A Natureza da Ação Penal do Crime de Lesão Corporal no Âmbito da Lei 11.340/2006 - Lei “Maria da Penha”


22/02/2017 às 23h31
Por Thiago Véras

RESUMO: O artigo intitulado A Natureza da Ação Penal do Crime de Lesão Corporal no Âmbito da Lei 11.340/2006 - Lei “Maria da Penha” tem por objetivo discutir os antecedentes históricos no combate a violência doméstica, destacando as divergências doutrinárias e conflitos normativos no tocante à natureza da ação penal, em específico do crime de lesão corporal, sob a ótica Constitucional e o posicionamento do STJ e STF.

PALAVRAS-CHAVE: Lei “Maria da Penha”, Mulher, Violência Doméstica, Lesão Corporal, natureza da ação penal.

ABSTRACT: The article entitled The Nature of Criminal Prosecution for Crimes of Personal Injury in the Field of Law 11.340/2006 – “Maria da Penha” Law, aims to discuss the historical background in fighting domestic violence, emphasizing the doctrinal divergences and normative conflicts regarding the nature of criminal prosecution, specifically for the crime of personal injury, under the Constitutional perspective and the position of STJ and STF.

KEYWORDS: “Maria da Penha” Law, Women, Domestic Violence, Personal Injury, nature of criminal prosecution.

INTRODUÇÃO

O Brasil, até o ano de 2006, não possuía legislação específica tratando da violência doméstica contra a mulher. Tal violência tinha seus efeitos, como lesões corporais, por exemplo, considerados como crimes de natureza leve que, por quase uma década, permaneceram regidos pela Lei 9.099/95, que criou os juizados especiais criminas com a finalidade de instruir e julgar infrações penais de menor potencial ofensivo, condicionando-as à representação da vítima.

Ante a ineficácia desta lei, frente à violência sofrida pela mulher no âmbito doméstico, em suma, foi criada a Lei Maria da Penha (11.340/2006) para coibir e prevenir estes atos de violência. Ocorre que com o advento da legislação específica sobre o tema, uma série de conflitos entre os mencionados diplomas legais passaram a existir, sendo necessária a intervenção do Supremo Tribunal Federal para conferir interpretação conforme a Constituição Federal, afastando, totalmente, a aplicação da Lei. 9.099/95 aos crimes cometidos no âmbito doméstico, principalmente os de lesões corporais. Interpretações estas, que serão discutidas no desenvolvimento do presente trabalho.

1. Violência Doméstica Contra a Mulher

1.1 Conceito

Tentando conceituar a violência doméstica e familiar, vale destacar o conceito dado por Stela Valéria Soares de Farias Cavalvanti, em seu livro Violência Doméstica – Análise da Lei “Maria da Penha”, Nº 11.340/06, 3ª edição:

A violência doméstica é aquela que acontece dentro da família, ou seja, nas relações entre os membros da comunidade familiar, formada por vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha, etc.) ou civil (marido, sogra, padrasto e outros), por afinidade (por exemplo, o primo ou tio do marido) ou afetividade (amigo ou amiga que morem na mesma casa). [...] é qualquer ação ou conduta cometida por familiares ou pessoas que vivem na mesma casa e que cause morte, dano, sofrimento físico ou psicológico à mulher. (2010, p. 50)

Neste entendimento se observa que a violência contra a mulher pode assumir diversas formas, não se restringindo apenas à violência física, vai além, podendo ser psicológica, sexual, moral, patrimonial, espiritual e até institucional. Estas delimitações, ou formas de manifestação são temas recorrentes nas discussões internacionais, e já foram amplamente pontuados na “Conferência de Belém do Pará” (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), na “Conferência de Beijing”, entre outras.

Ao contrário do que se imagina, tal violência, não possui fronteiras delimitadas, nichos de manifestação. É uma violência que se permeia, como já dito, em todos os níveis sociais, culturais, nas mais diversas comunidades e países. Está longe de ser um mau endêmico de países subdesenvolvidos e em muitas sociedades nem se considera como violência muitas das atrocidades cometidas contra mulheres, como em países da África, ou do oriente médio, nos quais a dignidade feminina é subjugar-se à vontade masculina seja patriarcal ou matrimonial.

1.2 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - “Convenção de Belém do Pará”

Figura a Convenção de Belém do Pará como o primeiro tratado internacional de direitos humanos a reconhecer a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado, que “transcende todos os setores da sociedade, independentemente de sua classe, raça ou grupo étnico, níveis de salário, cultura, nível educacional, idade ou religião”. Firmada no Brasil em 09 de julho de 1994, ratificada e internalizada à legislação pátria no Decreto Legislativo, nº 107, entrando em vigor em 03 de março de 1995, promulgada pelo Decreto nº 1.973, 1º de agosto de 1996.

