Condição Análoga à Escravidão Pela Governança Cibernética: Uma Análise às Precarizações e ao Excesso de Jornada de Trabalho dos Prestadores de Serviço do IFood à Luz da Relação Algorítmica.


13/12/2022 às 14h49
Por Beatriz Gebra Mattos

 

1.                  INTRODUÇÃO

 

Os trabalhos forçosos, em condição análoga à de escravo e os obrigatórios são notadamente abolidos no Brasil, uma vez que o país já assinou diversos acordos e convenções internacionais com o intuito de abolir e combater esta prática. A teor exemplificativo, convêm analisar as principais Convenções que o Governo Federal é signatário.

Em 1966 foi ratificado no Brasil a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926, a qual estabelece o compromisso de seus signatários de abolir completamente a escravidão em todas as suas formas. Posteriormente, em 1957, o Brasil ratificou a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho, a qual assegura a proteção contra o Trabalho Forçado ou Obrigatório. Ainda sobre os pactos internacionais da OIT, o Brasil assinou em 1957 a Convenção 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado de 1965.

Em seguida, houve a ratificação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de 1966, este assinado em 1992. Da mesma forma, em 1992, o Pacto de São José da Costa Rica de 1969, foi assinado no Brasil, no qual os signatários formam um compromisso de repressão à escravidão em todas as suas formas.

Outrossim, cumpre destacar que além dos acordos e convenções, embora assinados com recorrente atraso, a Constituição Federal de 1988 do Brasil é cristalina e pacífica em determinar como direitos fundamentais à proteção da dignidade da pessoa humana e a valorização social do trabalho e da livre iniciativa, como preceitua o Artigo 1º da Carta Magna.

Todavia, mesmo com uma base normativa sólida sobre a proteção do trabalhador e a abolição das condições análogas a de escravidão, é notado que, infelizmente, o número de pessoas nessas situações ainda é alto hoje. Como exemplo, pode-se destacar que apenas neste ano de 2022 foram resgatadas 500 (quinhentas) pessoas em situações de trabalho análogo à de escravidão (Haje, 2022).

Ocorre que, com a ausência de fiscalização adequada em empresas, os trabalhos análogos a de escravidão tendem a crescer e se fossilizar no âmbito capitalista, uma vez que este visa o lucro a partir da força de trabalho. Outrossim, sob a ótica da Mais-Valia Abstrata (Marx, 1867), há casos em que o empregado possui uma jornada de trabalho extensa, de modo a contrariar os ditames legais que determina uma jornada semanal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.

Pode-se citar que, em se tratando de retrocesso social, é cristalino que no Brasil há situações em que os direitos humanos e as garantias fundamentais são obstadas frente às mudanças retrogradas da legislação e entendimento jurisprudencial, como por exemplo o caso da ADI 7222 (piso da enfermagem). Isso porque, os profissionais de saúde que laboram em sobrejornadas, turnos ininterruptos e jornadas de 12x36 tiveram sua importância atuação, principalmente no cenário pandêmico, ameaçado por piso salarial, valores estes aquém da relevância função cumprida (Maior, 2022).

Neste sentido, nos últimos anos, o Brasil passa por significativas incertezas e inseguranças jurídicas, reduzindo a importância dos trabalhadores a fim de enaltecer as grandes empresas, que como já dizia Marx (Marx, 1867), fazem o uso constante e irracional da mão de obra para ganhar lucros inimagináveis, desentranhando da relação empregatícia os direitos humanos e garantias fundamentais.

Pois bem. Diante do declinado acima, este artigo tem o condão de apresentar estudos e pareceres do Ministério Público do Trabalho e Economia (M.T.E) a fim de responder a seguinte pergunta: sob a ótica do excesso de jornada dos prestadores de serviço da empresa de economia compartilhada – Ifood – e diante da ausência de direitos básicos trabalhistas acerca da ausência de vínculo empregatício, em razão do fenômeno da Uberização, é possível afirmar que há neste cenário Trabalho em Condição Análoga à de Escravidão?

2.                  CONCEITO DE TRABALHO EM CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVIDÃO

 

Como já citado, a exploração do homem ainda é muito comum na atualidade, mesmo após um século da abolição da escravatura. Todavia, essas condições ainda continuam vigorando e enraizando cada vez mais no cenário de capitalista tão vigente no Brasil.

