RESPONSABILIDADE CIVIL: DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO NO DIREITO BRASILEIRO


21/09/2015 às 10h44
Por Thayane Albuquerque Advocacia

RESUMO

A Responsabilidade Civil aplicada ao Direito de Família é um tema bastante controverso entre a doutrina pátria e os tribunais. Principalmente no campo do dano moral em virtude do abandono afetivo dos genitores para com os filhos. Muitos calcados na ideia de que o simples não cumprimento do dever de cuidar não seria por si só elemento fundamental para gerar um dano irreparável àquele que se encontra em formação psicológica não aceitam sua aplicação. Ocorre que o Direito deve acompanhar as transformações da sociedade a fim de se adequar aos seus novos contornos. Mudança esta que tomou robustez após brilhante voto da ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial, onde trouxe uma maior compreensibilidade sobre o tema. Ao longo do trabalho o objetivo geral foi: Verificar a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil no direito de família. Tendo como objetivos específicos: Analisar sucintamente os elementos constitutivos da responsabilidade civil brasileira, dando enfoque à questão da sua aplicação nas relações paterno-filiais; Verificar sua aceitação pelo Direito brasileiro, em caso positivo, verificar como anda sua utilização pelos Tribunais Nacionais; além de fornecer uma breve explanação acerca do dano moral por abandono afetivo. A elaboração do estudo foi obtida, com pesquisas bibliográficas a respeito da evolução do instituto no direito pátrio, por meio de estudos de casos hipotéticos que possibilitaram a compreensão do instituto, além do estudo da recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, muito repercutida, que esclareceu pontos obscuros a respeito do tema. Este estudo fornece à sociedade e aos operadores do direito uma ferramenta de contribuição para compreensão acerca da relação entre pais e filhos e os laços de afetividade que a compõe, bem como esclarece acerca dos deveres de cuidado que os pais têm para o correto desenvolvimento psicológico e pessoal de sua prole. E quais as consequências jurídicas podem ser impostas para os genitores em caso de descumprimento destes deveres.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Indenização. Dano Moral. Abandono Afetivo.

INTRODUÇÃO

Na atualidade do Direito de Família, uma grande preocupação gira em torno das relações de afeto entre pais e filhos, bem como seu papel no desenvolvimento da criança. Questão essa em evidência, após recente decisão em sede de Recurso Especial do Superior Tribunal de Justiça, a qual acolheu pedido de indenização por dano moral por abandono afetivo onde filha alegou que seu genitor se omitiu da prática de fração dos deveres inerentes à paternidade, trazendo-lhe sérios danos psicológicos, além de praticar atos fraudulentos se desfazendo de seus bens para impedir que a mesma tivesse algum direito sucessório sobre eles. Uma vez que, inexistem impérios restritivos legais à aplicação das regras concernentes à responsabilização civil e o dever de indenizar no Direito de Família, não se pode deixar de conceder-se reparação ao dano moral causado em virtude do abandono afetivo.

Partindo-se deste vértice, são suscitados questionamentos e suas devidas correntes doutrinárias acerca do que caracteriza abandono afetivo, quais os elementos e pressupostos acerca da responsabilização e reparação em virtude do dano causado. Além, de repercussão de como se classificaria dano moral nessas situações de abandono. Bem como, os perigos da valorização do amor, tornando-o uma simples moeda, quando na realidade é um dos elementos indispensáveis para a concretização da dignidade humana.

Isto posto, origina-se um grande questionamento: Como se dá a reparação civil por abandono causado, uma vez que os danos causados por este muitas vezes tem proporções incalculáveis? E até que ponto o grau de afeto de um pai para com o filho deve ser medido?

As relações familiares, e seus contornos são imprescindíveis para a formação da sociedade. Uma vez que os indivíduos que a compõem têm seus comportamentos para com as adversidades cotidianas baseados na estrutura familiar que possuem, ou seja, no referencial familiar que adquirem ao longo de sua formação como pessoa.

O objetivo geral deste trabalho é verificar a possibilidade da aplicação do instituto da responsabilização civil por dano moral no direito de família. São objetivos específicos analisar sucintamente os elementos constitutivos da responsabilidade civil brasileira, dando enfoque à questão da sua aplicação nas relações paternofiliais; explanar brevemente sobre o dano moral em virtude do abandono afetivo; verificar se o instituto é aceito pelo Direito brasileiro. Em caso positivo, verificar como anda sua utilização pelos Tribunais Nacionais.

A elaboração do presente foi obtida, com pesquisas bibliográficas a respeito da evolução do instituto no direito pátrio, por meio de estudos de casos hipotéticos que possibilitem a compreensão do instituto, além do estudo da recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, muito repercutida, que esclareceu pontos obscuros a respeito do tema. Sendo estes os meios utilizados para a confecção do trabalho escrito.

Este estudo, uma vez realizado fornece à sociedade e aos operadores do direito uma ferramenta de contribuição para compreensão acerca da relação entre pais e filhos e os laços de afetividade que a compõe, bem como esclarece acerca dos deveres de cuidado que os pais têm para o correto desenvolvimento psicológico e pessoal de sua prole. E quais as consequências jurídicas podem ser impostas para os genitores em caso de descumprimento destes deveres.

O resultado desta pesquisa está dividido em 3 (três) capítulos, onde no primeiro tratou-se da conceituação da responsabilidade civil, sua origem e evolução ao longo da história, bem como foi realizado um estudo acerca de seus elementos.

No segundo capítulo tratou-se da conceituação de família, seu contexto modernamente, realizou-se uma breve explanação acerca do poder familiar bem como dos princípios aplicados ao Direito de Família, ainda tratou da questão do afeto e do abandono afetivo.

Ao longo do terceiro capítulo demonstrou-se que é possível aplicar-se a responsabilidade civil por dano moral nos casos de abandono afetivo ocorrido nas relações entre pais e filhos.

1. CONCEITO, ORIGEM E EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Em primeiro plano, para uma melhor compreensão, cumpre realizar um estudo acerca do conceito da Responsabilidade Civil, sua origem e evolução ao longo da história, bem como fazer uma análise acerca de seus pressupostos, dando enfoque ao dano moral objeto do estudo.

1.1 CONCEITO

Etimologicamente responsabilidade traz em seu seio uma ideia, inicial, de obrigação, um dever. Como leciona Aguiar Dias (1995, p.2) “a responsabilidade enseja um conceito de equivalência, de contraprestação, de contrapartida”. Assim, precisamente, a partir desse parâmetro (significado do vocábulo responsabilidade) que surge a definição da responsabilização civil. Ou seja, o praticante de uma determinada conduta, ilícita, tem o dever, obrigação de reparar o outro – vítima – por dano causado em virtude de seu agir.

E como afirma Cavalieri Filho (2008), nasce, um dever primário que é o de não se causar dano a outrem, - neminem laedere- impondo a ordem jurídica um novo dever, em caso de descumprimento, que é o de reparação, ou seja, a recuperação do estado anterior - status quo ante- não sendo este mais possível, através de uma contraprestação econômica, pelo dano suportado. Cavaliere Filho (2008, p.2) define o que vem a ser responsabilidade:

Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a idéia de obrigação, encargo, contraprestação. Em seu sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa idéia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.

Diniz (2011, p.51) em sua definição de responsabilidade como sendo:

A aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.

Isso posto, tem-se que, para se configurar a responsabilização é necessária a existência de dois sujeitos, um agressor e um ofendido, que estejam ligados pela ocorrência de um conflito, o qual gerou um dano, e que este deverá ser reparado/indenizado. Neste pensar, Serpa Lopes (2001) em seu entendimento diz ser a responsabilidade civil o dever de reparar um prejuízo existente, uma vez que o verbo, respondere, de origem latina, significa ter um indivíduo como garantidor de algo.

O que se pode concluir é que, independentemente da conceituação dada por cada cientista jurídico, o termo responsabilidade está diretamente ligado à noção de obrigação. Ou seja, obrigação de reparar ou ao menos suavizar as consequências de ato causador de dano, praticado por um indivíduo para com o outro.

1.2 ORIGEM E EVOLUÇÃO

O sistema de responsabilização civil vigente no direito brasileiro é resultado de um moroso processo de evolução ao longo dos anos. Ocorre que, a visão de se reparar o dano sempre existiu, mas se confundia com a responsabilidade criminal. Primordialmente, reagia-se aos danos sofridos instintivamente de forma imediata e brutal, podendo-se falar mais em vingança do que reparação do dano propriamente dita. Uma época de responsabilização objetiva, mas de índole penal. Durante esse período surgiu o Código de Hamurabi. Nos dizeres de Diniz (2011, p. 26):

[...] sob a égide da Lei de Talião, ou seja, da reparação do mal pelo mal, sintetizada nas fórmulas “olho por olho, dente por dente”, “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Para coibir os abusos, o poder público intervinha apenas para declarar quando e como a vítima poderia ter o direito de retaliação, produzindo na pessoa do lesante dano idêntico ao que experimentou.

Não era cogitado o elemento culpa, bastava-se a ocorrência do elemento conduta e o dano causado em virtude desta para se classificar tal responsabilidade como objetiva.