Em seu preâmbulo, a Convenção destaca que a violência contra a mulher “constitui uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”, é uma “ofensa à dignidade humana” e “uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens”.

Ante esta situação, todos os países signatários da Convenção de Belém do Pará, acordaram em adotar políticas destinadas a prevenir e erradicar a violência contra a mulher, estabelecendo no art. 7º do referido tratado, os deveres de incluir na legislação interna normas penais, civis e administrativas necessárias para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra mulher. Ou ainda, modificar leis e regulamentos vigentes, práticas jurídicas, ou costumeiras que suportem a persistência ou tolerância da violência contra a mulher, devendo estabelecer procedimentos legais justos e eficazes para a mulher que tenha sido vítima de violência.

2. O Delito da Violência Doméstica sob a ótica do direito brasileiro

Faz-se necessário, neste capitulo, uma abordagem mais ampla dos delitos da violência doméstica, apresentando a evolução da legislação brasileira no sentido de proteger as mulheres da violência sofrida no ambiente doméstico para, então, nos atermos à discussão sobre os crimes de Lesão Corporal no contexto em questão.

2.1 Manto Constitucional

Segundo o Ministro Luiz Fux, em seu voto na ADI 4424/DF, em uma abordagem pós-positivista da nossa Lei Maior, cabe ao Estado estabelecer políticas de ações afirmativas com o intuito de preservar os direitos fundamentais, em específico o Dever de Proteção previsto na Constituição, sendo que estas políticas também se desenvolvem por medidas de caráter criminal. Face a este dever, a Carta Magna legitima o Direito Penal, conferindo-lhe status de guardião dos bens jurídicos mais valiosos do ordenamento, para efetivamente conferir condições ao adequado desenvolvimento da dignidade humana, corroborando com o principio da proibição da proteção deficiente.

Espera-se de uma constituição que assegura a dignidade humana – conforme artigo 1º, terceiro inciso – e que estabelece o dever estatal de assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, a criação de meios para conter a violência no seio destas relações familiares, senão vejamos:

Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando, mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Porém, mesmo tendo previsão constitucional, esta proteção não se coaduna à realidade brasileira, pois se mostra assombrosa a discriminação e subjugação da mulher, fazendo parte da cultura nacional a superioridade masculina. Realidade que é fruto de problemas sociais e econômicos, como desigualdades sociais, má distribuição de riquezas, desemprego, educação deficiente, entre outros.

Destarte, ainda que haja todas esta deficiência de proteção do Estado, foi a Constituição de 1988 que trouxe, mesmo que tardiamente, grandes mudanças, iniciando conquistas de direitos civis, políticos e majorando as medidas de proteção estatais às mulheres. O Estado saiu da condição de mero espectador assumindo o dever de promover ações de proteção e repressão à violência doméstica, priorizando e salvaguardando os direitos humanos, principalmente no tocante à sua dignidade.

A dignidade humana foi erigida pela Constituição Federal de 1988 a uma norma-princípio, dotada de cogência e força vinculante em relação ao poder público e aos particulares. Por esse motivo a ordem jurídica, o Estado e os particulares devem respeitá-la e garanti-la. [...] O constituinte não se preocupou apenas com a positivação deste “valor fonte” do pensamento ocidental. Buscou acima de tudo estruturar a dignidade humana de forma a lhe atribuir plena normatividade, projetando-as por todo o sistema político, jurídico e social instituído. (CAVALCANTI, 2010, p. 252)

Ainda na concepção de Cavalcanti (2009, p. 252) toda a norma delimitadora de direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata, nos termos do art. 5º, parágrafo primeiro da Constituição, firmando como suporte axiológico ao sistema jurídico nacional o principio da igualdade e os direitos fundamentais que dão embasamento às exigências de justiça e valores éticos, integrando o rol de cláusulas pétreas, restando amplamente protegidos.

É neste sentido, guerreando-se no rol de direitos humanos consagrados na Constituição, principalmente nos destinados à proteção da mulher, que se busca proteger o valor do princípio da igualdade, respeitando-se a diversidade que deve ser vivenciada com proporcionalidade, equivalência e não nivelada pela superioridade ou inferioridade de gêneros. O direito de igualdade passou a demandar, dentro deste contexto, uma lei específica destinada a proteção às mulheres vítimas da violência doméstica, do contrário não haveria como se falar em igualdade e democracia.

A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (Untermassverbot). Longe de afrontar o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, da Constituição), a Lei 11.340/06 estabelece mecanismos de equiparação entre os sexos, em legítima discriminação positiva que busca, em última análise, corrigir um grave problema social. [...] Isso porque somente é possível tratar desigualmente os desiguais na exata medida dessa desigualdade. (ADI 4424/DF, v. informativo 654 STF)

A partir dessa imperiosa necessidade, o Brasil iniciou um processo, um tanto quanto longo e moroso, de criação de mecanismos de combates aos delitos cometidos contra a mulher no âmbito doméstico, que passaremos a abordar.

