabalho da 23ª Região. (Portal TRT 23, 2021).
4.1. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE
A sentença ao analisar o direito de adicional de periculosidade, observou cuidadosamente o uso de motocicleta para realizar as atividades laborais. Isso porque a CLT é uníssona em contemplar que as atividades que usam esse meio de transporte para a execução do serviço são consideradas perigosas, com fulcro no artigo 193, §4º, sendo esta previsão legal abarcada pelo anexo 5 da NR 16 da Portaria 3.214/78 do M.T.E.
Outrossim, as jurisprudências asseguram que é devido este adicional de periculosidade sempre que há o suo de motocicletas nas prestações de serviço. Por conta disso, a sentença decidiu pela condenação da reclamada ao pagamento do adicional de periculosidade na ordem de 30% (trinta porcento) sobre o salário base do empregado, bem como nos reflexos, em especial no DSR, 13º salário proporcional, férias proporcionais com o adicional de 1/3 e FGTS.
4.2. JORNADA DE TRABALHO
Inicialmente, cumpre salientar que a jornada de trabalho dos entregadores excede à 8ª (oitava) diária, determinada pelo artigo 58 da CLT. Neste interim, em observância com o horário do “Login” e “Logout”, método de controle de jornada, que na maioria dos casos, os entregadores exercem suas atividades em horário noturno. Desta forma, deve o empregador pagar a importância de 20% (vinte porcento) referente ao adicional noturno sobre as horas trabalhadas após às 22h00, com os respectivos reflexos. Este entendimento foi observado pelo magistrado do processo supracitado.
“Ante a jornada fixada retro, condeno a primeira ré ao pagamento do adicional noturno sobre as horas trabalhadas após às 22h, com adicional de 20%, o divisor de 220, sobre o salário pago no período. Presente a habitualidade da verba de natureza salarial, defiro os reflexos sobre RSR, 13º salário proporcional, férias proporcionais mais 1/3 e FGTS.” (LOCATELLI, Aguinaldo. 2021)
Neste sentido, de forma análoga, este deve ser o entendimento a ser aplicado para os entregadores que laboram em horário noturno (entre às 22h00 e 05h00). E mais, no deslinde da jornada de trabalho que atravessa o limite legal, não se pode olvidar que há o denominado “Sistema 9-9-6”, praticado por muitas empresas de economia compartilhada, inclusive o Ifood, o qual significa: trabalhar das 9h00 da manhã às 9h00 da noite, durante 6 (seis) dias por semana (ANTUNES, 2020. Pág. 15). Ou seja, há uma jornada de trabalho de 72 (setenta e duas) horas semanais, a qual há uma clara violação do artigo 7º, XIII da CLT.
Nesta lógica, há se de frisar que estes entregadores de comida, tem para si o direito cristalino de receber pelas horas extras além da 8ª diária, 44ª semanal e 220ª mensal, uma vez que que o empregador tem a capacidade de controlar a jornada de trabalho por meio da governança sistêmica pelos algoritmos.
5. REAÇÃO SOCIAL
Em observância ao exposto até o momento que, de fato, há uma precarização trabalhista, a qual não é sanada por aquele tribunal que deveria ter a competência reconhecida. Apesar desse instável cenário, os empregadores têm conseguido dialogar, mediante redes sociais, e gozar de seu direito constitucional da greve para desenvolver formas de organização e luta frente aos mecanismos de controle usados pelas empresas de delivery, como Ifood.
Um exemplo disso, foram as paralisações que vieram a ocorrer entre os dias 1º e 25 de julho de 2022, movimento este que recebeu o nome de Breque dos Apps. Resultado desta greve foi observado pelos apoios advindos da população que não realizaram pedidos em um determinado dia, dentre aqueles da paralisação. E somando-se a isso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logísticas da CUT (CNTTL) em conjunto com a Federação Nacional dos Trabalhadores Motociclistas Profissionais Autônomos (FENAMOTO) declararam apoio ao movimento dos motoristas. (ACCARINI, 2020).
Em meios a esses movimentos, o partido político PDT (Partido Democrático dos Trabalhadores) realizou um Projeto de Lei (PL 3748/2020) que institui propostas laborais a fim de garantir três direitos básicos aos trabalhadores sob demanda. (BRASIL, 2020)
De início, o projeto determina uma proteção social mais ampla, assegurar um patamar remuneratório, com vistas às garantias fundamentais ao salário-mínimo, assegurar seguranças mínimas. Além dessas proteções gerais, o projeto inclui também em seu texto a garantia de licença-maternidade, afastamento em face às incapacidades temporárias ou por doença ou ainda por acidente de trabalho. Por fim, esse projeto, que visa reduzir as precariedades, conduz à garantia de direitos laborais, como repouso semanal remunerado, férias com o acréscimo de 1/3 constitucional e 13º salário.
Neste sentido, é cristalino que a continuidade das movimentações e o apoio da sociedade e de outras pessoas jurídicas de direito público irá fomentar o reconhecimento dos direitos dos motoristas uberizados, reduzindo exponencialmente o sistema laboral precário e exploratório que o capital realiza perante os proletários.
6. CONCLUSÃO
Com observância ao exposto até o momento, a uberização, fenômeno este advindo das relações algorítmicas entre as empresas de economia compartilhadas, como o Ifood, tende a trazer precariedade para a relação de trabalho, uma vez que esta não é reconhecida pelos tribunais e juízes de primeira instância.
Consequentemente, esses prestadores de serviço ficam às margens das leis trabalhistas, sem poder gozar daqueles direitos que lhe são devidos e são, diariamente, explorados. De fato, esse fenômeno traz inseguranças jurídicas e retrocesso social devida à falta de proteção jurídica a esses trabalhadores, os quais são massacrados diariamente para evitar o cancelamento nas plataformas digitais as quais são mantidas por intermédio dos algoritmos, causando, dessa forma a desvalorização da força de trabalho.
Diante dessas observações, essas precariedades e exploração do trabalho vivo podem ser, claramente, dirimidas pelas proteções legais, como o Projeto de Lei supramencionado, bem como, por meio do reconhecimento das relações empregatícias por intermédio de juízes e tribunais, criando, dessa forma, precedentes favoráveis aos prestadores de serviços.