A fim de conceituar o trabalho escravo, cumpre averiguar o artigo do Código Penal que descreve o tipo penal de redução à condição análoga à de escravo:

 

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retêlo no local de trabalho

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

 

Outrossim, em Instrução Normativa de número 139/2018, o ministério público estabeleceu a caracterização sob a ótica administrativa da figura da redução do trabalhador a condição análoga à de escravo, a qual define procedimentos e diretrizes na atuação dos auditores-fiscais do Trabalho fiscais (figuras de suma importância para a fiscalização laboral) no combate aos trabalhos forçosos:

 

Art. 6º Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:

I - Trabalho forçado;

II - Jornada exaustiva;

III - Condição degradante de trabalho;

IV - Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho;

V - Retenção no local de trabalho em razão de:

a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;

b) manutenção de vigilância ostensiva;

c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais

 

Neste ínterim, de acordo com Filho (Filho, 2004), o trabalho em condição análoga à de escravidão é a submissão do homem a um trabalho com a sua restrição à liberdade – garantia constitucional – ou ausência de garantia de dignidade humana do trabalhador. Ou seja, é a violação da dignidade da pessoa humana, de modo que há de fato uma ausência de direitos básicos.

Sob a ótica desse conceito, os trabalhosos forçosos é a coisificação do ser humano, de modo a precificar não mais a mão de obra, mas sim do ser humano que preta aquele serviço. Ademais, observa-se que o artigo 6º da Instrução Normativa 139/2018, em inciso II estabelece que a jornada exaustiva pode ser vista como uma causa para o reconhecimento do trabalho escravo moderno.

Em relação ao sistema consumerista de comida, houve uma gigantesca procura nos últimos anos, principalmente na era pandêmica, fato este cominado e pelos princípios do capitalismo e neoliberais. Com isso, os prestadores de serviço do Ifood recebem uma demanda alta a desproporcional para ser realizada por aquela pessoa.

Como consequência a isso e juntamente com a ausência de reconhecimento do vínculo empregatício, a partir dessas relações laborais, há jornadas excessivas e exaustivas, de modo que os prestadores trabalham quase o triplo do limite previsto no artigo 7º, XIII da Constituição Federal:

 

Art. 7º

(...)

XIII - Duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho

 

Contudo, é possível que haja jornadas acima do limite legal, como por exemplo do turno ininterrupto, devendo ser autorizado em contrato perante o sindicado da categoria da empresa, de modo que com a essa ausência de fiscalização, não pode prosperar estas jornadas, uma vez que há a exploração dos trabalhadores de forma exaustiva e há uma extrapolação do limite imposto pelas normas legais. Diante disso, é possível auferir a jornada exaustiva e, consequentemente, a condição análoga à de escravo, comumente chamada de “Escravidão Moderna”.

Neste sentido, cumpre analisar o conceito das jornadas extensas de trabalho, de acordo com o Manual de Combate ao Trabalho em Condição Análoga à de Escravo (Mistério Público, 2011. pág. 13):

 

“Note-se que jornada exaustiva não se refere exclusivamente à duração da jornada, mas à submissão do trabalhador a um esforço excessivo ou a uma sobrecarga de trabalho – ainda que em espaço de tempo condizente com a jornada de trabalho legal – que o leve ao limite de sua capacidade. É dizer que se negue ao obreiro o direito de trabalhar em tempo e modo razoáveis, de forma a proteger sua saúde, garantir o descanso e permitir o convívio social. Nessa modalidade de trabalho em condição análoga à de escravo, assume importância a análise do ritmo de trabalho imposto ao trabalhador quer seja pela exigência de produtividade mínima por parte do empregador, quer seja pela indução ao esgotamento físico como forma de conseguir algum prêmio ou melhora na remuneração.”

 

Ademais, não se pode esquecer que o excesso de trabalho, sem descansos e paradas para refeições pode provocar inúmeros riscos à saúde e acidentes de trabalho, principalmente aos prestadores de serviço do Ifood, que utilizam a moto para realizar as atividades laborais. Por conta dessas situações, é necessário haver uma regulamentação das jornadas laborais, principalmente no meio de trabalho por aplicativos, que surgem a partir da Uberização.