2.2 A Lei nº 9.099/1995

Como já exposto, o Brasil, iniciou tardiamente a busca pelos mecanismos de proteção a mulher. Até o ano de 2006, não havia no ordenamento jurídico pátrio legislação específica para combater a violência doméstica. As mulheres vítimas desta violência se valiam dos Códigos Penal e Civil, e legislações esparsas para salvaguardar seus direitos. No tocante às agressões sofridas pela mulher, como as lesões daí resultantes eram, em sua maioria, tidas como de natureza leve, tais crimes ficavam sobre a égide da Lei 9.099/95 a partir de seu advento.

A Constituição Federal previa em seu art. 98, I, a criação dos Juizados Especiais competentes para conciliação e julgamento de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo. Por esta razão, em 1995, publicou-se a Lei nº 9.099, que delimitou a infração de menor potencial ofensivo, determinando o rito processual e regras para a transação penal. Em seu artigo 61, temos a definição das infrações penais de menor potencial ofensivo:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

Desta forma, todo e qualquer crime ou contravenção cuja pena máxima não supere dois anos, passou a ser de competência dos Juizados Especiais Criminais, mesmo que possuam rito processual especial. O que engloba, também, a persecução penal dos crimes de lesões corporais leves, previstos no art. 129 do Código Penal, que por força da Lei dos Juizados Especiais (art. 88) passaram a depender de representação da vítima contra seu ofensor.

Contudo, apesar de possuir louváveis méritos em situações diversas, a aplicação da Lei 9.099/95 a mulheres vítimas da violência doméstica, demonstrou não ser muito eficaz, pois evidenciou-se a impunidade e baixa repressão aos agressores, mostrando-se falha e insuficiente para solucionar a problemática das relações familiares violentas, principalmente por não atentar a particularidade deste tipo de agressão familiar, generalizando-a como previsto no tipo penal.

O componente de gênero e a particularidade de um relacionamento continuado de violência intra-familiar (sic), recepcionando, linearmente, assim, não somente a violência esporádica e eventual entre desconhecidos na via pública, como também a agressão que subjuga a mulher na forma cotidiana no espaço provado. (LAVORENTI, 2009, p. 203)

Algumas correntes doutrinárias entendem que a aplicação da lei em comento acaba por banalizar a violência doméstica sofrida pelas mulheres, com os argumentos de que, na maioria das vezes, os casos que chegavam a via contenciosa nos juizados especiais acabavam em uma conciliação, oferta de cestas básicas pelo agressor ou uma prestação leve de serviços à comunidade, o que desanimava a mulher a representar seu companheiro ou marido, reforçando a impunidade dos agressores.

Neste sentido, temos o posicionamento doutrinário a seguir:

O grau de ineficácia da referida lei revelava o paradoxo de o Estado romper com a clássica dicotomia público-privado, de forma a dar visibilidade a violações que ocorrem no domínio privado, para então, devolver a este mesmo domínio, so o manto da banalização, em que o agressor é condenado a pagar à vitima uma cesta básica ou meio fogão ou meia geladeira [...] Os casos de violência doméstica ora eram vistos como mera ‘querela doméstica’, ora como reflexo de ato de ‘vingança ou implicância da vítima’, ora decorrentes da culpabilidade própria da vítima, no perverso jogo de que a mulher teria merecido, por seu comportamento, resposta violenta. (PIOVESAN, 2009, p. 233)

Ante esta divergência de entendimentos e depois de ampla mobilização social, a violência doméstica, especificamente na figura da lesão corporal, foi estabelecida como crime, pela primeira vez, em 2004, pela Lei nº 10.886, diferenciando-a das demais lesões corporais elencadas sem, todavia, estabelecê-la como tipo criminal autônomo.

2.3 Lei nº 10.886/2004

Esta lei incorporou ao Código Penal, no art. 129, que trata das lesões corporais, os parágrafos 9º e 10º que prelecionam a violência praticada no âmbito das relações familiares, estabelecendo as figuras de crime qualificado e causa de aumento, respectivamente, fixando a pena em abstrato para o delito entre seis meses e um ano, com causa de aumento de um terço. Verifica-se, portanto, que mesmo criando a figura típica da lesão corporal dentro das relações familiares, ainda não se afastou a aplicação da Lei nº 9.099/95 com relação as lesões de natureza leve.

Cumpre destacar a redação dada pela referida lei ao art. 129 do CPB:

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

[...]

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).

