As relações de consumo e o coronavírus


26/03/2020 às 17h36
Por Gisele Cruz Advocacia

"Dizia-se que os olhos eram as janelas da alma. Agora, as janelas tornaram-se os olhos de nossa alma confinada em corpos que se escondem, isolados e medrosos, buscando ocultar-se de terrível monstro: corona indesejada por monarquias e repúblicas." Ministra Cármen Lúcia

 

 

Atualmente, vivemos em meio a diversas incertezas. Ab initio, o direito tem novos canais de divulgação. Todos os dias são derramadas centenas de notícias falsas nas diversas redes sociais. Além de, desleais profissionais buscando vantagens sobre aqueles que precisam de orientação.

Outra incerteza apareceu nas últimas semanas, parou países, virou nossa rotina e negócios de cabeça para baixo e colocou a economia global em xeque — a pandemia global da covid-19.

Neste cenário tão imprevisível, as relações de consumo também têm uma nova construção e interpretação.

Devemos antes de mais nada, observar os fundamentos e objetivos da República do Brasil, uma vez que almejamos a construção de uma sociedade livre, dinâmica e justa. As partes relacionadas devem observar seus direitos e deveres perante seus pares, e mais, perante toda a sociedade que vive concomitantemente o isolamento social.

Assim, antes de impor seus direitos a qualquer custo, há de se colocar no lugar do outro, e ponderar se aquele direito ultrapassa a ética e o valor social.

No caso das relações consumeristas, que são aquelas regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, o cenário trafega numa incerteza jamais vista, ante a insegurança que toma conta dos contratantes.

Precipuamente, define-se relação de consumo como aquela na qual existem, obrigatoriamente, três elementos: um consumidor, um fornecedor e um produto/serviço que atrele um ao outro.

O conceito de consumidor está definido no art. 2º do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Também é consumidor, por equiparação, a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo (art. 2º, parágrafo único, CDC). E ainda, todas as vítimas do dano causado pelo fato do produto e do serviço (art. 17, CDC); e também todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas de comércio e, obviamente, fazem jus à proteção do contrato (art. 29, CDC).

Uma observação importante a se fazer é que não vamos aqui adentrar na discussão existente entre doutrina e jurisprudência no tocante a aplicação a relação consumerista quando o adquirente é pessoa jurídica. Esse papel fica para o Judiciário, nos casos concretos.

Como fornecedor, caracteriza-se “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”, ante art. 3º do diploma legal já citado. Assim, é fornecedor aquele que oferta produtos ou serviços ao mercado de consumo com habitualidade na qualidade de fabricante, produtora, transformadora, montadora ou ainda, na condição de distribuidora ou simples comerciante.

Produto é “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”, conforme definido no art. 3º, § 1º, do CDC. Já o serviço, “é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”, ante art. 3º, § 2º, da referida lei.

Por óbvio, as atividades descritas no artigo 3º, supra transcrito, não são taxativas, podendo abarcar situações de gratuidade de produtos ou serviços, por exemplo.

Diante de tais características, percebe-se, também, que, ainda que se exerçam as atividades descritas no art. 3º, caso os contratos sejam firmados entre duas pessoas comerciando sem habitualidade, não será aplicado o Código de Defesa do Consumidor. Isto por estar ausente um dos pilares da relação de consumo: o fornecedor.

Outra característica da relação consumerista é a vulnerabilidade do consumidor face ao fornecedor. É dessa vulnerabilidade que se retira a tônica da relação consumerista. Entende-se por vulnerabilidade, a desigualdade do consumidor perante o fornecedor de forma técnica, econômica e fática. É a fragilidade contratual daquele que busca produtos e serviços de empresas que detêm muitas vezes monopólios, oligopólios, que impõem preços e formas de pagamento, sem ao menos informar sobre qualidade, formas de pagamento, ou ainda utilizando a publicidade como gatilhos mentais de atrair o público.

Neste contexto, há de se esclarecer alguns mecanismos de proteção deste consumidor vulnerável neste momento atípico que estamos vivendo.

Cediço que não há vacina para a prevenção de patologia causada pelo vírus Covid-19. Cediço ainda que se deve, seguindo orientação da OMS, como cautela, higienizar as mãos com água e sabão, bem como utilizar o álcool gel. Muita gente ainda, vai além e usa as máscaras de proteção, mesmo que não sejam recomendadas como forma de prevenção.

Acontece que os fornecedores de tais produtos, forçando uma lucratividade alta, tem aumentado o valor de venda, justamente na época em que tais insumos quedam vitais para toda a população. Neste sentido, observa-se uma desproporção na relação de consumo e afronta ao art. 39 do Código Consumerista, que dispõe ser vedado elevar sem justa causa o preço dos produtos.