 

3.                  UBERIZAÇÃO E EMPRESAS DE ECONOMIA COMPARTILHADAS

 

O fenômeno da Uberização, decorrente de Empresas de Economia Compartilhada, é a prestação serviços de entrega e transporte por intermédio de comunicação de softwares e algoritmos que realizam a intermediação entre prestadores de serviços e consumidores finais, sem, no entanto, estes trabalhadores gozar de vínculo empregatício reconhecido pelo ordenamento jurídico e/ou leis esparsas. Fenômeno este encampado em aplicativos de entrega, como Ifood.

Em decorrência da ausência do vínculo empregatício, os prestadores de serviço não são encampados de garantias constitucionais, nem tampouco protegidos pela CLT, Decreto este que é estendido à todas as relações provenientes de relação empregatícia. Diante deste cenário e em decorrência ao excesso de jornada dos autônomos, assim entendidos pelas Jurisprudências Pátrias Trabalhistas, ficam às margens das proteções laborais, as quais não observam a possível condição análoga à escravidão dos prestadores que recebem ínfimas remunerações e chegam a trabalhar mais de 72 (setenta e duas) horas semanais, sem proteções legais, uma vez que o fenômeno da Uberização obstrui o reconhecimento do vínculo empregatício.

Pois bem. Em meados de 2020, com a consequência da pandemia e da instabilidade no mercado de trabalho, conjuntamente relacionada com o número emergente de desemprego, o trabalho informal teve um crescimento acentuado.

Isso porque, com esse cenário pandêmico que assola o mundo, muitas empresas de grande e pequeno porte tiveram altas reduções em seu balanço econômico e outras, foram levadas à falecia. A estes acontecimentos, muitos empregados foram demitidos e outros, tiveram seus contratos de trabalho suspensos, devido a Medida Provisória número 936/2020.

Neste quadro, com a alta taxa de desemprego e contratos de trabalho instáveis, estes trabalhadores não tiveram outra saída, a não ser migrar para estes trabalhos mantidos por plataformas digitais, como os aplicativos de entrega de comida, os quais tiveram certa importância no início da pandemia devida o isolamento social que impossibilitava outros de irem em restaurantes.

Nesta nova organização de trabalho, estabelece-se uma relação triangular, na qual estão presentes o entregador, consumidor final e a plataforma, que é um intermediador entre aqueles, como dispõe Ricardo Antunes (Antunes, 2020).

Com essa relação, surge o processo da Uberização, no qual as relações de trabalho são atravancadas pela individualização, coadunando para si a aparência de “prestação de serviço”, fossilizando as relações de assalariamento e de exploração de trabalho.

Cumpre assinalar que a partir do desenvolvimento das empresas liofilizadas e flexíveis, surge neste cenário a tríade conhecida como terceirização, informalidade e flexibilidade, a qual vem se tornando uma base principiológica para as empresas de economia compartilhada. Com isso, observa-se uma exponencial corrosão das proteções trabalhistas, as quais foram advindas das lutas de classes.

Neste novo cenário de organização do trabalho, associado ao uso de plataformas digitais a fim de gerir e controlar os trabalhadores, cria-se uma estratégia para mascarar o assalariamento e as condições que criam o vínculo empregatício.

Isso porque, como se verá em tópicos seguintes, a relação de trabalho é banhada por cinco requisitos imprescindíveis e, na falta de um não há óbice para reconhecer a inexistência de vínculo de emprego. Outrossim, com a inexistência de relação trabalhista nos contratos firmados com as plataformas digitais, estas não dispensadas de arcar com as custas trabalhistas, previdenciárias e tributárias. Ou seja, para muitos doutrinadores, este fenômeno torna-se um litígio de três ângulos diferentes.

Portanto, o presente artigo tem a finalidade de apresentar repercussões sociais que já são observadas a partir da introdução e desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), como os aplicativos que mascaram a relação labora.

Outrossim, este artigo possui como metodologia a pesquisa exploratória a partir do estudo crítico de bibliografias e jurisprudências pátrias e internacionais, a fim de estudar se há de fato condições análogas à escravidão dos prestadores de serviço, uma vez que não gozam do direito de desconexão, nem tampouco de direitos básicos trabalhistas e, ainda, não há fiscalização dos órgãos de proteção, como Ministério Público do Trabalho, com a intenção investigar as condições laborais destes prestadores de serviço.

