1. Noções conceituais:
Do ponto de vista jurídico a filiação pode ser conceituada como a relação de parentesco existente entre indivíduos que estão no primeiro grau, em linha reta vinculando uma pessoa àquelas que a conceberam ou a tomaram sob os seus cuidados e responsabilidade, pautada na relação de afeto com o intuito de promover a construção da personalidade e a realização deste sujeito.
Dessa forma, as partes envolvidas nesse contexto, qual sejam, pai/mãe e filho, estabelecem um vínculo jurídico dotado das mais variadas particularidades. É nesse sentido, inclusive, o posicionamento compartilhado pelos respeitáveis doutrinadores Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Silvio Rodrigues.
Isto posto, é possível inferir que o instituto da filiação constitui uma relação jurídica que envolve diversos aspectos, já que pode ser tomada pela perspectiva do filho (filiação); do pai, por meio da paternidade; e da mãe, pela denominada de maternidade. De forma que, tais nuances relacionam diferentes consequências concernentes aos sujeitos que participam de tal relação.
No que concerne ao viés constitucional da filiação, impende destacar, o princípio da igualdade entre os filhos, estatuído no art. 227 §6º da CRFB/1988 e no art. 1596 do CC. Nessa esteira, por meio deste princípio, é vedado o estabelecimento de distinção acerca do tipo de filiação, sobretudo, no que se refere ao filho ser biológico ou não.
Sendo assim, cumpre asseverar que cada indivíduo pode constituir a filiação através de vínculos biológicos, da adoção ou até mesmo pelo aspecto
afetivo puro e simples da condição paterno-filial. De forma que, independente do tipo de filiação, o tratamento jurídico dispensado sempre será o mesmo.
Portanto, aduz-se que a relação de filiação é baseada não apenas pelo vínculo consanguíneo, como também, por meio de critérios socioafetivos, sob pena de o aspecto meramente biológico e natural não dar conta de albergar o fenômeno da filiação na nossa sociedade contemporânea e de não estar consentâneo com a vertente garantista-constitucional da CRFB/1988.
Tal concepção pode ser ilustrada com o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida e a possibilidade de participação de terceiros na determinação da filiação, o que trouxe, pois, formas completamente inovadoras desta. Assim, tal contexto fez urgir a necessidade de reformular e estabelecer de forma mais justa e adequada à realidade social os limites e até mesmo a própria noção de paternidade e maternidade.
Finalmente, a partir de tais considerações, é de se destacar que o instituto da filiação tem como principais premissas: a não discriminação de todo e qualquer tipo de filho e a sua proteção integral, independentemente de sua origem; ser voltada para a realização humana e a sua dignidade; ser despatrimonializada, superando a questão meramente sucessória.
2.Prova da Filiação
Nos termos do que preceitua o art. 1603 do CC a filiação deve ser provada por meio da certidão do termo do nascimento registrada no Registro Civil.
Contudo, cumpre mencionar que, a interpretação de tal dispositivo deve ser feita partindo do pressuposto que filiação também compreende a socioafetiva, tendo em vista o que dispõe o art. 1593 do CC, ao considerar a existência de relações de parentesco pautada em origem distinta da consanguinidade, o que abre espaço, pois, para a noção de parentesco socioafetivo.
No que diz respeito ao estatuído no art. 1604 do CC: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro do nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”, depreende-se que o mesmo permite a propositura da ação vindicatória de filho por terceiro, na hipótese de erro ou falsidade registral. Porém, é de se ressalvar que, não há aplicabilidade de tal dispositivo nos casos de filiação socioafetiva.
Desse modo, conclui-se que, a regra é que não haja modificação do registro de nascimento, inclusive, quando houver socioafetividade, ao passo que, a exceção é que o mesmo pode ser alterado nas situações de erro ou falsidade de registro, conforme já evidenciado.
Já na ausência ou defeito do termo de nascimento, a filiação pode ser comprovada por qualquer meio admitido em direito, consoante o art. 1605, caput, do CC). Ademais, os incisos do referido dispositivo elencam as denominadas provas supletivas de filiação, a saber: I- prova por escrito, oriunda dos pais, conjunta ou separadamente; II- existência de presunções relativas resultantes de fatos já certos, inclusive pela posse de estado de filhos, isto é, em razão do filho conviver a muito tempo com os pretensos pais, podendo ser aplicado, nesse caso, a parentalidade socioafetiva.
Por último, tem-se o art. 1606 do CC, estatuindo que a ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto o mesmo for vivo, tratando-se, pois, de ação personalíssima. Porém, esta pode ser transmitida aos herdeiros se à época do óbito o filho for menor ou incapaz, aqui se tem a ação post mortem.