Por óbvio, tal aumento, em uma análise superficial, não pode ser taxativamente considerado como ilegal. Tudo vai depender do valor de compra do produto, pois também o vendedor não pode ser onerado injustamente; muitas vezes ele apenas está repassando o aumento. Há de constatar a abusividade na elevação de preços, para somente depois tomar uma atitude mais drástica, como uma reclamação perante o Procon ou mesmo ajuizamento de ação judicial.

Outro ponto bastante preocupante é no que tange a passagens aéreas e agências de viagens. Neste caso, pode-se haver desistência e o consumidor tem o direito de reaver o que pagou, sem multa.

A legislação da ANAC, anterior a essa pandemia, previa a devolução do valor integral caso passageiro desistisse em até 24 hs após recebimento do bilhete, desde que a compra ocorresse com sete dias ou mais da data do voo. Se a compra tivesse sido feita por meios eletrônicos, o passageiro teria até sete dias para solicitar o cancelamento, conforme o CDC. A devolução deveria ocorrer em até sete dias a contar do recebimento do cancelamento. Caso o pedido de cancelamento se desse com mais de sete dias da compra, a empresa aérea deveria devolver o valor da passagem, podendo reter de 5 a 20% a título de despesas administrativas.

Com o advento da Medida Provisória 925, de 18 de março de 2020, a regulação da desistência alterou-se. Referida MP, que dispõe sobre medidas emergenciais para aviação brasileira em razão da pandemia da covid-19, permite às empresas aéreas devolver o valor relativo às passagens aéreas em doze meses a contar da data do voo, sem aplicação de multas ou outras penalidades contratuais. A possibilidade de reembolso é válida para passagens emitidas até 31 de dezembro de 2020 e o período de um ano começa a contar a partir da data do voo contratado.

Ainda acerca de passagens aéreas, vê-se que, apesar da solidariedade entre as agências de viagens e as empresas aéreas, as primeiras não respondem por eventuais danos produzidos em função do transporte. Isso porque um dos requisitos exigidos para configurar a solidariedade da agencia de viagem é a aquisição de um pacote de viagem, consoante precedente no STJ, no REsp 758.184/RR. Já as operadoras, atraem a solidariedade.

Outra modalidade de viagem que fica prejudicada é o cruzeiro marítimo. Caso o consumidor optar por cancelar a viagem em função do coronavírus, o entendimento é pelo ressarcimento integral do valor pago, ao argumento de que não houve a utilização do serviço, não havendo portanto custos para a empresa.

Acontece que atualmente, tem havido muitas reclamações de que as empresas fornecedoras dos serviços, não estão respondendo a telefonemas ou pedidos escritos de cancelamento do serviço. Neste caso, percebe-se vício de informação, eis que fere princípios basilares da relação de consumo. O isolamento está sendo prejudicial para todos! A empresa fornecedora deve demonstrar que também seu negócio está sofrendo com essa nova ordem, deve ser aberta ao diálogo e não fugir de suas responsabilidades.

O isolamento social ainda atinge as universidades, escolas e creches. A recente Portaria n. 343/2020 do MEC autoriza, em caráter excepcional, substituir as aulas presenciais em andamento por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19. Tudo, claro, dentro dos limites da legislação em vigor, desde que cumpram os dias letivos e horas aula estabelecidos pelas normas vigentes.

Dessa forma, liberado o ensino a distância, nos moldes da portaria do Ministério da Educação, o que encerra o ensino presencial, há de se rever as mensalidades escolares, buscando então o equilíbrio econômico-financeiro. Ora, a revisão é medida que se impõe, eis que há redução dos custos de manutenção da escola, o que não justifica manter a mensalidade como se tivessem aulas presencialmente. Por óbvio, algumas despesas não diminuem (salário dos professores e auxiliares, impostos, taxas etc). Contudo, como há redução de outras despesas (limpeza, água, luz etc) e a mensalidade é cobrada com base nos custos mensais da escola, a redução na mensalidade é medida que se impõe. Ademais, transpõe muitas despesas extras para a casa do aluno, eis que há um gasto maior com energia elétrica, água, internet; despesas estas que se pagava à escola.

De toda forma, o diálogo entre a direção e os alunos/representantes é a melhor forma de atravessar essa crise sem maiores prejuízos para ambas as partes. Pode-se chegar a um denominador comum e estabelecerem reduções, fazerem concessões, tudo em prol de se manterem as melhores relações.

A mesma ‘matemática’ vale para as academias e clubes, com plano de pagamento anual. A lógica seria calcular o tempo que ficou parado, sem funcionamento, sem a prestação do serviço e recalcular o valor da mensalidade com a redução proporcional no valor a pagar ou, caso já tenha havido o pagamento, abatimento proporcional futuro.