É fato que as mudanças nos mais variados aspectos da sociedade é constante, e devido ao componente soberania como forma de autoridade estatal, são trazidos novos parâmetros à responsabilidade civil, com o Estado coibindo a vítima de fazer justiça com as próprias mãos, e inserindo assim, a composição obrigatória e substituindo o lesado na dosimetria da sanção, que se aplica em conformidade com o tipo e grau de lesão sofrida.

Foi durante esse período a elaboração da lei das XII Tábuas, onde, segundo Ávila Miguel (2010), foi vigente em Roma por aproximadamente novecentos anos, trazendo a norma escrita a previsão de sanções que em sua maioria foram baseadas na Lei de Talião, indo desde a multa até a pena de morte. Nessa época a responsabilidade ainda era objetiva.

Com o advento da Lei de Aquilia iniciou-se o delineamento da noção de culpa, apartando-se da responsabilidade objetiva. Contudo, sua maior inovação ocorreu com a reparação ao dano ser imposta em indenizações proporcionais à dimensão do dano causado, sendo pagas em prestações pecuniárias mediante atribuição de valores. Segundo Diniz (2011, p. 27):

A Lex Aquilia de damno estabeleceu as bases da responsabilidade extracontratual, criando uma forma pecuniária de indenização do prejuízo, com base no estabelecimento do seu valor. [...] Todavia, mais tarde, as sanções dessa lei foram aplicadas aos danos causados por omissão ou verificados sem o estrago físico e material da coisa.

Nesse momento, era o patrimônio do causador do dano que iria responder pela lesão causada. Para Lima (1999, p.26):

É incontestável, entretanto, que a evolução do instituto da responsabilidade extracontratual ou aquiliana se operou, no direito romano, no sentido de se introduzir o elemento culpa, contra o objetivismo do direito primitivo, expurgando-se do direito a idéia de pena, para substituí-la pela reparação do dano sofrido.

Saliente-se que nos derradeiros momentos da evolução do Direito Romano já se pensava em danos morais. Foi durante a Idade Média, que houve a estruturação de como se configuraria a culpa e do que seria o dolo, distinguindo-se responsabilidade civil da criminal. Diniz (2011) ressalta que a teoria da responsabilidade só se firmou por obra dos doutrinadores e que o jurista mais influente foi o jurista francês Domat (Lois civiles, Liv. VIII, Seção II, art. 1º) foi o responsável pelo princípio geral da responsabilidade civil, sendo essa ideia posteriormente adotada pelo Código Civil Francês. Frizzo (2003) sintetiza como se processou a evolução histórica da responsabilidade civil no Direito Romano:

O Direito Romano evoluiu da vingança privada ao princípio básico de que não é lícito fazer justiça com as próprias mãos, com a imposição da autoridade do Estado; evoluiu da pena como reparação, para a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, por instituição do elemento subjetivo de culpa, pela adoção da máxima “nulla poena sine lege”.

Percebe-se então que a responsabilidade civil evoluiu da mesma forma que as relações humanas e o direito, uma vez que não se pode falar em justiça quando os indivíduos da sociedade são regidos por um ordenamento retrogrado que não acompanhe eficazmente as constantes mudanças cotidianas.

1.3 RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO MODERNO

É cediço que o Direito Contemporâneo está calcado sob intensa influência do Direito Romano, prova disso é o fundamento da responsabilidade na noção de culpa. Venosa (2008) ensina que o Código Civil Brasileiro de 1916 trazia claramente a noção de culpa como imprescindível para a caracterização da responsabilidade civil. Seu artigo 159 trazia a cláusula geral da responsabilidade subjetiva: “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Gomes (2001) explanando referido artigo afirma que o Código de 1916 expressamente aceitou a responsabilidade subjetiva, mas ao lado desta, também existem regras a cerca da responsabilidade objetiva, inclusive em leis especiais, como as de acidente do trabalho.

O novel Código Civil também adotou a teoria subjetivista acerca da responsabilidade, trouxe em seu art. 186 a definição de culpa nas modalidades de negligência, imprudência e imperícia, como pressupostos imprescindíveis para a responsabilização do causador do dano. Por outro lado inovou no art. 297, parágrafo único, permitindo que em determinadas hipóteses previstas em lei e devido a natureza, da atividade desenvolvida pelo agente apresentar riscos para outrem, neste caso, a reparação se dará independentemente de averiguação de culpa.

Assim, é imperioso destacar que existindo um dano e um lesado, surge a obrigação de repará-lo. A principal preocupação do atual contorno acerca da responsabilidade é com reparação total de todos os prejuízos suportados pela vítima. Nos dizeres de Dias (apud PETEFFI DA SILVA 2009, p.5) não se trata de responsabilidade civil, “trata-se, com efeito, de reparação de dano.”

1.4 PRESSUPOSTOS DA OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO

Para se falar em responsabilidade civil, tanto objetiva como subjetiva, é imprescindível traçar linhas acerca dos pressupostos que a caracteriza. Em linhas gerais, e comuns a ambas, são pressupostos da obrigação de indenizar: a conduta do agente, o nexo de causalidade e dano.

1.4.1 Conduta

O primeiro elemento constitutivo da responsabilidade civil é a conduta, nas suas modalidades comissiva ou omissiva e está conceituada no artigo 186 do Código Civil, que assim dispõe: “Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Na modalidade comissiva, se caracteriza por um agir, um comportamento positivo, complementado pelo elemento da voluntariedade, traduzindo-se na liberdade de escolha e consciência que possui o agente em agir de uma forma ou outra. A consciência que aqui se trata, é da ação que o agente está executando, e não do resultado lícito ou ilícito que vai obter-se. Entrando-se na seara do dolo, que traz em sua essência consciência e a vontade de se praticar e obter resultado ilícito. E existindo o exercício de um ato ilícito, gera-se então o dever de indenizar a vítima, como se depreende da leitura do artigo 927 caput do Código Civil: Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Ou seja, significa dizer que o instituto da responsabilidade civil extracontratual brasileira se fundamenta no princípio da culpa. Conforme leciona Stoco (2004, p.95):

Cumpre, todavia, assinalar que não se insere, no contexto de ‘voluntariedade’ o propósito ou a consciência do resultado danoso, ou seja, a deliberação ou a consciência de causar o prejuízo. Este é um elemento definidor do dolo. A voluntariedade pressuposta na culpa é da ação em si mesma.

No que concerne à omissão, esta ocorre quando o agente não pratica uma conduta devida, se abstendo de um dever. Entretanto, para que possa ser responsabilizado é necessário que o agente tenha o dever jurídico de agir para impedir a ocorrência do resultado. Ou seja, o omitente contribui para a ocorrência do dano a partir do momento em que não age para impedi-lo. Ensina Cavalieri Filho (2008, p. 24):

Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem dever jurídico de agir, de praticar um ato para impedir o resultado, dever, esse, que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando o risco da ocorrência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo.

No que tange à noção de culpa, esta só terá relevância quando se tratar de responsabilidade subjetiva. Em seu sentido amplo abrange dolo e a culpa em si. Com relação ao dolo, o agente tem consciência de que sua ação é ilícita e sua intenção também é de obter um resultado ilícito. Nas palavras de Rodrigues (2008) o agente antevê o resultado danoso que sua conduta vai causar, mas ainda assim, prossegue no propósito de alcançar tal resultado. Em contrapartida, na culpa em sentido estrito, há um descumprimento de um dever de cuidado, ou seja, quando diante das conjunturas do caso concreto, o agente além de poder, devia ter agido de outra forma, mas por negligência imprudência ou imperícia não o fez. Leciona Cavalieri Filho (2008, p.31):

Tanto no dolo como na culpa há conduta voluntária do agente, só que no primeiro caso a conduta já nasce ilícita, porquanto a vontade se dirige à concretização de um resultado antijurídico- o dolo abrange a conduta e o efeito lesivo dele resultante-, enquanto que no segundo a conduta nasce lícita, tornando-se ilícita na medida em que se desvia dos padrões socialmente adequados. O juízo de desvalor no dolo incide sobre a conduta, ilícita desde a sua origem; na culpa, incide apenas sobre o resultado. Em suma, no dolo o agente quer a ação e o resultado, ao passo que na culpa ele só quer a ação, vindo a atingir o resultado por desvio acidental de conduta decorrente de falta de cuidado.

1.4.2 Nexo de Causalidade

Quanto ao nexo de causalidade, é de suma importância mencionar, que o mesmo é imprescindível em qualquer modalidade da responsabilidade civil, seja subjetiva (da culpa) ou objetiva (do risco). Une a conduta do agente ao dano causado por ela. Não há o que se falar reparação civil ou em culpa, se a conduta praticada pelo autor que deu causa ao resultado danoso. É um dos pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, se presente e somado aos demais, motiva a obrigação indenizatória por parte do agente. Nexo de causalidade não é nada mais do que a relação de causa e efeito entre o comportamento e o resultado. A dificuldade existente quanto ao nexo de causalidade está em quando existem causas múltiplas que concorrem para o resultado danoso, sendo preciso analisar ao certo qual delas foi a que precisamente deu causa ao resultado. Lopes (2001, p.218) dispõe:

Uma das condições essenciais à responsabilidade civil é a presença de um nexo causal entre o fato ilícito e o dano por ele produzido. É uma noção aparentemente fácil e limpa de dificuldade. Mas se trata de mera aparência, porquanto a noção de causa é uma noção que se reveste de um aspecto profundamente filosófico, além das dificuldades de ordem prática, quando os elementos causais, os fatores de produção de um prejuízo, se multiplicam no tempo e no espaço.