O artigo traz discussões e entendimentos sedimentados em estudos bibliográficos, jurisprudenciais, bem como em cartilhas do Mistério Público do Trabalho acerca da Escravidão Contemporânea, a fim de apontar os impactos sociais e os desafios dos trabalhadores “uberizados”, observando a Teoria de Karl Marx acerca da venda de força do trabalho, os quais recebem importes ínfimos com o labor realizado.

Já em consonância com o fenômeno da uberização, os trabalhadores realizam a auto exploração de seu próprio trabalho, mascarados sobre o prisma de que são prestadores de serviço, os quais são subordinados, tampouco correm os riscos da dispensa. Todavia, isso não condiz com a realidade.

Em relação à Economia de Compartilhamento, pode-se conceituá-la como uma forma de negócio que possui um modelo digital que abarca as novas formas de negócio e surgimento de relações laborais não amparadas pelo direito conservador. É possível afirmar que com essas economias, há um uso da mão de obra de trabalho excedente a fim de encaminhar esses prestadores de serviço a uma nuvem virtual de trabalhadores “independentes” que possuem atribuições específicas.

Veja que em relação ao conceito de independência dos trabalhadores ofusca o direito de reconhecimento do vínculo empregatício, principalmente no que se refere à Subordinação, requisito este necessário previsto no artigo 3º, caput da CLT.

Neste prisma, deve-se afirmar que este elemento é observado também por auxílio de instrumentos de controle, como aplicativos para determinar os horários de trabalho, como é o que acontece com os trabalhadores uberizados. Em análise, estes instrumentos podem ser observados por intermédio de uma lente que o conceitua como controle da força de trabalho. (Antunes, 2020).

Em epitome, cumpre analisar o voto da desembargadora em votação colegiada da 7ª Turma do TRT da 1ª Região, a qual deu provimento ao recurso ordinário interposto por motorista que pleiteou o reconhecimento do vínculo empregatício entre o obreiro e a empresa Uber. Cumpre ainda salientar que o colegiado acompanhou a decisão da Relatora Desembargadora Carina Rodrigues Bicalho. (Migalhas, 2021) Senão vejamos:

 

"Em resumo, o que Uber faz é codificar o comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, onde insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte, sendo alimentada pelo enorme volume de dados tratados, captados a cada instante da prestação de serviços. Realiza, pois, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista. O conceito de subordinação, assim, torna-se mais sofisticado, mas não deixa de ser a forma pela qual se dá a organização do processo produtivo."

 

Nesta postura, cumpre assinar que a subordinação, abarcada por intermédio de algoritmos, é também observada por meio do artigo 6º da CLT. Isso por que, para Delgado (2017), esse fenômeno é aplicado nas relações laborais por intermédio do artigo supracitado, o qual traz em seu berço o avanço tecnológico tutela o trabalho realizado fora das dependências do empregador. Ou seja, a Consolidação das Leis Trabalhistas abarca agora a possibilidade dos trabalhos prestados de forma remota, de modo que a subordinação não se confunde mais com o controle de jornada. Senão vejamos.

 

Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.

Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio

 

Veja que aquele que presta serviços fora das dependências empresariais é tratado também como empregado celetista (regido pela CLT). E mais, o artigo em destaque completa o entendimento dos artigos 2º e 3º, de modo que esclarece que, para fins de relação empregatícia, pode o empregado ser controlado e supervisionado por meio telemáticos, como os algoritmos

Nesta postura, cumpre vislumbrar o entendimento jurisprudencial e da CLT que estipula que o ônus probatório recai ao empregador para provar inexistência de vínculo empregatício em face da prestação de serviço. Isso porque, segundo o artigo 818, I e II da CLT, incumbe a quem alegar fato impeditivo, modificativo e extintivo de direito.

Desta forma, deve este impugnar e trazer provas cabíveis de evidenciar a falta de subordinação e provar a mera prestação de serviço. Todavia, nessa nova organização de trabalho por intermédio de tecnologias, as provas documentais que de se extrai são é contrato de prestação de serviço, o qual tem o intuito de mascarar a relação empregatícia, bem como as rotas e viagens realizadas pelo empregado.