Já no tocante as dívidas, há de se diferenciar aquelas oriundas de uma relação de consumo, daquela advindas de relação civil. Conforme já explanado retro, na relação de consumo, quando há obrigatoriamente o fornecimento de um produto/serviço por um fornecedor a um consumidor, pode-se pleitear a modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fato superveniente que as tornem excessivamente onerosa. É a aplicação da teoria da quebra da base objetiva do contrato, disciplinada no art. 6º, V, do CDC. Pleiteia-se portanto uma flexibilização no contrato, um ajuste na mensalidade, pois o objeto se rompeu, ante a mudança da economia mundial atual.

Neste caso, o pacta sunt servanda dá lugar ao aspecto social, eis que o contrato não é mais um fim em si mesmo. Ora, tanto a fase pré-contratual quanto a pós contratual contamina a execução do contrato. No caso em hipótese, há de se perseguir a boa-fé objetiva e a ética contratual. No cenário que se vive, de isolamento, de estagnação da economia, com uma possível recessão a caminho, o melhor a se fazer é pensar nas pessoas, e conservar as relações contratuais de forma a atender as possibilidades de todos. Pode-se estender os vencimentos das dívidas, dividir em prestações, aliviar a pressão sobre o consumidor, pois é ele quem garante toda a cadeia econômica.

Lado outro, a relação civil, caracterizada como uma relação empresarial, também sofrerá alterações diante do cenário de pandemia e retração econômica. Também ela merece um ajuste, de forma a abrandar as dívidas e faltas de pagamento, o que pode desencadear uma série de perdas em diversas áreas.

A teoria de que o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda) nas relações civis, assim como na consumerista, é relativa. O Código Civil regulou a possibilidade de resolução e revisão de contratos em razão da onerosidade excessiva, adicionando como requisito o fato superveniente ser imprevisível e extraordinário. Assim, a Teoria da Imprevisão permite às partes de um contrato, conjuntamente, rever, alterar, ou extinguir o pacto, dentro dos limites de sua autonomia.

A diferença entre as relações de consumo e aquelas regulada pelo direito civil é o embasamento do diálogo, eis que, nas relações empresariais, as alterações pleiteadas são sustentadas pela teoria da imprevisão. Ademais, em ambas deve haver o bom senso, a boa fé e ética norteando as discussões a estabelecer concordância entre as partes.

Outro setor prejudicado neste momento é no que tange a eventos e festas. Neste caso, a relação de consumo é clara e o consumidor tem o direito de receber o valor pago, uma vez que o evento não ocorreu. Teoricamente, não há que se falar em remuneração quando não há a efetiva prestação do serviço. Contudo, mais uma vez a ponderação deve prevalecer. Questiona-se se o fornecedor, que sofreu outros tantos baques devido a pandemia vai ter o valor para restituir, ou mesmo optando por ação judicial, se esta não vai durar tempo demais... Poderia então se pensar em transportar a festa/evento para nova data. Assim todos sairiam ganhando, ou, na pior das hipóteses, perdendo menos.

Em todo caso, o aumento injustificado de preços de produtos de higiene e limpeza, o impedimento de voar, bem como a não prestação de serviços ante ao fechamento involuntário de certos estabelecimentos, podem trazer prejuízos aos consumidores, os quais devem buscar minimizar prejuízos e perdas perante os fornecedores.

Acontece que, apesar do direito estabelecido em lei, a solidariedade deve nortear as relações, estabelecendo harmonia nas negociações. Todos devem estar abertos a negociar, ainda que não sejam responsáveis pela situação. A conjuntura extraordinária de pandemia mundial exige serenidade, bom senso, boa fé e agilidade em negociar os contratos, visando diminuir os riscos de excessiva judicialização.

Ainda que em lados opostos quando se trata de um contrato de consumo, consumidor e fornecedor estão igualmente expostos à doença. Nesse momento, além de soluções jurídicas, o que se faz necessário é a existência de uma empatia entre todos, que devem se dar conta de que a pandemia enfrentada não conhece fronteiras nem limites.

Desta forma, recomenda-se cultivar o diálogo entre as partes visando uma solução benéfica para ambas, sem olvidar da vulnerabilidade do consumidor, mas também ponderando a real situação econômica das empresas fornecedoras. Em caso de dúvidas ou insegurança acerca dos direitos da relação de consumo, indicado procurar o Procon mais próximo, o qual irá buscar resolver as demandas administrativamente. Se não houver solução de forma extrajudicial, pode-se ajuizar uma ação judicial buscando a solução do conflito, bem como o ressarcimento de possíveis danos.

Ademais, vive-se o momento da história em que a solução para o desafio não será encontrada de forma individual. O único caminho possível é o da empatia, do social, do coletivo, da fraternidade – afinal, todos somos consumidores e vulneráveis ao vírus.

Gisele Nara Coelho de Pinho Cruz - OABMG 83.910

(31) 9 9942.5051

 

 

 

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Gisele Cruz Advocacia

Advogado - Belo Horizonte, MG


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