Ante essas dificuldades que habitam ao redor do nexo causal, três teorias surgiram para solucionar o problema. Entretanto, é relevante destacar como ensina Cavalieri (2008) que como teorias que são não trazem soluções prontas e acabadas aplicáveis a todos os casos. Dão apenas um roteiro ao julgador, que diante de critérios de probabilidade e razoabilidade, buscará a melhor solução para cada caso concreto em apreço.

A primeira delas é chamada de teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non) que considera-se causa todos os eventos que concorrem para o resultado, não importando se um foi mais ou menos eficaz. Seu ponto negativo está no fato de que apresenta um significativo regresso no nexo de causalidade, que de um lado beneficiaria em demasia a vítima, que teria uma séria de agentes considerados imputáveis, o que causaria uma série de injustiças uma vez que seriam responsabilizados agentes que contribuiriam de forma muito ínfima para a realização do dano. Nos ensinamentos de Gustavo Tepedino citado por Gagliano,

Pamplona Filho (2011, p.129), “a inconveniência desta teoria, logo apontada, está na desmesurada ampliação, em infinita espiral de concausas, do dever de reparar, imputado a um sem-número de agentes. Afirmou-se, com fina ironia, que a fórmula tenderia a tornar cada homem responsável por todos os males que atingem a humanidade”. Cavalieri Filho (2008, p. 47) também faz uma censura a essa teoria:

[...] pelo fato de conduzir a uma exasperação da causalidade e a uma regressão infinita do nexo causal. Por ela, teria que indenizar a vítima de atropelamento não só quem dirigia o veículo com imprudência, mas também quem lhe vendeu o automóvel, quem fabricou, quem forneceu a matériaprima etc.

Chamada de explicativa do nexo causal, a segunda teoria é a da causalidade adequada, conforme ela ensina causa é todo e qualquer antecedente que além de necessário, deve ser apto de forma abstrata a produzir o evento danoso. A conduta do agente deve ser suficiente a causar o dano. Portanto, não é suficiente que uma condição in concreto seja causa do resultado, é preciso que também seja da mesma forma em abstrato. Em outras palavras, uma causa adequada à produção desse efeito. Cavalieri Filho (2008) traz um exemplo esclarecedor a respeito dessa teoria. Trata de alguém que é retido ilicitamente por outrem e como resultado não embarca em avião e que após pegar outro voo, a aeronave cai, causando a morte de todos os passageiros. Para referido autor, a retenção ilícita não pode ser considerada causa do acidente, uma vez que em abstrato não é a causa adequada à produção do resultado descrito.

A terceira teoria chama-se teoria da causalidade direta ou imediata, ou do dano direto e imediato, e também chamada de teoria da interrupção do nexo causal, para esta corrente causa é apenas a mais direta, a que mais concorreu para o resultado, segundo o curso natural das coisas. Para Stolze Gagliano e Pamplona Filho (2009, p.90) causa, para esta teoria, seria apenas o antecedente fático que, ligado por um vínculo de necessariedade ao resultado danoso, determinasse este ultimo com uma consequência sua, direta e imediata.

Referidos autores trazem um exemplo bastante elucidativo para explicar a teoria da interrupção do nexo causal. No exemplo, Caio é ferido por Tício ao final de uma discussão de um campeonato de futebol. Pedro, socorre Caio, que dirige em alta velocidade para o hospital, durante o percurso o automóvel capota e Caio vem a óbito. Concluindo os autores que quem responde pela morte de Caio é Pedro, uma vez que a ação de Tício foi causa imediata e direta apenas para a lesão corporal e não para o evento morte.

A teoria adotada pelo Brasil para a maioria dos doutrinadores é a terceira.

Positivada no artigo 403 CC/2002, onde dispõe que: “Art.403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.”

Entretanto, é certo que, em alguns casos, a doutrina e jurisprudência acabam por confundir as teorias, sendo imprescindível e indispensável a investigação da necessariedade da causa.

1.4.3 Dano

No que tange ao dever de indenizar é a existência de um dano, ou seja, um prejuízo suportado pela vítima, que pode ser da seara material ou moral. Havendo uma diminuição ou uma lesão a um bem jurídico tutelado. Sem o evento danoso, não existe responsabilidade e, portanto, não há o que indenizar. Como bem observa Stolze Gagliano e Pamplona Filho (2011, p.77) seja qual for a espécie de responsabilidade sob exame (contratual ou extracontratual, objetiva ou subjetiva), o dano é requisito indispensável para a sua configuração, qual seja, sua pedra de toque.

Ou seja, como a responsabilidade fundamenta-se na noção de um dever de ressarcir, da recuperação de um status quo ante, então esta não se realiza se não há o que se reparar. Para Diniz (2011, p.77):

Não pode haver responsabilidade civil sem a existência de um dano a um bem jurídico, sendo imprescindível a prova real e concreta dessa lesão. Deveras, para que haja pagamento da indenização pleiteada é necessário comprovar a ocorrência de um dano patrimonial ou moral, fundados não na índole dos direitos subjetivos afetados, mas nos efeitos da lesão jurídica.

Portanto, por exemplo, quando um filho pleiteia indenização pecuniária em virtude de dano moral por abandono afetivo por parte do genitor, este não está transformando em moeda sua dor, tampouco o amor do pai, mas sim que lhe seja proporcionado um meio de atenuar as consequências suportadas no decorrer do tempo.

Ainda para Diniz (2011), o dano pode ser dividido em duas searas: Dano individual, que compreende o dano material e o dano moral; e o Dano Social, que atinge os valores sociais. Não importando a classificação do dano, para que seja indenizável, é imprescindível a ocorrência de certos requisitos.

O primeiro deles é a violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica. Pressupõe que a existência do dano decorre da agressão e a consequente lesão a um bem jurídico tutelado pelo direito. O artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal ratifica referido requisito ao dispor que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A certeza do dano é o segundo requisito a ser avaliado no momento da análise acerca da possível indenização. Como ressalta Stolze Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 81):

Somente o dano certo, efetivo, é indenizável. Ninguém poderá ser obrigado a compensar a vítima por um dano abstrato ou hipotético. Mesmo em se tratando de bens ou direitos personalíssimos, o fato de não se poder apresentar um critério preciso para a sua mensuração econômica não significa que o dano não seja certo.

Outro requisito a ser visualizado é o da subsistência do dano no momento da reclamação feita pelo lesado. Que para Diniz (2011, p. 83) significa que, se o dano já foi reparado pelo responsável, o prejuízo é insubsistente, mas, se o foi pela vítima, a lesão subsiste pelo quantum da reparação. Esses são os três requisitos básicos para a configuração do dano indenizável, existindo outros elencados pela doutrina como: legitimidade do postulante, causalidade e ausência de causas excludentes de responsabilidade.

1.4.3.1 Dano Material

Pode-se falar em dano material quando há uma lesão que atinge o patrimônio, bens e direitos economicamente apreciáveis. No entender de Cavalieri Filho (2008) patrimônio é o “conjunto de relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis em dinheiro”.

Nessa espécie de dano, a reparação pode ser realizada de forma direta, restabelecendo-se o estado anterior, ou de forma indireta, pela indenização em pecúnia. É de suma importância destacar que a lesão pode não só atingir o patrimônio atual da vítima, como também o patrimônio futuro. Desta forma, o dano pode-se dá de forma imediata, chamado de dano emergente, ou seja, o que a vítima efetivamente perdeu. Como também, atingindo o patrimônio futuro, em outras palavras, o que a vítima efetivamente deixou de lucrar, é chamado de lucro cessante.

1.4.3.2 Dano Moral

Quando o dano atinge bens de cunho personalíssimo para a vítima e que, portanto, não são passíveis de valoração econômica, parte-se então para a seara do dano moral. Atualmente, não há imprecisões com relação à essa espécie de dano ser indenizável ou não, umas vez que a Carta Magna inseriu no art. 5º, incisos V e X, sua plena reparação. Cavalieri Filho (2008, p. 80) define dano moral como:

Os bens que integram a personalidade constituem valores distintos dos bens patrimoniais, cuja agressão resulta no que se convencionou chamar de dano moral. Essa constatação, por si só, evidencia que o dano moral não se confunde com o dano material; tem existência própria e autônoma, de modo a exigir tutela jurídica independente.

Para Stolze Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 97):

O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente.

Para que seja possível sua reparação, no evento danoso o individuo deve suportar uma ofensa tamanha que lhe cause um sofrimento tamanho que provoque lesões que se perpetuarão por toda a vida da vítima. Uma vez que o simples e mero aborrecimento não gera direito à indenização.