Mais uma vez, segundo parte da doutrina, o legislador não foi consistente na criação de medidas assecuratórias dos direitos femininos de integridade e dignidade física e moral. Esta lei se mostrou praticamente inócua contra a violência doméstica, vista a modesta alteração na pena mínima aplicada ao delito de três para seis meses, ainda de menor potencial ofensivo, mantendo a competência dos juizados especiais.

Talvez, a única vantagem havida seja com relação ação penal, pela figura qualificadora do crime de lesão corporal prevista no § 9º que, há controvérsias, passou a ser de natureza pública incondicionada. Pois a Lei 9.099/95, em seu art. 88, estabelece que a ação penal nos crimes de lesão corporal leve (caput do art. 129) e lesões culposas (§ 6º do mesmo artigo) dependerá de representação da vítima, excluindo, assim, as formas qualificadas do citado crime, principal ponto a ser debatido neste trabalho.

De toda sorte, afirma-se que as Leis nº 9.099/95 e 10.886/2004 foram inovadoras, e primordiais para a evolução da legislação sobre o tema, mas não se mostraram capazes de responder aos anseios da população e solucionar os conflitos causados pela violência doméstica. Fazendo-se imperiosa a criação de lei mais ampla, que tipificasse o delito de forma autônoma, retirasse dos juizados a competência de processo e julgamento da violência doméstica e familiar, sanando, quiçá, erradicando esta mazela social.

2.4 Lei nº 11.340/2006 – “Lei Maria da Penha”

Publicada em 07 de agosto de 2006, apelidada de “Lei Maria da Penha”, trouxe ao ordenamento jurídico mecanismos eficazes para combater a violência doméstica. Alterando o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, entre outras medidas que vieram a reforçar o dever constitucional do Estado de garantir a igualdade, a dignidade humana e também os direitos fundamentais, voltadas para as Mulheres vítimas da violência. Em suas disposições preliminares prevê:

Art. 1º. Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispões sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica familiar.

Entretanto, alguns doutrinadores entendem que esta lei se faz redundante ao elencar em suas disposições preliminares (Título I da Lei) todos direitos fundamentais já estabelecidos pela Constituição, apesar dos índices alarmantes da violência doméstica no Brasil, ainda existentes mesmo com todo este aparato normativo, tachado como “redundante”. Para Nuccci (1998, p. 373) “o óbvio não precisa constar em lei, ainda mais se está dito, em termos mais adequados, pelo texto constitucional de maneira expressa e, identicamente, em convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil, em plena vigência”.

De forma contrária, explicitando as razões desta suposta obviedade, destaca-se o posicionamento de Helena Omena Lopes de Faria e Mônica de Melo.

[...] é inegável, historicamente, que a construção legal e conceitual dos direitos humanos se deu, inicialmente, com a exclusão da mulher. Embora os principais documentos internacionais de direitos humanos e praticamente todas as Constituições da era moderna proclamem a igualdade de todos, essa igualdade, infelizmente, continua sendo compreendida em seu aspecto formal e estamos ainda linde de alcançar a igualdade real, substancial entre mulheres e homens [...] (FARIA; MELO, 2006, p. 861)

3. Ação Penal

Apresentadas as generalidades das normas aplicadas à violência doméstica (Lei nº 9.099/95 e Lei. 11.340/06), urge adentrarmos no campo processual da ação penal. O enfoque desta pesquisa circunda os crimes de lesões corporais praticados contra mulher no ambiente doméstico, (art. 129, §9º do CPB) e diante do conflito das normas apresentadas, especialmente quanto à natureza da ação, cabe abordarmos, pontualmente, tais conflitos apresentando as principais correntes doutrinárias e os posicionamentos jurisprudenciais.

3.1 Natureza da Ação Penal antes da Lei. nº 11.340/2006

Até o advento da Lei “Maria da Penha”, como já dito, as ações penais dos crimes de lesão corporal eram de competência dos Juizados Especiais Criminais. A Lei 9.099/95, estabeleceu em seu art. 61 o delito de menor potencial ofensivo e trouxe as regras do procedimento sumaríssimo, transação penal e suspensão do processo.

Entretanto, excluíam-se da competência dos juizados, os delitos com rito processual especial, mesmo com pena máxima não superior a dois anos. Esta situação veio a mudar com a promulgação da Lei 11.313/2006, que afastou, por completo, a vedação da aplicação do procedimento sumaríssimo, às referidas infrações, ou seja, qualquer delito com pena máxima não superior a dois anos, a partir da vigência desta lei, passou a ser de competência dos juizados criminais. Desta forma, até entrar em vigor a Lei 11.340/2006, a lesão corporal contra a mulher no âmbito familiar, era tido como delito de menor potencial ofensivo, ao qual era aplicado o rito da Lei 9.099/95.