3. A filiação decorrente de gestação de útero alheio (“barriga de aluguel”)
A gestação em útero alheio consiste em técnica adotada pela medicina a fim de que uma mulher que não tem condições biológicas de gestar possa ter um filho gestado em útero de outra mulher, decorrente de fecundação com o óvulo daquela. De modo que a mãe que carrega o bebê, abre mão da sua maternidade em favor da pessoa que cedeu o material biológico, isto é, da mãe biológica.
De acordo com os sábios ensinamentos de Flávio Tartuce, no que concerne ao termo “barriga de aluguel”, insta salientar que, este não é dos mais adequados, tendo em vista que tal procedimento, de acordo com a Resolução 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina só pode se dar a título gratuito. Dessa maneira, o termo “barriga de aluguel” afigura-se inapropriado, sendo, pois, mais coerente chamar tal gestação de substituição de “comodato de barriga”.
Críticas à parte acerca do termo popularmente empregado para denominar tal técnica, impende mencionar que, ainda nos termos da referida resolução, o empréstimo provisório do útero é apenas permitido na seara familiar até o segundo grau de parentesco.
Isto posto, a doadora do material genético é a genetrix, a mãe biológica, ao passo que, a mulher que gesta é chamada gestatrix. Cumpre mencionar também que, consoante o entendimento do Enunciado n.129 CJF/STJ que cristaliza o posicionamento da doutrina majoritária, a mãe será aquela, portanto, que forneceu o material genético (genetrix).
Quanto à possibilidade de mulheres que não são parentes se valerem da técnica da gestação por substituição cumulada com a inseminação através de material genético de terceiro, restou esta admissível com a louvável decisão do STF de reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar equiparada à união estável.
4.Critérios determinantes da filiação (legal, biológico e afetivo)
Em que pese a classificação entre os tipos de filiação, cumpre destacar que, a mesma tem fins meramente didáticos para que se compreenda quais vínculos constituem a filiação, tendo em vista que, conforme já mencionado, é vedado expressamente pela nossa Constituição Federal a distinção entre as formas de filiação.
Dessa maneira, os doutrinadores costumam dividir a filiação em jurídica ou legal, biológica e socioafetiva, que, por sua vez, serão abordadas adiante.
Assim, tem-se a filiação jurídica que há de ser compreendida conforme aquelas situações que são estatuídas no ordenamento jurídico. Segundo Gonçalves é traduzida pela presunção jurídica da paternidade, pater is est quem justae nuptiae demonstrant, significando que é presumida a paternidade do marido no caso de filho gerado por mulher casada.
Dessa maneira, tal presunção está prevista no artigo 1.597 do Código Civil e elenca as hipóteses em que se presume que os filhos são concebidos na constância do casamento, quais sejam:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Assim, os incisos I e II preveem a presunção no caso de procriação natural, sem a utilização de técnicas de reprodução assistida. No inciso I, o artigo estabelece que os filhos nascidos pelo menos 6 (seis) meses após o casamento são presumidos concebidos na constância do casamento. Já na hipótese do inciso II é considerado o prazo de 10 meses após a dissolução do casamento, se nesse prazo a mulher der a luz a um filho será considerado concebido na constância do casamento.
No que diz respeito aos incisos III, IV e V estes são relacionados à reprodução assistida. De forma que, os incisos III e IV são espécies de reprodução homóloga, em que se utiliza na fecundação o sêmen do marido da mãe. No caso do inciso III, cumpre asseverar que, a I Jornada de Direito Civil elaborou enunciado n. 106 no sentido de que a fecundação artificial homóloga pode ser feita mesmo que o marido já tenha falecido, mas desde que a mulher esteja em condição de viúva e que o marido tenha deixado autorização por escrito permitindo a utilização do seu material genético após a sua morte. Quanto ao inciso IV a fecundação é feita por fertilização in vitro, que implantam no útero da mãe os embriões excedentários, isto é, aquele que é fecundado fora do corpo e não é introduzido prontamente na mulher, sendo armazenado por técnicas especiais.
Já o inciso V a fecundação é feita por inseminação artificial heteróloga, sendo que o material genético utilizado para fecundar a mulher não é do marido, e sim de terceiro, que geralmente é um doador anônimo. Contudo, para tanto, é necessária a autorização do cônjuge.
No que tange à confissão de adultério da mulher, nem mesmo esta tem o condão de afastar a presunção pater is est, nos termos do art. 1.600 do Código Civil: “não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade.”,
Em relação à maternidade, esta não se presume, pois mater seemper certa est, isto é, a mãe é sempre certa, pois há claras manifestações físicas de que ela está grávida.
Vale dizer ainda, que no ato do registro de nascimento, para que se estabeleça a presunção, deve ser apresentada a certidão de casamento entre o pai e a mãe da criança. A presunção decorre imperativamente da lei, porém ela é relativa- iuris tantun- admitindo, pois, prova em contrário.
No que concerne à filiação biológica ela está relacionada com a consanguinidade, podendo se dar de forma natural ou não. Assim é que, na filiação biológica natural o filho é concebido por meio de uma relação sexual entre os pais, ao passo que, na filiação biológica não natural é concebido em decorrência do emprego de técnica de fertilização assistida homóloga.