Cavalieri Filho (2008, p.81), dispõe que o dano moral envolve a violação aos direitos da personalidade, bem como dos chamados novos direitos da personalidade, quais sejam a imagem, o bom nome, a reputação, sentimentos, relações afetivas, aspirações, hábitos, gostos, convicções políticas, religiosas, filosóficas, direitos autorais.

Doutrinariamente há uma distinção entre o dano moral direto e indireto, o primeiro diz respeito a um prejuízo preciso a um direito extrapatrimonial, o segundo ocorre quando a lesão é causada a um interesse de natureza patrimonial, mas que produz prejuízo também na esfera extrapatrimonial.

Exemplo de lesão a bem jurídico extrapatrimonial e sua importância vem traduzido nas palavras de Hironaka (2007):

O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada.

Em relação ao aspecto da reparação do dano moral, se propagava grande controvérsia entre os juristas pátrios e estrangeiros que sustentavam argumentos contra a reparação por dano moral, hoje não mais sustentados no direito brasileiro visto que além de expressamente prevista no art. 5º, incisos v e x da Carta Magna que prevê expressamente indenização a esta modalidade de dano também é consagrada no Código Civil de 2002.

Antes do advento da atual constituição, a legislação até então em vigor, não clarificava em seu texto legal acerca dessa modalidade de dano, o que gerou tamanha instabilidade nas ações levadas ao Judiciário uma vez que de um lado encontravam-se os doutrinadores que defendiam a reparação por dano moral, enquanto por outro lado doutrinadores contra-argumentavam essa posição. Ou seja, negava-se que pudesse existir a reparação do dano moral sob o argumento de dor não tem preço, não podia ser valorizada, não sendo possível compensá-la com moeda. Mas, entende-se como precursor da pacificação do referido instituto foi o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que no ano de 1976 decidiu categoricamente que dano moral é, portanto, indenizável, tanto quanto o dano patrimonial.

No decorrer do tempo, passou-se a entender o contexto que envolve a reparação do dano moral que nas palavras de Gagliano Stolze e Pamplona Filho (2011, p.119):

A reparação, em tais caso, reside no pagamento de uma soma pecuniária, arbitrada judicialmente, com o objetivo de possibilitar ao lesado uma satisfação compensatória pelo dano sofrido, atenuando, em parte, as consequências da lesão. Na reparação do dano moral, o dinheiro não desempenha função de equivalência, como no dano material, mas sim, função satisfatória.

Para Cavalieri Filho (2008, p.81) a compensação pela lesão sofrida “à restituo in integrum do dano causado, tendo mais uma genética função satisfatória, com a qual se procura um bem que recompense, de certo modo, o sofrimento ou a humilhação sofrida”. Com o dano moral efetivamente existindo no Ordenamento Jurídico brasileiro, tendo expressa previsão constitucional com, ressalte-se, status de cláusula pétrea e um direito fundamental, pôs-se fim à qualquer discussão existente acerca de sua reparação mesmo quando esta for de cunho psicológico. A lei tolerou que ficasse ao arbítrio dos magistrados o quantum a ser fixado na indenização, com o Código Civil trazendo apenas critérios subjetivos para tal fixação. A respeito da referida problemática Gonçalves (2008, p. 597) leciona que:

O problema da quantificação do dano moral tem preocupado o mundo jurídico, em virtude da proliferação de demandas, sem que existam parâmetros seguros para a sua estimação. […] A reparação do dano moral objetiva apenas uma compensação, um consolo, sem mensurar a dor. Em todas as demandas que envolvem danos morais, o juiz defronta-se com o mesmo problema: a perplexidade ante a inexistência de critérios uniformes e definidos para arbitrar um valor adequado.

Diante de tais delineamentos o juiz com embasamento em algumas leis, jurisprudência e o caso concreto, e analisando as circunstâncias adequadas para a fixação da pecúnia, devendo o magistrado medir o poder aquisitivo do ofensor e a dimensão do dano para a vítima.

Portanto, nota-se que a reparação no dano moral não devolve a vítima o direito violado nem restabelece estado anterior, pois o dano moral não se reveste dos pressupostos do regresso, mas sim possui o intuito de compensar as consequências diante das humilhações suportadas pela vítima. Diante dessa nova perspectiva em torno do dano moral e sua reparação, sua aplicação nas relações familiares é um campo bastante fértil para tal análise.

2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FAMÍLIA E PODER FAMILIAR

Neste tópico são realizadas análises quanto a relação familiar e os componentes desse grupo, tratando acera dos princípios aplicáveis às relações paterno-filiais, além do estudo sobre a questão do afeto e abandono afetivo.

2.1 BREVE HISTÓRICO E NATUREZA JURÍDICA

É cediço que ao longo da história da sociedade o contexto da família, sofreu grandes e importantes variações. Sendo elas, sociais, culturais e até mesmo religiosas. Para o direito romano, uma definição para família, nas palavras de

Cassettari citando Ribas ( p.3)[1] seria “a reunião de tudo quanto se acha submetido ao domínio e poder privado de uma só pessoa, considerando-se esta pessoa como um todo, uma universalidade.”

Para Pereira (1999, p. 14) “família é a célula básica de toda e qualquer sociedade”. O instituto surgiu antes mesmo da ideia de Estado ou qualquer outra norma jurídica. Nos primórdios sua estrutura era basicamente patriarcal, sobrepondo-se os poderes masculinos perante a mulher e os filhos.

Esse modelo de família patriarcal tinha como chefe efetivo, o paterfamilias, era o chefe absoluto da relação familiar e quem detinha o poder de decisão sobre os indivíduos que a compunham. Ainda segundo Pereira (1999) com o advento do cristianismo, a autoridade do paterfamilias perde seu caráter absoluto, uma vez que o casamento passa a modificar a concepção de autoridade máxima do esposo. Mudança essa que ocorreu em respeito a pessoa humana e trouxe uma nova forma de se relacionar entre os membros da família. Em função disto, o casal passa a compartilhar as decisões, com a mulher adquirindo o direito de gerir a sociedade conjugal ao lado do marido.

A legislação civil brasileira tomou como modelo de família o patriarcal, desde a Colônia, o Império e ainda por boa parte do século XX, tendo entrado em crise e sido derrocado da seara jurídica, com o advento da Constituição de 1988, a qual introduziu novos valores acerca da família.

Outrossim, é a partir do século XX que o instituto do casamento perde o seu caráter extremamente formalista, passando a ligar as pessoas pelos laços de afetividade e constituindo-se nas mais diversas formas. Como afirma Lôbo (2011, p.17):

No plano constitucional, o Estado, antes ausente, passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.

A família contemporânea e sua função atual é a afetividade, decorrida da nova ordem social, e norteada pela afeição entre seus membros. Nesse pensamento Farias (2010) afirma que, os contornos da família moderna, amparada pela segurança constitucional, é igualitária, democrática e plural, qualquer modelo de sociedade afetiva passa a ser protegido, não sendo necessariamente pelo casamento, mas forjada em laços de afetividade.

2.2 CONCEITO

O vocábulo família, etimologicamente, adveio do latim famulus, que significava um conjunto de servos que dependiam de um senhor. Ou seja, a princípio a família era composta pelo patriarca e seus fâmulus: esposa, filhos e escravos. Nos ensinamentos de Farias (2010; p. 09) “a família não tinha significado idealístico, assumindo uma conotação patrimonial, dizendo respeito à propriedade, designando os escravos pertencentes a alguém, a sua casa, a sua propriedade”.

Atualmente, essa vertente se modificou e muito, pois ao longo da constante evolução da sociedade, pelos aspectos sociais, culturais e até mesmo religiosos, o instituto da família não permaneceu estacionário. E no direito pátrio, a partir da Constituição de 1934, o instituto ganhou novos contornos, auferindo especial proteção por parte do Estado. Silva (1997, p. 775 e 776) afirma que:

A família é uma comunidade natural, composta, em regra, de pais e filhos, aos quais a Constituição, agora, imputa direitos e deveres recíprocos, nos termos do artigo 229, pelo qual os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, havidos ou não da relação do casamento (art. 227, §6º), ao passo que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Ademais, a família também pode ser constituída através da união de pessoas tanto pelo casamento como pela união estável, e ainda pela relação monoparental, adoção ou até mesmo por relação paterno filial resultante de inseminação artificial.

A Constituição Federal de 1988, inovou ao tratar em seu Capítulo VII “Da Família, da Criança e do Adolescente”, adequando a Carta Magna a realidade da sociedade brasileira, em especial, o instituto da família passando a ser reconhecido como base da sociedade.

Para Lôbo (2011) outra grande novidade introduzida pela CF/88 é o reconhecimento de que família também pode ser formada por filhos e pais divorciados, surgindo um novo núcleo familiar diverso do casamento. Além de que, os filhos adotivos e os advindos fora do casamento, são vistos de forma igualitária, possuindo os mesmos direitos.