Infere-se então, que fixar a competência destes crimes aos juizados especiais, utilizando-se, essencialmente, do critério da pena máxima não superior a dois anos, afasta a objetividade, vez que se deveria levar em conta o bem a ser tutelado, o caso em concreto, a circunstância da ocorrência do delito. Esta interpretação consiste em um modelo biomédico, clínico, meramente físico da lesão corporal e não em um modelo social, que observa a extensão das lesões, as consequências da violência, deixando de lado a gravidade objetiva do danos causados.

Todavia verifica-se um grande lapso temporal entre as datas de publicação das Leis 9.099/95, 11.313/2006 e 11.340/06. Neste intervalo, desde 1995, a lesão corporal sofrida pela mulher no ambiente doméstico, em nada se diferenciava das demais lesões corporais, processada, portanto, no rito sumaríssimo. Diante de grandes apelos sociais, os legisladores brasileiros, editaram a Lei 10.886/04, que incluiu ao art. 129, do código penal, os parágrafos 9º e 10º, trazendo uma causa de aumento neste e uma figura qualificadora naquele, discussão já apresentada no capítulo 2.3.

Em suma, o legislador ao editar esta, buscou acalentar os anseios populares de maior proteção à mulher vítima de violências. Porém, os novos parágrafos do art. 129, na prática, em nada mudaram a situação. O crime de lesões corporais apenas passou a ter uma figura qualificadora e uma causa de aumento, mas não foi excluído da competência dos juizados e da aplicação do rito sumaríssimo, pois não se alterou a pena máxima culminada ao delito.

Ante o exposto, cabe-nos apresentar a ação penal nos crimes de lesões corporais, sob a égide da Lei 9.099/95, visto que somente após a Lei Maria da Penha se pôde falar em vedação de sua aplicação.

A Lei dos juizados, prevê em seu artigo 62, que o processo dar-se-á pelos critérios da informalidade, oralidade, economia processual e celeridade, com o objetivo de reparar os danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, no lugar desta, usa-se a pena restritiva de direitos e/ou multa, e ainda a transação penal e a suspensão do processo. A corroborar com insegurança feminina, além desta informalidade do rito e das penas aplicadas, a ação penal, neste contexto, é pública condicionada à representação, na inteligência do art. 88.

Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

Salienta-se que se não fosse o art. 88 da Lei 9.099/95, o crime capitulado no art. 129 do CPB, teria natureza pública incondicionada, considerando que quando a lei não menciona qual a natureza da ação penal do delito, a regra é pública incondicionada, coforme art. 100, § 1º, do CPB.

Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.

Assim, a mulher vítima da violência doméstica, precisa procurar a autoridade policial que lavrará termo circunstanciado de ocorrência e encaminhará ao juizado especial criminal, o respectivo TCO, agressor e vítima, para que se realize a audiência preliminar. Nesta audiência, se tentará a composição dos danos cíveis e apresentar-se-á a proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade. Não obtida a composição dos danos, a ofendida, poderá oferecer oralmente a representação em audiência, ou em outro momento desde que no prazo previsto em lei, de 06 (seis) meses, sob pena de decadência do direito.

Ora, vê-se que tal situação é um tanto quanto absurda, pois a mulher agredida, além de se sujeitar a procurar a autoridade policial, fazer o exame de corpo de delito, precisa em audiência, frente a frente com seu agressor, familiar, na maioria das vezes, cônjuge, oferecer a representação para que o processo criminal siga em frente. No entendimento de Cavalcanti (2010, p. 186) “a mulher vítima da violência doméstica, em geral, convive com o agressor e não quer uma indenização por danos, mas uma medida capaz de acabar com a violência e garantir sua segurança.”. Além disso, como mais um princípio do rito sumaríssimo, a proposta de conciliação precisa ser acolhida por ambas as partes, vítima e agressor. Não aceitando a conciliação, o agressor, pode aceitar a transação penal, sem participação da vítima, que resulta no pagamento de cestas básicas, algum bem de pequeno valor oferecido à vítima, ou prestação de serviços à comunidade.

A não obtenção da conciliação acaba resultando na renúncia tácita da representação, pois analisado as estatísticas dos juizados, era muito grande o número de arquivamentos dos processos. A possibilidade da transação penal, sem os danos a oriundos da culpabilidade, assim como a suspensão condicional do processo, excluíam a participação da vítima, o que lhes gerava um profundo sentimento de frustração e impunidade. Ainda na concepção de Cavalcanti:

A consequência dessa formulação que exclui o paradigma de gênero tem sido principalmente: (a) a banalização da violência doméstica; (b) a completa inobservância da participação da vítima e dos seus direitos e (c) o arquivamento maciço dos autos operados pela renúncia do direito da vítima de representar criminalmente. A proposta despenalizante dos juizados especiais criminais é positiva na perspectiva do autor do fato e negativa na perspectiva da vítima de violência doméstica. (2010, p. 182).