Neste interim, diante dessa novidade temática e controvérsias sobre o tema, deve o magistrado apreciar aquele caso sob a ótica do Princípio da Realidade a fim de se reconhecer o vínculo empregatício. Senão vejamos os ensinamentos do ilustre jurista Américo Plá Rodrigues:

 

“O princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge dos documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos.” ("Princípios do Direito do Trabalho", LTr, 4ª tiragem, SP, 1996, p. 217).

 

Ademais, o sistema jurisprudencial pátrio ainda é muito dispare no assunto temático, haja vista a discordância de entendimento, vez que muitos magistrados não reconhecem, ainda, a relação de emprego. Senão vejamos seguinte jurisprudência proferida pelo TST em voto do Relator Alexandre Luiz Ramos: (Tribunal Superior do Trabalho TST - AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA: AIRR 10575-88.2019.5.03.0003, 2020)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA RECLAMANTE. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DAS LEIS Nºs 13.015/2014 E 13.467/2017. PROCEDIMENTO SUMARÍSSIMO. RELAÇÃO DE EMPREGO. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO. TRABALHADOR AUTÔNOMO. MOTORISTA. APLICATIVO. UBER. IMPOSSIBILIDADE. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA. NÃO PROVIMENTO. I. Discute-se a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista profissional que desenvolve suas atividades com utilização do aplicativo de tecnologia “Uber” e a sua criadora, Uber do Brasil Tecnologia Ltda. II. Pelo prisma da transcendência, trata-se de questão jurídica nova, uma vez que se refere à interpretação da legislação trabalhista (arts. 2º, 3º, e 6º, da CLT), sob enfoque em relação ao qual ainda não há jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho ou em decisão de efeito vinculante no Supremo Tribunal Federal. Logo, reconhece-se a transcendência jurídica da causa (art. 896-A, § 1º, IV, da CLT). III. Na hipótese, o Tribunal Regional manteve, pelos próprios fundamentos, a sentença em que se reconheceu a condição de trabalhador autônomo do Reclamante . No particular, houve reconhecimento na instância ordinária de que o Reclamante ostentava ampla autonomia na prestação de serviços, sendo dele o ônus da atividade econômica. Registrou-se, ainda, a ausência de subordinação do trabalhador para com a Reclamada, visto que “o autor não estava sujeito ao poder diretivo, fiscalizador e punitivo da ré”. Tais premissas são insusceptíveis de revisão ou alteração nessa instância extraordinária, conforme entendimento consagrado na Súmula nº 126 do TST. IV. A relação de emprego definida pela CLT (1943) tem como padrão a relação clássica de trabalho industrial, comercial e de serviços. As novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego. O contrato regido pela CLT exige a convergência de quatro elementos configuradores: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica. Esta decorre do poder hierárquico da empresa e se desdobra nos poderes diretivo, fiscalizador, regulamentar e disciplinar (punitivo) . O enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a respectiva plataforma deve se dar com aquela prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade, como é o caso da definida pela Lei nº 11.442/2007, do transportador autônomo, assim configurado aquele que é proprietário do veículo e tem relação de natureza comercial. O STF já declarou constitucional tal enquadramento jurídico de trabalho autônomo (ADC 48, Rel. Min. Roberto Barroso, DJE nº 123, de 18/05/2020), a evidenciar a possibilidade de que nem todo o trabalho pessoal e oneroso deve ser regido pela CLT. V. O trabalho pela plataforma tecnológica – e não para ela -, não atende aos critérios definidos nos artigos 2º e 3º da CLT, pois o usuário-motorista pode dispor livremente quando e se disponibilizará seu serviço de transporte para os usuários-clientes, sem qualquer exigência de trabalho mínimo, de número mínimo de viagens por período, de faturamento mínimo , sem qualquer fiscalização ou punição por esta decisão do motorista, como constou das premissas fáticas incorporadas pelo acórdão Regional, ao manter a sentença de primeiro grau por seus próprios fundamentos, em procedimento sumaríssimo. VI. Sob esse enfoque, fixa-se o seguinte entendimento: o trabalho prestado com a utilização de plataforma tecnológica de gestão de oferta de motoristas-usuários e demanda de clientes-usuários, não se dá para a plataforma e não atende aos elementos configuradores da relação de emprego previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, inexistindo, por isso, relação de emprego entre o motorista profissional e a desenvolvedora do aplicativo, o que não acarreta violação do disposto no art. 1º, III e IV, da Constituição Federal . VII . Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento. (TST – AIRR: 105758820195030003, Relator: Alexandre Luiz Ramos, Data de Julgamento: 09/09/2020, 4ª Turma, Data de Publicação: 11/09/2020).