Nesta mesma linha, como o Direito deve acompanhar a constante mutação da sociedade, é justificável a possibilidade de formação de um novo modelo de família, também conhecida como união homoafetiva, entretanto ainda não consagrado pela atual Carta Magna. Portanto, pelo ordenamento jurídico brasileiro a família passa a ser vista pelos contornos da afetividade, os laços que envolvem seus membros vão mais além dos laços patrimoniais e se voltam para os laços pessoais.

Nos moldes dos ensinamentos de Farias (2010) a família, atualmente, é uma entidade de afeto e solidariedade, que norteia o desenvolvimento da pessoa humana. Logo, estão inseridos na Constituição de 1988, princípios gerais aplicáveis às relações familiares, o trabalho dos doutrinadores é árduo, uma vez que, reconhecem muitos desses princípios o que torna dificultoso identificar e elencar todos eles. Desta feita, é de suma importância analisar-se os principais deles.

2.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Lôbo (2011, p.60) define a dignidade da pessoa humana como sendo “o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade”.

Diniz (2011, p. 37) afirma que este princípio “constitui base da comunidade familiar (biológica ou socioafetiva), garantindo, tendo por parâmetro a afetividade, o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente”.

Aplicado ao direito de família, referido princípio, constitui a base familiar e através dele busca-se efetivamente a valorização do integrante desta instituição, buscando-se o desenvolvimento de seus membros em especial da criança e do adolescente. Exemplo do princípio aplicável ao caso concreto encontra-se no julgado do extinto Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais, cuja ementa se segue:

“INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA

AFETIVIDADE. Dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana”

Desta forma, configura-se violação ao princípio da dignidade da pessoa humana todo e qualquer ato ou conduta que equipare a pessoa a uma coisa disponível.

2.2.2 Princípio do melhor interesse da criança

Em primeiro plano, o princípio do melhor interesse,inclui não só a criança como também o adolescente, e introduz a noção de que estes indivíduos devem ter seus interesses tratados com prioridade, pela família, pela sociedade e principalmente pelo Estado na tutela de seus direitos. Diniz(2011, p.37) ensina que referido princípio “permite o integral desenvolvimento de sua personalidade e é diretriz solucionadora de questões conflitivas advindas da separação judicial ou divórcio dos genitores, relativas à guarda, ao direito de visitas, etc.” Lôbo (2011, p.75) afirma que:

O princípio parte da concepção de ser a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, e não como mero objeto de intervenção jurídica e social quando em situação irregular, como ocorria com a legislação anterior sobre os “menores”. Nele se reconhece o valor intrínseco e prospectivo das futuras gerações, como exigência ética de realização de vida digna para todos.

Em última análise, referido princípio encontra seu principal fundamento no artigo 227 da Constituição, onde dispõe ser dever da família, da sociedade e do

Estado assegurar à criança e ao adolescente com “absoluta prioridade” os direitos elencados. Encontra-se também consagrado nos artigos 4º e 6º do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90) e dispondo ainda o artigo 5ª do referido diploma, que será punido qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

2.2.3 Princípio da Convivência Familiar

Entende-se como convivência familiar, a relação afetiva entre os membros da família de forma diuturna e duradora, não interessando se são laços de parentesco ou não, mas desde que convivam em um ambiente comum. Lôbo (2011, p. 74) esclarece acerca do que compõe o ambiente comum:

Supõe o espaço físico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as atuais condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos membros da família no espaço físico, mas sem perda da referência ao ambiente comum, tido como pertença de todos. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças.

A Constituição Federal elenca o direito à convivência familiar como um direito fundamental assegurado à criança e ao adolescente e mesmo quando os pais estão divorciados, o menor tem o direito de manter relações pessoais de convivência com seus genitores, não podendo seu guardião impedir tal convivência. De resto, é cediço que o direito de convivência estende-se aos parentes próximos, como avós, tios e primos todos formando um maior núcleo familiar.

2.2.4 Princípio da afetividade

Derivado diretamente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, encontra-se implícito no texto constitucional. Diniz (2011, p. 38) aponta que o “princípio da afetividade é corolário do respeito da dignidade da pessoa humana, como norteador das relações familiares e da solidariedade familiar.” Lôbo (2011, p. 70) o define como “o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico”.

Desde logo, faz despontar a noção de que os filhos biológicos e adotivos devem ser tratados em patamar de igualdade, devendo existir o respeito aos seus direitos fundamentais bem como a noção de que tais direitos não podem estar abaixo de interesses patrimoniais.

A par disso, não se pode confundir afetividade com afeto, este é um fato psicológico e cresce de acordo com a empatia de um indivíduo para com o outro; enquanto que a afetividade diz respeito a um dever jurídico de cuidar, de zelar pela preservação dos direitos fundamentais daquele que está sob o seu cuidado, nas palavras de Lôbo (2011, p. 71) “ainda que aja desamor ou desafeição entre eles”. A não incidência desse princípio nas relações entre pais e filhos ocorre com o falecimento de um deles ou havendo perda do poder familiar, este merece contornos acerca de sua precisão.

2.3 DO PODER FAMILIAR

Ao longo da história, como a chefia da família era exercida apenas pelo homem, o paterfamilias, justificava-se o uso da nomenclatura “pátrio poder” utilizada pelo Código Civil de 1916. Entretanto, com a mulher ganhando espaço no cenário mundial devido a constante evolução da sociedade, auferindo direitos que antes não possuía, tais como, direito ao voto, a participação em decisões políticas, o direito de poder trabalhar fora de casa, entre outros, fizeram-se necessárias mudanças também no seu tratamento nas relações jurídicas.

A partir da promulgação da Carta Constitucional de 1988, o grupo familiar passa a ser dirigido em conjunto pelo pai e mãe, sendo as decisões compartilhadas pelo casal. Outrossim, a mudança trazida pelo Código Civil de 2002 modificando o antigo pátrio poder elencado pelo Código Civil de 1916 que, originariamente, limitava o poder da matriarca nas relações familiares, e transformando-o em poder familiar, com o intuito de solidificar a intenção do constituinte originário, qual seja, inserir a mulher na gerência do grupo familiar em conjunto e em par de igualdade com o cônjuge.

O ilustríssimo mestre Miranda (2001, p.143) define de forma precisa o que vem a ser pátrio poder como sendo “ o conjunto de direitos que a lei concede ao pai, ou à mãe, sobre a pessoa e bens do filho, até a maioridade, ou emancipação desse, e de deveres em relação ao filho”.

Atualmente, esses deveres oriundos do poder familiar encontram-se dispostos no artigo 1.634 do atual Código Civil, que determina, além de outros, que compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: dirigir-lhes a criação e educação e têlos em sua companhia e guarda.

A par disso, verifica-se que o Código Civil imputa aos genitores deveres que vão além da educação, mas também o dever de criação e afeto. Nessa mesma linha de pensamento Diniz (2003, p. 1.213) afirma que “o poder familiar engloba os deveres de criação e educação dos filhos menores, bem como tê-los em sua companhia para dirigir-lhes a formação”.

Ressalte-se ainda que, o exercício do poder familiar, pode ser exercido separadamente, sem prejuízo da sua prática em conjunto. Entretanto seu exercício em separado, não significa exclusivamente apenas por um dos pais, mas quando se tratar de atos comuns de guarda do filho e dos atos de administração ordinária, excepcionalmente nas hipóteses elencadas nos artigos 1.637 e 1.638 do Código Civil, quais sejam, a suspensão do poder familiar, a perda do poder familiar, a falta ou ausência duradouras do titular e o impedimento legal para o exercício, como a incapacidade civil. Quanto ao exercício do poder familiar Lôbo (2011, p.302) ensina que:

Em matéria de exercício do poder familiar, deve-se ter presente o seu conceito de conjunto de direitos e deveres tendo por finalidade o interesse da criança e do adolescente. Os pais não exercem poderes e competências privados, mas direitos vinculados a deveres e cumprem deveres cujos titulares são os filhos.

O exercício do poder familiar gira em função do melhor interesse do menor e à formação da sua personalidade do ponto de vista psicológico, evoluindo no curso de formação da personalidade da criança, e reduzindo-se proporcionalmente consoante o menor desenvolve sua própria capacidade de escolha, perfazendo quando atinge seu limite temporal, qual seja a maioridade.

Quanto à suspensão do poder familiar dos pais, a lei, expressamente prevê quatro hipóteses, quais sejam: a) descumprimento dos deveres a eles inerentes; b) ruína dos bens dos filhos; c) risco à segurança do filho; d) condenação em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. Vale frisar que este rol de hipóteses é meramente exemplificativo, pois não se podem excluir outras situações que aconteçam em decorrência da natureza do poder familiar. Lôbo (2011, p. 307) se posiciona acerca da suspensão afirmando que “não é preciso que a causa seja permanente. Basta um só acontecimento, que justifique o receio de vir a se repetir no futuro com risco para a segurança do menor e de seus haveres, para ensejar a suspensão”.