Assim, na realidade “pré Lei Maria da Penha”, a ação penal do crime previsto no art. 129, § 9º, CPB, tem natureza pública condicionada à representação. O que se demonstrou pouco eficaz no combate a violência doméstica, fazendo-se necessárias novas medidas para coibir esta prática. Após, convenções internacionais, incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos e dignidade da mulher, criou-se a Lei 11.340/06, que modificou em tese a natureza da ação penal, pois, em coexistência com a Lei 9.099/95, surgiram conflitos entre dispositivos das normas, e divergência doutrinária concernente ao tema, vistos a diante.

3.2 Natureza da Ação pós Lei nº 11.340/2006

A Lei Maria da Penha inaugurou a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica. Muito se discutiu sobre a constitucionalidade da lei, pelo fato de ser destinada apenas a mulher vítima da violência doméstica, o que supostamente criaria um privilégio a um determinado grupo da sociedade em detrimento de outros, ferindo o princípio da igualdade.

Não obstante, seus dispositivos chocaram-se com os da Lei 9.099/95, criando conflitos e divergências quanto a aplicação ou não da Lei dos juizados especiais nos crimes de violência doméstica e suscitações de inconstitucionalidade dos artigos 12, I, 16 e 41 da Lei da violência doméstica. Cumpre primeiramente, apresentarmos os artigos suscitados para então analisarmos os conflitos existentes.

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Frente a estes conflitos normativos, duas correntes se formaram acerca da ação penal relativa ao crime de lesões corporais leves praticados contra a mulher no meio familiar ou doméstico. Uma defende que a ação penal é de natureza pública condicionada à representação da vítima e outra pública incondicionada.

Para os que defendem a natureza incondicionada, repristinando a regra do art. 129, do CPB, que implicitamente previa ação penal pública incondicionada para a persecução penal em desfavor do agressor, a ineficiência do Estado na proteção da mulher vitimada, fere, gravemente, os direitos humanos e a dignidade da mulher. O Ministério Público Federal, defensor desta corrente, em sua exordial na Ação Direta de Inconstitucionalidade, afirma que “condicionar a ação penal à representação da ofendida é perpetuar, por ausência de resposta penal adequada, o quadro de violência física contra a mulher, e, com isso, a violação do princípio da dignidade da pessoa humana” (MPF, ADI 4424, p 09 e 10).

Esta corrente, no tocante a constitucionalidade dos artigos retrocitados da Lei 11.340/06, alega que o art. 12, I é constitucional e se aplica a todos os crimes tratados pela lei, como por exemplo a Ameaça, excluindo-se o de lesões corporais, que não exige representação. Quanto ao art. 16, entendem da mesma forma, é aplicável aos demais crimes que tem natureza condicionada à representação, pois sendo a ação penal do crime de lesões corporais pública incondicionada, não mais se aplica o art 38 do CPP, afastando a decadência do direito de representação. E por fim, inerente ao art. 41, defende-se a total inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos crimes protegidos pela Lei Maria da Penha, visto que se tal mandamento se faz expresso no artigo em questão.

Já os defensores da segunda corrente, entendem que a vedação à aplicação da Lei 9.099, somente atinge as medidas despenalizadoras, ou seja, a transação penal e a suspensão do processo. E afirmam, veementemente, que visando proteger a família, a possibilidade de reconciliação entre ofendida e ofensor, é importante que o poder de decisão, de escolha em seguir ou não a persecução criminal esteja nas mãos das mulheres agredidas. Aplicando-se, por consequência, os dispositivos da Lei dos Juizados Especiais.

Assim, de acordo com a última corrente, tanto nos crimes de lesão corporal, como nos demais abrangidos pela Lei 11.340, a ação penal é de natureza condicionada à representação, deverá a vítima ser ouvida pela autoridade policial, que lavrará o boletim de ocorrência, e colherá a representação da vítima, condição pra seguimento do processo, nos termos do art. 12, inciso I e só poderá ser admitida renúncia.

O que ambas as correntes concordam é que a Lei Maria da Penha se fez rigorosa, majorando a pena do delito de lesão corporal leve, afastando o rito sumaríssimo dos juizados no julgamento deste. Porém para segunda corrente, isso não torna a ação penal do crime de lesão corporal pública incondicionada, pois consoante os artigos 12 e 16 da Lei 11340, a representação da vítima é medida que se faz necessária. Neste diapasão manifesta-se o Professor Damásio de Jesus quando diz que a Lei 11.340/06 não pretendeu mudar a natureza da ação pena no crime de lesões corporais contra a mulher no ambiente doméstico e ou familiar, pois isso iria de encontro ao princípio da intervenção mínima do direito penal.