 

Veja que o entendimento do Relator foi baseado no fato de que o trabalhador que presta serviços por intermédio de plataformas digitais não goza dos elementos dos artigos 2º e 3º da CLT, que, por consequência, desconstitui o vínculo empregatício.

Neste ínterim, há de reconhecer que na quarta revolução industrial que nutri as relações empregatícias há novos conceitos e outros métodos de controle de jornada, os quais são aduzidos por intermédio de algoritmos. E mais, a partir da nova monitoração do expediente, feito por algoritmos, há um incentivo maior à capitalização da mão de obra e às compras inconscientes e irracionais, levando a crer que, devido esse cenário, há uma precarização da relação laboral.

Isso porque, conforme a ausência do reconhecimento do vínculo empregatício, há direitos básicos constitucionais e celetistas que são obstruídos, deixando de serem protegidos os prestadores de serviço, ante a coisificação dessa classe de trabalhadores.

A fim de concluir esse pequeno silogismo, com os conceitos e preceitos já informados, é possível observar o trabalho análogo à de escravo, ante as jornadas excessivas e exaustivas, bem como a ausência dos direitos básicos trabalhistas que são, diariamente, desentranhados dessa relação empregatícia, a qual é governada por algoritmos, os quais serão delineados no próximo tópico.

 

4.                  ALGORITMOS

 

Em breves pinceladas, os algoritmos, termo este que tem origem matemática, é caracterizado por conjunto de etapas das quais um software precisa para chegar a um resultado. Este conceito matemático tem o condão de manter e alterar estratégias e soluções.

Com esse breve conhecimento, necessário é realizar uma ponte lógica entre esses algoritmos e a subordinação nas relações empregatícias. Veja que atualmente, há uma obediência dos empregados por meio de tecnologia, uma vez que estes não são mais subordinados de superiores hierárquicos, mas sim de regras de computadores. Neste ínterim, os entregadores de comida não gozam mais de liberdade, mas experimentam reações controladas por algoritmos.

Isso porque, nesta governança cibernética, há uma relação triangular entre o consumidor final, entregador e a plataforma digital, sendo que esta última é um intermediário na relação do contrato de trabalho entre as outras duas partes da relação por intermédio dos algoritmos (Antunes, 2020, pág.85).

Nesta esteira, esses dados computadorizados estão enraizados nessas novas relações de trabalho advindas da Industria 4.0, isso porque, o algoritmo irá conectar o consumidor final ao motorista, distribuindo para este a demanda, de acordo com a procura naquela região.

Todavia, há uma ilusão de que o motorista possui a liberdade de aceitar ou rejeitar aquela demanda, sem consequências. Mas não é o acontece. No momento em que há o preterir entregas, o motorista perde suas “estrelas” e há uma redução de proposta de entregas, até que este é desligado indiretamente da plataforma (Antunes, 2020, pág.83).

De forma análoga, é possível comparar este fenômeno com a Dispensa sem Justa Causa. Todavia, diferente deste desligamento, os entregadores das plataformas digitais não percebem verbas rescisórias, nem tampouco, outros direitos trabalhistas, como seguro-desemprego ou FGTS, ante a inexistência de vínculo empregatício, o que torna esse fenômeno, advindo da Industria 4.0, precário.

Nesta esteira, os algoritmos têm uma grande importância em delinear a subordinação estrutural, por intermédio dos aplicativos que enviam regularmente fluxo de ordens empresariais aos motoristas mediante aparelhos de celulares, conectados à internet. Observa-se que a subordinação tradicional está sendo diluída nesta indústria da quarta revolução industrial, a qual possui, de forma cristalina, a figura do superior hierárquico, desenvolvido a partir de programas algoritmos que tendem a aumentar e reduzir o fluxo de corridas que cada trabalhador possui.

Outrossim, cumpre dizer que, em decorrência da jornada de trabalho realizada, o empregador quita somente a atividade desempenhada e não pelo tempo de espera até receber chamado de entrega. Veja que não se controla o processo produtivo, mas somente o resultado, o qual pode ser rejeitado, levando o obreiro a prejuízos de natureza remuneratória (Antunes, 2020, pág.83).