Ademais, a suspensão pode ser total ou parcial para a prática de determinados atos. Miranda (2001, p. 183) assevera que “a suspensão total priva o pai de todos os direitos que constituem o pátrio poder”. Quando a suspensão é imposta a apenas um dos genitores concentra-se o poder familiar no outro, na ausência deste por incapacidade ou falecimento, nomeia-se um tutor. Cessada a causa da suspensão, aquele que fora impedido volta a exercer o poder familiar, ou ainda seguindo restrições determinadas pelo juiz.

O artigo 1.635 do Código Civil dispõe de rol taxativo das hipóteses de extinção do poder familiar, não se admite outras hipóteses, vez que implicam em restrições de direitos fundamentais. Ocorrendo uma das causas, há a interrupção definitiva deste exercício. É o que prevê, referido dispositivo legal:

Art. 1635 Extingue-se o poder familiar:

I - pela morte dos pais ou do filho;

II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único;

III - pela maioridade;

IV - pela adoção;

V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638.

A ocorrência real de qualquer dessas causas leva à extinção automática. Frise-se ainda que a morte apenas extingue o poder familiar quanto ao genitor que vier a falecer, enquanto que o sobrevivente o detém de modo absoluto.

Por fim, quanto à sua gravidade, a perda do poder familiar somente pode ser imposta caso a conduta que a ensejar for gravoso ao ponto de pôr em risco permanente a segurança e a dignidade do menor. Quando houver a possibilidade de recomposição dos laços de afetividade, a suspensão é preferível à perda. No artigo 1.638 do compilado cívico são enumeradas as seguintes hipóteses: castigo imoderado, abandono do filho, prática de atos contrários à moral e aos bons costumes, prática reiterada das hipóteses de suspensão.

Saliente-se que o abandono do filho pode ocorrer em diversas circunstâncias, com intencionalidades diferentes, nos dizeres de Lôbo (2011, p. 309) “não se pode julgar todas sob o mesmo estalão”. Tornando-se de suma importância a análise de seus pressupostos, elementos e consequências.

2.4 DA AFETIVIDADE E DO ABANDONO AFETIVO

Durante muitos anos a ideia de família esteve sempre atrelada ao instituto do matrimônio, e que seria formada a partir das pessoas ligadas pela união indissolúvel do casamento. Ocorre que essa ideia sofreu grandes mudanças com o avanço da sociedade e o surgimento de novos modelos de família como, por exemplo, a união estável, as monoparentais e as homoafetivas.

Atualmente, deixando-se de lado a família ligada apenas pelos laços sanguíneos e patrimoniais deu-se lugar ao afeto como formador do grupo familiar, uma vez que seus membros estão ligados mais aos laços de afeição propriamente ditos, do que pelos laços consanguíneos. Para Barros (2003, p.142):

Afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família, é mais, é um viés externo que põe mais humanidade em cada familiar, compondo o que ele chama de família universal, cujo lar é aldeia global, mas cuja origem será, como sempre foi, a família.

Em contrapartida, o vocábulo afetividade enseja o conjunto de fenômenos psíquicos que externam-se na forma de emoções e sentimentos. Esclarecendo o conceito Costa (2008, p. 120) define o vocábulo afetividade como sendo:

Formado pela junção dos termos afetivo e (i) dade, que, segundo a psicologia, é o conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre da impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou tristeza. [...] O afeto, do latim affectus, diz respeito à afeição por alguém, inclinação, simpatia, amizade ou amor.

A par disso, entende-se por afeto o laço invisível que envolve os integrantes da entidade familiar, os sentimentos que são constituídos juntos com o grupo, sentimento de amor, amizade, cumplicidade que traz aos seus membros emoções agradáveis. O direito de afeiçoar-se a outrem deve ser revestido de liberdade, ninguém pode ser imputado a amar outro, entretanto deve-se harmonizar liberdade com responsabilidade. Barros (2006) afirma que o afeto por si gera responsabilidade mas não pode gerar medo, e ensina ainda que, o afeto possui função social e é a partir dela que surge a responsabilidade, com essa função social elevando o grau de afetividade para além do direito individual para entrar na seara dos direitos sociais, categoriais e difusos.

Desde logo, a criança e o adolescente necessitam ser nutridos pelo afeto de seus genitores e daqueles que compõem o grupo familiar, através do cuidado, da proximidade física e emocional que são essenciais para o seu desenvolvimento e inserção social. De acordo com Dias (2007, p. 407):

A grande evolução das ciências que estudam o psiquismo humano veio a escancarar a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação. Não mais se podendo ignorar que essa realidade, passou-se a se falar em paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não é direito do pai, mas direito do filho. Com isso, quem não detém a guarda tem o dever de conviver com ele. [...] O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de ordem emocional e reflexos no seu sadio desenvolvimento. O sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua vida.

E finaliza fixando que:

A falta de convívio dos pais com os filhos, em face do rompimento do elo de afetividade, pode gerar severas sequelas psicológicas e comprometer o desenvolvimento saudável da sua prole. A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pela introdução do filho no mundo transpessoal, dos irmãos, dos parentes, da sociedade. Nesse outro mundo, imperam ordem, disciplina, autoridade e limites. A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida.

Diante de todo o exposto, pode-se afirmar com precisão que ainda que a afetividade não seja indenizável, a simples comprovação do dano psicológico deve servir para o reconhecimento de no mínimo, gerar o dever de comprometimento do pai com o correto e sadio desenvolvimento psicológico do filho. Esse dever gerado não se trata de imposição, de transformação do amor em simples moeda, mas sim o reconhecimento de que o afeto é um bem fundamental inerente à pessoa humana. Para Trindade (2011, p. 365) a paternidade por si só provoca o surgimento de deveres e entende que ao se analisar o Código Civil, verifica-se que a própria lei atribui aos genitores além do dever de direção da criação e educação dos filhos, atribui também o dever de tê-los não apenas sob sua guarda, como também sob sua companhia.

O abandono moral e afetivo constitui um dos mais gravosos danos que pode sofrer uma criança e um adolescente, trazendo-lhes inúmeros transtornos psicológicos, bem como uma variedade de implicações negativas em suas vidas, ocasionando problemas comportamentais para sua vida adulta.

Outrossim, a problemática do dever de cuidado, não importa apenas as partes envolvidas na relação, mas também ao Estado que encontra-se constitucionalmente incumbido de cuidar da família tendo-a como pressuposto basilar da sociedade. Em síntese, além da ofensa à integridade física e psíquica resultado de um crescimento desprovido do afeto paterno, o abandono afetivo também se configura em ofensa a vetor axiológico constitucional da dignidade da pessoa humana, que constitui em um bem jurídico que encontra tutela na Lei Maior e que a indenização por dano moral se destina a resguardar.

3. APLICABILIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM VIRTUDE DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO

Ao decorrer deste capítulo, estabelece-se um liame entre os pressupostos da obrigação de se reparar o dano moral e a possibilidade de sua aplicação ao abandono afetivo.

3.1 DA INEXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO LEGAL À APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DE FAMÍLIA

Em primeiro plano, muitos firmados na ideia de existência de singularidades nas relações familiares negam que haja possibilidade de responsabilização pelos pais quanto aos danos causados em decorrência do descumprimento dos deveres parentais aos quais estão sujeitos. Para Branco (2006, p.17,18) calcados na noção primitiva de família acreditava-se que:

As condutas praticadas dentro dos limites das relações familiares, lesivas ou não a quaisquer de seus membros, não se mostrariam permeáveis à incidência das regras da responsabilidade civil [...] erroneamente cultivou-se a ideia de que as relações jurídicas no âmbito da família, por sua natureza marcantemente extrapatrimonial, não admitiria a aplicação dos princípios que embasam a responsabilidade civil.

Entretanto, da leitura do art. 5º, V e X da Constituição Federal bem como dos arts. 186 e 927 do CC/02 depreende-se que o tema é tratado de maneira ampla e irrestrita, podendo-se inferir que também regula as relações familiares. E a ideia de que a responsabilidade civil não se aplica ao Direito de Família não mais se aplica, uma vez que os indivíduos que compõem o núcleo familiar gozam de proteção aos direitos em que são titulares, principalmente os direitos da personalidade, devendo aqueles que os infringiram repará-los ou ao menos compensar os prejuízos suportados. É o que se infere da leitura dos referidos artigos:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

[...]

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. (BRASIL, Código Civil, Lei 10.406/2002)

Ainda para Branco (2006, p.115), não se pode negar ao ofendido a possibilidade de reparação do dano sofrido:

Havendo violação dos direitos da personalidade, mesmo no âmbito da família, não se pode negar ao ofendido a possibilidade de reparação do dano moral. […] A reparação embora expressa em pecúnia, não busca, neste caso, qualquer vantagem patrimonial em beneficio da vítima, revelando-se na verdade como forma de compensação diante da ofensa recebida, que em sua essência é de fato irreparável, atuando ao mesmo tempo em seu sentido educativo, na mediada em que representa sanção aplicada ao ofensor, irradiando daí o seu efeito preventivo.