Dividida a doutrina e o entendimento dos juízes de primeiro e segundo grau, uns aplicando a Lei 9.099/95 a todos os crimes acobertados pela Lei Maria da Penha, outros aplicando apenas aos delitos de natureza condicionada à representação, como ameaça, contravenção de vias de fato, estupro, excluindo o lesões corporais, se fez necessário pleitear um entendimento uno, apelando-se ao Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal

4. Posicionamento do STJ quanto a Natureza da Ação Penal

A princípio o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), entendeu que era de natureza pública incondicionada a ação penal do crime de lesões corporais, quando do julgamento do Habeas Corpus 96.992-DF.

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA.

1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República).

2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.

3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal.

4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei11.340/2006).

5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada.

6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima

7. Ordem denegada.

(HC 96992-DF, Rel. Min. Jane Silva, julgado em 12/08/2008)

Posteriormente, este entendimento alterou-se, passando o STJ a considerar como pública condicionada a ação penal do referido crime. Por dois votos vencidos, o Tribunal entendeu, no julgamento do Recurso Especial de nº 1.097.042-DF, que a ação penal para julgar o delito elencado no art. 129, §9º, pela pena máxima cominada, teria procedimento comum, afastando o rito sumaríssimo, porém, ainda se faria necessária a representação da vítima para o início da persecução criminal. E mais, aplicando o dispositivo do art. 16 da Lei 11.340/06, também, à esses casos, podendo a mulher ofendida renunciar ao direito de representação, conforme o artigo.

Em seu voto – vencedor – o Excelentíssimo Ministro Jorge Mussi, se pronunciou pela proteção da família e vontade da mulher.

Observo, ainda, que a adoção de entendimento contrário, de que a ação penal seria pública incondicionada, traria consequências por vezes não desejadas pelas vítimas, uma vez que, caso haja reconciliação entre agressor e ofendida, é certo que o prosseguimento da ação penal e, eventual condenação do réu, acarretará sofrimento a toda família. (MUSSI, RE 1.097.042-DF, 2010, p. 4).

De acordo com entendimento do STJ, contata-se que a ação penal nos crimes de lesão corporal tem natureza condicionada à representação, mantendo o disposto no art. 61 da Lei 9.0099/95, afastando a aplicação do art. 41 da Lei 11.340/06. Assim, cosidera-se ainda ação penal de natureza condicionada, conferindo a vítima o direito de representação e também o de renúncia, de toda sorte afastando a competência para julgamento dos juizados, tendo em vista a pena cominada ao crime.

Mesmo com as decisões do STJ não se acalmaram as divergências pertinentes a natureza da ação penal. A corrente majoritária, que defende a total inaplicabilidade da Lei 9.099/95, inconformada foi em busca de um entendimento definitivo e vinculante, para dar interpretação conforme aos artigos 12, I, 16 e 40 da Lei 11.340, recorrendo ao Supremo Tribunal Federal para tanto.

5. Posicionamento do STF quanto a Natureza da Ação Penal

De forma à elucidarmos prontamente a decisão do colendo Supremo Tribunal, cumpre-nos, de pronto, apresentar a decisão proferida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade, de nº 4424, julgada em fevereiro do corrente ano.

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI 4424), o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procurador-Geral da República; pela Advocacia-Geral da União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessado (ADC 19), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Ophir Cavalcante Júnior e, pelo interessado (ADI 4424), Congresso Nacional, o Dr. Alberto Cascais, Advogado-Geral do Senado. Plenário, julgado em 09.02.2012.

A interpretação conforme, dada pelo STF, entende constitucional e totalmente aplicável o que preceitua o art. 41 da Lei 11.340/2006. Afasta portando a incidência da Lei 9.099/95 em todos os crimes protegidos pela Lei “Maria da Penha”, no âmbito dos crimes praticados contra a mulher no ambiente doméstico/familiar. A miúdo, a persecução criminal do crime de lesões corporais, neste sentido, independe de representação da ofendida para iniciar-se, assim como, não cabe renúncia, vez que inexiste representação, também não se aplicam ao ofensor a transação penal, muito menos a suspensão condicional do processo ou a composição civil dos danos.