O critério biológico ganhou maior notoriedade com a descoberta do exame de DNA. De acordo com os ensinamentos de Venosa, tal exame permite excluir com certeza a paternidade de um indivíduo com relação a outro e afirmar a paternidade com elevado grau de probabilidade.
Em face dessa descoberta, passou-se a utilizar o exame de DNA como perícia para as ações de investigação de paternidade. A esse respeito o STJ editou a Súmula nº 301, na qual: “a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA, em ação investigatória, induz presunção juris tantum de paternidade”. Ademais, ainda nesse sentido, o artigo 2.º-A, parágrafo único da Lei 8.560 de 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, prevê que “a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”.
Porém, ainda que a biotecnologia avançada seja capaz de afirmar com elevado grau de acerto a paternidade, importante destacar que o mero vínculo genético não é suficiente para determinar a verdadeira filiação. Isto porque, ela pode se dar também por meio da afetividade, como será adiante demonstrado.
Assim, a filiação socioafetiva surge como consequência do princípio da afetividade como direito fundamental na Constituição Federal de 1988, quando a família afetiva foi reconhecida, e desvinculou-se do vínculo biológico. Nessa esteira, a filiação socioafetiva é pautada na afetividade, sendo demonstrada através do vínculo de afeto, uma relação em que o amor, o carinho e a felicidade recíproca são os pilares, e não há necessariamente vínculo biológico entre pai e filho.
Cumpre salientar ainda, que o artigo 1.593 do Código civil, dispõe que: “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.” Tendo, pois, o Código Civil de 2002, na esteira constitucional, albergado outros tipos de paternidade que não só a biológica, possibilitando novos categorias de filiação, como filiação socioafetiva.
Nesta senda, são os Enunciados n. 103 e 108 da I Jornada de Direito Civil, realizada de 11 a 13 de setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF):
103 - Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
108 – Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea [sic] e também a socioafetiva.
De forma que, o Enunciado n. 103 reconhece que as outras formas de parentesco de que trata o artigo 1.593 do CC são aqueles que vão além da consanguinidade e da adoção, bem como, contempla aqueles em que o parentesco resulta de técnicas de reprodução assistida heteróloga (em que um dos pais não contribui com seu material genético) e no parentesco fundado da posse do estado de filho, a paternidade socioafetiva. Quanto ao Enunciado n. 108, o mesmo diz que de acordo com o artigo 1.593 que tanto a filiação consanguínea como a socioafetiva serão provadas pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.
No que tange a posse do estado de filho, o art. 1.593 do CC dispõe: “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”.
De forma que, a jurisprudência, especialmente a do Rio Grande do Sul e a dourtrina, vem entendendo que para que se constitua a posse do estado de filho são necessários três elementos essenciais: nome (nominatio), trato (tractatus) e fama (reputatio). O primeiro elemento, consiste no filho carregar o nome do pai, o segundo, significa o filho ser tratado como tal pelo pai, que lhe dá amor, carinho, alimentação, enfim, tudo que ele necessita para viver. Já o último elemento, quer dizer a qualidade de filho perante a sociedade.
Mesmo não havendo expressa determinação legal nesse sentido no ordenamento jurídico brasileiro, a doutrina tal como a jurisprudência é cristalina quanto a possibilidade de aceitação e reconhecimento da paternidade socioafetiva, ainda que falte algum dos três elementos, visto que deve haver um estudo de cada caso concreto.
Deste modo, torna-se impensável a ação negatória de paternidade, por exemplo, quando um homem registra como sendo seu filho, o filho de sua companheira, mesmo sabendo não ser pai biológico da criança, e depois que termina o relacionamento da companheira, resolve desconstituir essa paternidade. Diante dos fatos, não é cabível a ação de revogabilidade do reconhecimento da paternidade, vez que este foi voluntário, não teve vícios, e a paternidade socioafetiva já está estabelecida. Somente é possível desconstituir o vínculo se o autor da demanda provar que houve vício em seu consentimento para o registro.
Assim, nos tribunais brasileiros a paternidade socioafetiva tem sido cada vez mais prestigiada, sendo utilizada para que as situações em que a paternidade está constituída no tempo, não seja desfeita pela não relação genética entre pai e filho, fazendo com que a paternidade passe de um estágio no qual os vínculos biológicos eram predominantes, para aquele em que se valoriza a verdadeira paternidade, fincada nos vínculos de afeto.
Destarte, mesmo que o vínculo não seja genético, a filiação socioafetiva tem proteção jurídica, e é detentora dos mesmos direitos e obrigações da filiação biológica, produz efeitos tantos pessoais, como patrimoniais. Isso ocorre,, uma vez que a Constituição Federal garante a igualdade entre todas as espécies de filiação, não importa se o vínculo seja consanguíneo, jurídico ou afetivo.