E mais, como já comentado acima, um dos controles feitos ocorre por meio dos algoritmos, mais precisamente por intermédio das avaliações prévias feitas pelos consumidores finais (Antunes, 2020, pág.83).

Estes, que por sua vez, são importantes para definir o futuro do trabalho daquele entregador na empresa, ante que o obreiro que recebe poucas avaliações positivas é desligado, sem aviso prévio da plataforma, sem receber verbas rescisórias. Veja que, nesta ótica, com base nas avaliações feitas pelos solicitantes, ocorre um controle prévio, de modo que apenas aqueles entregadores com boas avaliações terão a oportunidade de ser contratados no futuro para a execução de novas tarefas (Antunes, 2020, pág.83).

Outrossim, por meio dessas novas relações de trabalho, a Suprema Corte do Reino Unido firmou entendimento sobre o vínculo empregatício, uma vez que os motoristas são funcionários do aplicativo e não mais trabalhadores autônomos. Em consequência, estes obreiros têm o direito reconhecido a salário-mínimo, aposentadoria e férias remuneradas. Desta forma, todas as Justiças laborais britânicas já decidem com base na lei aprovada (Consultor Jurídico, 2021).

Todavia, este fato não se desenvolve no ordenamento pátrio, haja vista o Conflito de Competência sob o número 164.544/MG trata do entendimento do STF que julgou a Justiça do Trabalho como sendo incompetente para dirimir ações que visam o reconhecimento de Vínculo Empregatício, ante a falta de matéria trabalhista, conforme o teor do artigo 114 da CLT, ou seja, há a falta da ratione materiae (Informativo de Jurisprudência, 2022).

 

Compete à justiça comum estadual julgar ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços.

 

Com o apontado até este momento, é razoável afirmar que ainda, infelizmente, o reconhecimento do vínculo empregatício nas relações entre motoristas e empresas de economia compartilhada, como Ifood são ainda desencampadas de uniformidade nas decisões monocráticas, nem tampouco, colegiadas.

Por conta disso, os motoristas se veem em situação de precariedade, isso porque os direitos básicos laborais não lhe são concedidos, nem tampouco as mínimas condições, ante que é necessário que o próprio entregador mantenha o seu meio de locomoção. Nesta esteira, cumpre assinalar que, devida a inexistência de dever do Ifood perante os motoristas, a empresa não detém a competência de zelar pelo cuidado e manutenção da moto, sendo um objetivo usado para o trabalho.

Neste diapasão, mister se faz pontuar de forma esquematizada todos os direitos e adicionais legais que esses motoboys têm direito, com vistas à sentença da Ação Trabalhista de Rito Ordinário dos autos do processo de número 000846-49.2020.5.23.0002, disponível no endereço eletrônico do Tribunal regional do Trabalho da 23ª Região. (Portal TRT 23, 2021).

 

5.                   JORNADA DE TRABALHO DOS PRESTADORES DE SERVIÇO DO IFOOD

 

Inicialmente, cumpre salientar que a jornada de trabalho dos entregadores excede à 8ª (oitava) diária, determinada pelo artigo 58 da CLT. Neste interim, em observância com o horário do “Login” e “Logout”, método de controle de jornada, que na maioria dos casos, os entregadores exercem suas atividades em horário noturno. Desta forma, deve o empregador pagar a importância de 20% (vinte porcento) referente ao adicional noturno sobre as horas trabalhadas após às 22h00, com os respectivos reflexos. Este entendimento foi observado pelo magistrado do processo supracitado.

 

Ante a jornada fixada retro, condeno a primeira ré ao pagamento do adicional noturno sobre as horas trabalhadas após às 22h, com adicional de 20%, o divisor de 220, sobre o salário pago no período. Presente a habitualidade da verba de natureza salarial, defiro os reflexos sobre RSR, 13º salário proporcional, férias proporcionais mais 1/3 e FGTS.