Do mesmo modo, os delitos de lesão corporal leve e culposa domésticos contra a mulher independem de representação da ofendida, processando-se mediante ação penal pública incondicionada. O condicionamento da ação penal à representação da mulher se revela um obstáculo à efetivação do direito fundamental à proteção da dua inviolabilidade física e moral, atingindo, em últimas análises, a dignidade humana feminina. (ADI 4424, Min. Luiz Fux, 2012)

O resultado do julgamento se deu com 10 votos a favor da tese, vencido apenas o voto do Ministro Relato Cezar Peluzo, pois a maioria absoluta dos Ministros, se entendêssemos a ação penal, do crime ora discutido, como de natureza condicionada, estar-se-ia esvaziando a proteção, recepcionada na Constituição, assegurada à mulher pelos tratados internacionais. Mantendo-se a necessidade de representação nos demais crimes protegidos pela lei vergastada, desde que previsto no Código Penal, pois afastou-se integralmente a aplicação da Lei 9.099/95.

CONCLUSÃO

Tendo como base a intenção da Lei 11.340/2006, percebe-se fim de proteger a mulher vitimada pela violência doméstica, buscando coibir e eliminar esta violência da sociedade. Divergências no entendimento de seu texto surgiram, fato normal, e uma longa caminhada foi necessária para que se dirimissem os conflitos, aplicando-se a lei, conforme a intenção do legislador, dando melhor garantia aos seus protegidos.

No Brasil, até a culminância da decisão do STF, tivemos um sem número de casos de violência doméstica, tratados como crimes comuns, sem maiores gravidades, como uma violência sofrida por agressor qualquer, desconhecido. Pelos anseios da população, assim como pelos apelos das entidades internacionais, o Brasil se viu obrigado a implementar medidas que assegurassem uma proteção eficaz às mulheres vítimas da dita violência. Algumas das medidas adotadas foram sem efeitos ou de pouca eficácia, mas todas foram passos à frente, para se chegar ao fim colimado de se proteger a dignidade da mulher.

As divergências entre os dispositivos da lei, neste trabalho apresentadas, são válidas, não podendo se condenar nenhuma delas, pela má-fé, cada qual defendia seu ponto de vista com o intuito de salvaguardar os direitos que entendia mais importantes. Mas, sem dúvida, a decisão tomada pelo STF, veio a proteger mais amplamente as mulheres vítimas, muitas vezes, dependentes de seus agressores, seja econômica ou afetivamente, lhes faltando discernimento para, lucidez e também força para colocar fim às agressões sofridas por seus companheiros. Assim, de acordo com a decisão proferida, não se faz necessária a representação da vítima perante a autoridade policial, a instauração de inquérito policial para apurar os delitos de lesões corporais em geral, deverá ser feito de ofício pela autoridade policial, assim como, a persecução criminal deverá ser provocada, ex officio, pelo Ministério Público, independente da vontade da mulher. Desta forma, até por uma denúncia de um vizinho ou parente o Delegado de Polícia resta obrigado a instaurar o devido inquérito, dando ciência ao Ministério Público e Juiz competente.

Como já dito, afastada a aplicação da Lei 9.099/95, o procedimento correto na fase pré-processual deixou de ser o Termo Circunstanciado de ocorrência, passando a ser o Inquérito Policial. Com a notícia crime apresentada por qualquer pessoa, até anonimamente. Da mesma forma, o arrependimento do agressor, a renúncia à representação ou reconciliação com o agressor, em nada obstará o prosseguimento da ação, assim como, não será possível a composição cível dos danos e não poderá se propor a transação penal ao acusado ou suspender o processo.Ressalta-se, entretanto, que permanecem a existir, no âmbito da Lei “Maria da Penha”, crimes de natureza condicionada à representação, a decisão do STF, neste sentido, só se aplica às lesões corporais de qualquer natureza, mas afasta no todo a aplicação da Lei 9.099/95, determinando que a representação prevista no art. 12, I e 16 daquela, só se aplicam aos crimes de natureza condicionada.

  • Lei Maria da Penha, Mulher, Violência Doméstica, L

Referências

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI, Stela Valéria soares de Farias. Violência Doméstica; Analise da Lei “Maria da Penha”, Nº 11.340/06. Salvador: JusPodivm, 2010.

SOUZA, Celso J.; CARVALHO, Ricardo C.; EVANGELISTA, Samoel M. Violência doméstica e a natureza jurídica da ação penal. AMPAC, Rio Branco, 10 de setembro de 2007. Disponível em: <http://www.ampac.org.br/antigo/exibeArtigos.asp>. Acesso em: 10 abr. 2012.

FARIA, Helena Omena Lopes; MELO, Mônica de. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT, 2006.

LAVORENTI, Wilson. Violência e discriminação contra a mulher; tratados internacionais de proteção e o direito penal brasileiro. Campinas: Millenium, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Série Estudo, Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 11, out. 1998.

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

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HC 96.992/DF, STJ - Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG). Julgado em 23/03/2009, publicado DJ. em 23/03/2009.

ADI 4424, STF – Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 09/02/2012. Publicado DJ.em 09/02/2012.


Thiago Véras

Bacharel em Direito - Curitiba, PR


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