Assim, não se pode negar a quem suporta um dano o direito a uma reparação, ainda que na maioria dos casos de danos na seara familiar a reparação seja feita em pecúnia, ressaltando-se que esta reparação é revestida de efeito compensatório, posto que, os danos morais à personalidade são irreparáveis e incalculáveis.

É possível ainda afirmar que, nos casos de reparação em relações familiares, a sanção possui caráter educativo no ofensor e na sociedade, que a partir de então agirá com uma maior cautela, de modo a evitar causar dano a outrem.

3.2 A PROTEÇÃO RESGUARDADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL RATIFICADA PELO ECA

Com redação dada pela Emenda Constucional nº 65 /2010 o art. 227, caput da Constituição Federal traz em seu bojo a efetiva proteção por parte da família, sociedade e Estado à criança e ao adolescente:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Nesse mesmo diapasão, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), que tem como finalidade precípua dispor acerca da proteção integral à criança e ao adolescente, estabelece em seu art. 19 que:

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Referida lei ainda ratifica em seu art. 15 o direito da criança e do adolescente ao respeito à dignidade como pessoas humanas que se encontram em processo de desenvolvimento, bem como são sujeitos de direitos civis, humanos e sociais. Ferraz Sampaio apud Serpa Lopes (2001, p.226) aduz que “o lar é uma necessidade para a criação dos filhos. Fora dele não pode existir felicidade. [...] é na atmosfera da família que devem estar os menores porque é nesse meio que melhor pode se desenvolver o seu espírito”.

O ordenamento jurídico brasileiro vigente, no intuito de proteger ao máximo todas as situações que envolvam direitos resguardados pela Carta Magna busca, segundo Lisboa (2004, p.40) “o asseguramento dos direitos da personalidade de cada integrante da família, pouco importando se ele é o genitor, a genitora, ou algum filho havido ou não havido do casamento”.

Dentre os deveres impostos pela Constituição, o dever de cuidado é, senão o mais importante, aquele que envolve a necessária transmissão de atenção, de acompanhamento do desenvolvimento psicológico do infante, e constitui valor crucial à formação da personalidade do menor.

O cuidado compõe um valor jurídico e já foi incorporado no ordenamento jurídico, não com a mesma expressão, mas com termos que reportam a suas diversas desinências. Para Andrighi (2012,p. 8) “ deve ele ser alçado a um patamar de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro adulto”. Neste pensar, o ser humano necessita além do básico para sua manutenção - como alimentação, saúde,moradia, etc. – esses como elementos materiais, precisa também de outros elementos, em sua maioria imateriais os quais são igualmente necessários para a melhor e mais adequada formação do menor – regras de conduta, educação, até mesmo o lazer, etc.

Percebe-se então que, o cuidado é um valor jurídico apreciável, por ser fundamental à formação psicológica do infante, não se procura discutir o amor, pois este é imensurável, não se pode obrigar ninguém a amar o outro. Mas busca-se verificar o cumprimento ou não de um dever legal, de cuidar.

A principal distinção entre amar e cuidar está em que o primeiro caracterizase pela subjetividade e é impossível verificar com precisão a sua materialização, enquanto que o dever de cuidar é composto por elementos objetivos, uma vez que é possível comprovar seu cumprimento através da determinação de ações concretas, tais como: comparações entre o tratamento dado a todos os filhos, se encontra-se equivalente, presença nos momentos importantes da vida destes, contato, entre outros que possam ser avaliados pelo julgador.

Portanto, inúmeros são os textos legais que convergem para o mesmo fim, relacionando deveres aos pais que decidem exercer efetivamente a relação paternofilial, protegendo sempre a criança a fim de que ela possa crescer de forma adequada e saudável do ponto de vista psicológico. O dever de cuidado é um valor jurídico objetivo e encontra-se incorporado no ordenamento jurídico com diversas expressões e termos que manifestam suas diversas concepções, todas voltadas para o mesmo fim que consiste nos deveres de criação, educação e companhia. Com a finalidade de cristalizar a possibilidade de responsabilização por dano moral em virtude de abandono afetivo, atualmente, encontra-se em votação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.294 de 2008 proposto pelo Deputado Federal Carlos Bezerra onde acrescenta parágrafo ao artigo 1.632 da Lei 10.406/2002 (Código Civil) e ao art. 3º da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do idoso) de modo a estabelecer a indenização por dano moral em razão de abandono afetivo, referidos artigos passando a vigorar da seguinte forma:

Lei nº 10.406/2002

Art. 1632 [...]

Parágrafo único: O abandono afetivo sujeita os pais ao pagamento de indenização por dano moral.

Lei º 10.741/2003

Art. 3° [...]

§ 2° O abandono afetivo sujeita os filhos ao pagamento de indenização por dano moral.

Em sua justificativa o Deputado Carlos Bezerra (2008) afirma que a relações familiares não podem ser fundadas apenas em um parâmetro patrimonialistaindividualista, apresentando em que consiste o dever de cuidar dos pais para os filhos:

Entre as obrigações existentes entre pais e filhos, não há apenas a prestação de auxílio material. Encontra-se também a necessidade de auxílio moral, consistente na prestação de apoio, afeto e atenção mínimas indispensáveis ao adequado desenvolvimento da personalidade dos filhos ou adequado respeito às pessoas de maior idade. No caso dos filhos menores, o trauma decorrente do abandono afetivo parental implica marcas profundas no comportamento da criança. A espera por alguém que nunca telefona - sequer nas datas mais importantes - o sentimento de rejeição e a revolta causada pela indiferença alheia provocam prejuízos profundos em sua personalidade.

Diante do exposto, sendo possível a comprovação de que a imposição legal do dever de cuidar foi descumprida implica na ilicitude civil da conduta omissiva do genitor, sob a forma de abandono afetivo, vez que atinge um bem juridicamente tutelado, configurando ato ilícito que somado ao nexo causal e ao dano será passível de reparação. Tornando-se necessário demonstrar a aplicabilidade dos pressupostos do dever de indenizar ao abandono afetivo.

3.3 PRESSUSPOSTOS DA OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO E SUA APLICAÇÃO AO ABANDONO AFETIVO

Primeiramente, cumpre ressaltar, que o dano decorrente do abandono afetivo, antes de mais nada constitui um dano à personalidade do indivíduo. Esta personalidade se manifesta por meio do grupo familiar, o qual é responsável por infundir no menor o sentimento de responsabilidade social.

Hironaka (2007) estabelece que a falta da presença do pai injustificada origina uma dor psíquica e traz, consequentemente um prejuízo à formação da criança, não decorrendo apenas da falta do afeto, mas também do dever de cuidado e proteção que a presença do genitor representa na vida da prole, principalmente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade.

Quando há efetivamente um vínculo de afetividade entre o pai e filho, torna-se mais simples configurar o dano advindo de sua cessação da convivência e do contato, devendo-se demonstrar que a sensação de abandono suportada pela criança foi nociva. A par disso, fica estabelecido que a negligência do genitor em relação ao objetivo final do dever de cuidado constitui ilícito civil.

Quanto à prova da existência do dano Hironaka (2007) ensina que esta “deve ser feita por perícia técnica, determinada pelo juízo, com o intuito de analisar o dano real e sua efetiva extensão”.

Desta forma, como demonstrado na concretização do dano como pressuposto do dever de indenizar torna-se mais que necessária a comprovação da culpa na conduta omissiva do genitor quando se ocultou à convivência com o filho e deliberadamente negou-se a participar do desenvolvimento da personalidade da criança de forma negligente ou imprudente.

No caso de abandono afetivo, com o não cumprimento dos deveres de ordem imaterial concernentes ao poder familiar, que constitui expressão maior da relação paterno-filial, configurar-se-á a culpa em sua modalidade omissiva. Neste diapasão dispõe Hironaka (2007) que “na conduta omissiva do pai ou da mãe estará presente a infração aos deveres jurídicos de assistência imaterial e proteção que lhes são impostos como decorrência do poder familiar”.

Desta forma, não se pode olvidar que há situações em que se pode gerar algum distanciamento entre pais e filhos, tais como divórcio, constituição de nova família entre outras, além das limitações práticas na prestação do dever de cuidado em virtude da alienação parental, a qual, segundo a Ministra Relatora Nancy Andrighi (Recurso Especial nº 1.159.242-SP) em seu voto ressalta que “pode e deve ser arguida como excludente de ilicitude pelo genitor/adotante que a sofra”; bem como as limitações financeiras, distâncias geográficas e etc.

Entretanto, as mais variadas situações práticas cotidianas não podem encobrir completamente a responsabilidade dos genitores em relação a prole. Uma vez que a partir do momento em que decidem procriar ou adotar, diretamente surge o indelegável dever constitucional de cuidado.

Ou seja, mesmo diante das várias hipóteses que poderiam justificar a exclusão da ilicitude da conduta dos genitores em se ausentar do dever de pleno cuidado, o julgador deve ponderar as situações fáticas e atentar que existe um núcleo mínimo de cuidados para com o menor, que garantam ao menos um grau de afetividade adequado à sua formação psicológica e inserção social. Neste pesar relata a ministra Andrighi (2012, p. 12):

Assim, cabe ao julgador ponderar – sem nunca deixar de negar efetividade à norma constitucional protetiva dos menores – as situações fáticas que tenha à disposição para seu escrutínio, sopesando, como ocorre em relação às necessidades materiais da prole, o binômio necessidade e possibilidade.