 

Neste sentido, de forma análoga, este deve ser o entendimento a ser aplicado para os entregadores que laboram em horário noturno (entre às 22h00 e 05h00). E mais, no deslinde da jornada de trabalho que atravessa o limite legal, não se pode olvidar que há o denominado “Sistema 9-9-6”, praticado por muitas empresas de economia compartilhada, inclusive o Ifood, o qual significa: trabalhar das 9h00 da manhã às 9h00 da noite, durante 6 (seis) dias por semana (Antunes, 2020. Pág. 15). Ou seja, há uma jornada de trabalho de 72 (setenta e duas) horas semanais, a qual há uma clara violação do artigo 7º, XIII da CLT, qual seja:  

 

Art. 7º, XIII: duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

 

Nesta lógica, há se de frisar que estes entregadores de comida, tem para si o direito cristalino de receber pelas horas extras além da 8ª diária, 44ª semanal e 220ª mensal, uma vez que que o empregador tem a capacidade de controlar a jornada de trabalho por meio da governança sistêmica pelos algoritmos.

E mais, em uma pesquisa feita pela Aliança Bike sobre os ciclistas que realizam as entregas de aplicativo, realizada em junho de 2019, a partir de entrevistas com 270 entregadores, foi determinado que 57% trabalham todos os dias (de segunda a domingo), sem descansos, nem tampouco intervalos interjornadas e 55% trabalham entre dez a doze horas por dia, sendo que apenas 25% laboram em uma jornada inferior a 8h00 por dia (Antunes, 2020. Pág. 71).

Convêm destacar que muitos desses prestadores de serviços permanecem logados em aplicativos esperando por serviços. Ocorre que esse período é reconhecido como jornada de trabalho e caracteriza-se horas extras e sobreaviso. Neste prisma, é lógico o pensamento que, embora o prestador não esteja realizando entregas, este está à disposição do empregador.

Todavia, embora o Ministério Público do Trabalho já emitiu inúmeros manuais e cartilhas sobre o trabalho análogo à de escravidão e sua prevenção, há uma ausência da fiscalização dos auditores-fiscais do Trabalho, de modo que as jornadas são ultrapassadas do limite e podem, de forma clara, serem consideradas como exaustivas, trazendo riscos à saúde do obreiro e maiores chances de acidentes de trabalho.

Com isso, há de rememorar o artigo 6º da Instrução Normativa 139/2018 que determina que o Trabalho em Condição Análoga à de Escravidão pode ser verificado a partir dos períodos de trabalhos excessivos e exaustivos. Neste prisma, em decorrência das jornadas dos trabalhadores uberizados, as quais ganham o nome de “Sistema 9-9-6” deve ser entendida sob a ótica do artigo 6º da Instrução, de modo que o trabalho em aplicativos que precedem de fiscalização deve ser relacionado aos trabalhados em condição análoga à de escravidão.

 

6.                  CONCLUSÃO

 

Diante de todo o exposto, é cristalino que no Brasil há uma flexibilização dos novos modelos de trabalho, os quais gozam de governança cibernética e, em conjunto, há uma ausência de fiscalização por parte dos Auditores Trabalhistas. Neste prisma, há um aumento de contratação, principalmente após a situação pandêmica, gerando uma exploração dos trabalhadores por aplicativos, em razão das exaustivas jornadas de trabalho e o ínfimo salário percebido.

Outrossim, a venda de um sonho de independência financeira, logo após a erupção da pandemia no Brasil, foi logo cessado com as precarizações laborais, uma vez que os trabalhadores por aplicativos estão vendendo sua mão de obra por pequenas bagatelas, necessitando trabalhar em regime de escalas exaustivas e ainda recebem renda mensal muito inferior ao salário mínimo federal.

Neste diapasão, em pensamento silogístico, a jornada de trabalho exaustiva, sem descansos, pode logo ser entendida como um trabalho análogo à de escravo, ou, escravidão moderna, aquela abarcada por meios telemáticos, à luz do artigo 6º da Instrução Normativa de número 139/2018, combinada com o artigo 6º da Lei 13.467/2017.

Deste modo, o trabalho escravo moderno deve ser reconhecido como tal pelas autoridades competentes, qual seja Ministério Público do Trabalho. Da mesma forma, em vista à ausência de fiscalização, deve este mesmo órgão promover a vistoria e caçar qualquer trabalho escravo, condenando a empresa ao quantum indenizatório.

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Referências

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Beatriz Gebra Mattos

Bacharel em Direito - Marília, SP


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