Quanto ao nexo de causalidade, uma vez que ainda que reste comprovada a conduta omissiva do genitor em abandonar sua prole e que a perícia constate os danos psicológicos sofridos pelo filho abandonado, mais difícil se torna estabelecer o nexo entre tal conduta e o dano sofrido. Por isso, entende-se que é relevante que a perícia procure estabelecer não somente a existência do dano como também sua causa, vez que não se pode impor ao pai uma responsabilidade quando o dano tenha se manifestado em época anterior à efetivação do abandono. A respeito dispõe Hironaka (2007):

Necessário, portanto, a fixação em caráter retrospectivo, da época em que os sintomas do dano sofrido pela criança começaram a se manifestar, pois não se poderá imputar ao pai um dano que tenha se manifestado em época anterior ao abandono, por exemplo, seja este abandono caracterizado pela ausência física do genitor, seja este abandono um abandono em modalidade presencial, com o mau exercício dos deveres decorrentes da paternidade, ainda que o convívio fosse diuturno.

Diante de tudo exposto, depreende-se que os casos de indenização por dano moral perante o abandono afetivo não devem se disponibilizar de forma desarrazoada e desmedida da realidade. A conjuntura construída atualmente é uma adaptação do figurino clássico do instituto da responsabilidade civil às relações que decorram do direito de família. Ademais, o dever jurídico de cuidar existe há tempos, o que ocorre na atualidade é o repensar destes direitos e deveres, interligando-os com o afeto e submetendo-os a uma finalidade para a construção da dignidade humana do indivíduo.

Resta claro que, se utilizada de forma benéfica e com bom senso, a indenização por abandono afetivo poderá ser um instrumento eficaz e de extrema relevância para a transformação em um direito de família adequado às mutações contemporâneas, de forma a assumir um importante papel de educação pedagógica nas relações familiares.

3.4 QUANTO AO VALOR DA COMPENSAÇÃO

Importante, salientar inicialmente decisão esclarecedora quanto à valoração do dano moral, proferida pela 31ª Vara Cível da Comarca de São Paulo – SP (2004):

A indenização do dano moral é sempre o sucedâneo de algo que a rigor não tem valor patrimonial, inclusive e notadamente porque o valor do bem ofendido não se compra com dinheiro. Não se pode rejeitar a possibilidade de pagamento de indenização do dano decorrente da falta de afeto simplesmente pela consideração de que o verdadeiro afeto não tem preço, porque também não tem sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra e a imagem e a dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa praticada contra esses bens. (BRASIL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2004)

Atualmente, umas das maiores problemáticas no quesito de indenização por abandono afetivo está no valor dado a extensão do dano, uma vez que não se pode mensurar um valor ao afeto de um pai para com o filho, bem como o dano moral em si não pode ser calculado. Entretanto, não se pode deixar quem suportou o dano sem ao menos uma compensação pelo sofrido, até porque o ordenamento jurídico vigente prevê a possibilidade de indenização por um dano moral mesmo quando o mesmo é imensurável. Para Angeluci (2006, p. 51):

Não se trata de atribuir, simplesmente, valor pecuniário ao desamor, nem mesmo responsabilizar a pessoa pela ausência desse sentimento nas relações de família. Se a discussão ficar restrita a tal aspecto, não se atingirá o seu ponto fundamental, ou seja, sua grande importância para a própria formação da pessoa.

Nessa mesma linha dispõe Andrighi (2012, p. 10):

[...] pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.

Madaleno (2008, p. 128) entende que:

O dano à dignidade humana do filho em estágio de formação deve ser passível de reparação material, não apenas para que os deveres parentais deliberadamente omitidos não fiquem impunes, mas, principalmente, para que, no futuro, quaisquer inclinações ao irresponsável abandono possam ser dissuadidas pela firme posição do Judiciário ao mostrar que o afeto tem um preço muito caro na nova configuração familiar.

Assim, cai por terra a teoria de que é impossível a compensação do dano moral por abandono afetivo porque este seria incalculável. Pereira (2006, p.84) leciona que:

Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas à sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente. Afinal, eles são os responsáveis pelos filhos e isto constitui um dever dos pais e um direito dos filhos. O descumprimento dessas obrigações significa violação ao direito do filho. Se os pais assim não agem, devem responder por isso. Esta é a resposta que a sociedade deve dar, por meio da Justiça, aos pais abandônicos.

Os genitores são indivíduos que possuem o dever constitucional de cuidar, educar, de assegura a dignidade dos filhos e a sua ausência gera um dano a personalidade do menor que prejudica sua formação social. E diante dessa dor causada pela ausência devem responder juridicamente.

3.5 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E O NASCEDOURO DE UMA NOVA PERSPECTIVA DO DEVER DE CUIDAR

É cediço que atualmente, surgiram novos contornos diante da concepção de família, desaparecendo-se o antigo modelo patriarcal que vigorou durante todo o século XX, a autoridade parental sendo substituída pela estatal, com o Estado possuindo papel principal na proteção da família.

Devido aos novos modelos de constituição de família e relações familiares surgidos na sociedade moderna, o ordenamento jurídico e as soluções apontadas pelo Judiciário devem acompanhar essas transformações. De modo que, já que tais transformações são irreversíveis, os operadores do direito devem a partir de uma interpretação extensiva procurar atenuar seus excessos, apontar soluções viáveis para que a prole possa ter pleno desenvolvimento psicossocial e que desta forma seja construída uma relação mais firme entre os componentes do núcleo familiar. A decisão trazida pelo Superior Tribunal de Justiça, no Acórdão do Recurso Especial nº 1.159.242-SP aplicando o instituto da responsabilidade civil ao abandono afetivo e cristalizando a ideia da imposição legal do dever de cuidar como valor jurídico, trouxe uma nova perspectiva a este dever e tornou-se um sinalizador, consolidando um movimento que há tempos vinha sido defendido pela doutrina, revertendo-se em uma tendência que poderá ser seguida pelos doutos julgadores.

CONCLUSÃO

As diversas mudanças ocorridas nas relações familiares e os variados modelos de entidade familiares que existem são incontestáveis na sociedade contemporânea. Um dos pontos negativos destas mudanças é o consequente afastamento entre pais e filhos. A fim de que fosse possível evoluir junto com a sociedade e que assim pudesse atender seus interesses, o direito também se transformou.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, garantiram-se direitos inerentes a pessoa humana, bem como foram consagrados deveres legais, em especial aos integrantes do núcleo familiar. O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente ratificaram os direitos e deveres dos pais com relação aos filhos. Com o afeto paterno passando a ser reconhecido como papel fundamental para o desenvolvimento saudável da prole.

Na maioria das vezes, a falta da figura paterna ou materna e o descumprimento do dever de cuidar, repercutem negativamente na vida dos filhos provocando desequilíbrios psicológicos passíveis de compensação. Neste pensar, têm-se chegado ao Judiciário, demandas impetradas pelos filhos pleiteando a reparação pelos danos morais causados pela falta de afeto, de cuidado por parte dos genitores.

O dever de cuidar encontra-se no ordenamento jurídico brasileiro, com outras locuções como o dever de educação, por exemplo, sendo consagrado constitucionalmente como valor jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Outrossim, inexiste qualquer restrição legal à aplicação das normas referentes à responsabilidade civil às relações familiares. Ademais, o abandono afetivo constitui um ato ilícito, pois viola o poder/dever de cuidado consagrado na Constituição, que somado ao nexo causal e ao dano suportado pelo filho, torna-se possível sua compensação. Cumpre ainda ressaltar, que a prova da ilicitude da conduta omissiva do genitor faz-se através de perícia técnica, de realização de estudos psicossociais com o menor ou outros meios que o julgador achar necessário.

Igualmente, o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial, sintetiza de forma clara e precisa que o abandono afetivo decorrente da omissão do genitor da prática dos deveres inerentes à paternidade, constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável. Construindo assim, um liame para a concretização do que há muito se discute doutrinariamente e possibilitando a construção de uma nova perspectiva do dever de cuidar dos pais. Entretanto, é de suma importância destacar que apesar de adequada, a responsabilidade civil no direito de família deve ser utilizada pelos operadores do direito com a devida cautela, vez que apenas aplica-se quando restarem comprovados todos os seus requisitos, evitando-se assim demandas aventureiras e que se utilizadas em demasia possam prejudicar ainda mais as relações já desgastadas entre pais e filhos.

Por fim, resta claro que, se utilizada de forma benéfica e com bom senso, a indenização por abandono afetivo poderá ser um instrumento eficaz e de extrema relevância para a transformação em um direito de família adequado às mutações contemporâneas, de forma a assumir um importante papel de educação pedagógica nas relações familiares.

  • Responsabilidade Civil
  • Indenização
  • Dano Moral
  • Abandono Afetivo

Referências

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Thayane Albuquerque Advocacia

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