LEGALIDADE DO PROCEDIMENTO EXECUTÓRIO EXTRAJUDICIAL DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO DO DEVEDOR


06/08/2019 às 16h17
Por Salma Elias Eid Serigato - Advogada

1 INTRODUÇÃO

 O presente artigo visa expor e analisar acerca do procedimento extrajudicial para fins de retomada da garantia imobiliária pelo credor fiduciário nos casos de inadimplemento pelo devedor, analisando sua eficácia e consequências aos contratantes desta modalidade de garantia, à luz da Lei nº 9514/1997 e demais legislação correlata.

De fato, a Lei 9514/1997 impulsionou favoravelmente ao mercado imobiliário brasileiro, possibilitando o acesso à moradia mediante a utilização da garantia da alienação fiduciária. Por este instrumento, permitiu-se ao consumidor adquirir bens (móveis ou imóveis), que servem como garantia contratual enquanto o devedor não adimplir sua dívida.Especialmente quanto à aquisição de bem imóvel, observa-se que tal instituto se mostra eficiente, pois protege os interesses do credor e também não impõe barreiras ao devedor, seja pelo adimplemento da obrigação principal, bem como na fruição do bem objeto da garantia.

Em síntese, por meio da alienação fiduciária, o devedor fiduciante, visando garantir o cumprimento da obrigação, contrata a transferência da propriedade resolúvel e a posse indireta de coisa imóvel ao credor fiduciário, enquanto que o devedor permanece com a posse direta do referido imóvel.Assim, resta claro que o devedor fiducianteé quem transmite ao credor fiduciário a propriedade do imóvel, de forma temporária, enquanto perdurar a dívida. Portanto, uma vez se tratar de contrato de garantia, ao se extinguir o débito, o domínio do bem retorna em sua plenitude ao devedor fiduciante.

Por outro lado, se a extinção da obrigação se der em decorrência do inadimplemento do devedor, o bem imóvel é que responderá pela dívida. E para isto, o credor fiduciário deverá cumprir o disposto na Lei de Alienação Fiduciária, providenciando a notificação do devedor,por meio do Cartório de Registro de Imóveis, para que em quinze dias satisfaça a obrigação vencida e vincenda até a data do pagamento, com os acréscimos e encargos contratuais e legais. Decorrido tal prazo, certificar-se- á o não pagamento do débito pelo oficial do CRI, e, após o pagamento do ITBI, ocredor fiduciário poderá requerer a averbação da consolidação da propriedade perante o Ofício de Imóveis competente, ensejando a realização dos leilões públicos extrajudiciais e apuração ou devolução de eventual saldo remanescente ao devedor (se houver).

Ocorre que certa cizâniatem surgido por conta de interpretações divergentes acerca das regras insculpidas na Lei da Alienação  Fiduciária, tal como ocorre  nos parágrafos 5º e 6º do artigo 27 da Lei 9514/97, impedindo que o credor prossiga na recuperação do crédito após o segundo leilão do imóvel, caso o maior lance ofertado não se iguale nem supere o valor total da dívida e seus acréscimos, ao argumento de que na alienação fiduciária sobre imóvel há salvaguarda da capacidade econômica do devedor, o qual restaria protegido pelos princípios constitucionais e legais de proteção ao devedor.

      Ademais, resta ainda certa dúvida acerca da inconstitucionalidade dos preceitos legais que autorizam a execução extrajudicial à luz do princípio do devido processo legal,o direito de ação e a apreciação de qualquer lesão ou ameaça de lesão de direito pelo Poder Judiciário, dentre outros, sob a alegação de que o devedorexecutado por este procedimento executório tem o direito constitucional de não ser privado de seus bens sem o devido processo legal.

De outra sorte, a execução extrajudicial deve ser interpretada pela sua constitucionalidade, uma vez que tal instituto não viola preceitos constitucionais, conforme será exposto no decorrer do presente artigo.

 

2 DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BEM IMÓVEL

                  Traçadas as linhas gerais acerca do tema em comento, mister delinear acerca das características da alienação fiduciária, o que adiante se passará a expor, senão vejamos.

                 

2.1. Conceito

                  De acordo com o disposto no artigo 22 da Lei 9.514/1997, em geral, a alienação fiduciária pode ser assim conceituada:

                  Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa móvel.

                  Conforme leciona Renan Miguel Saad, em sua obra “A Alienação Fiduciária sobre bens imóveis” (2001, p. 82), a alienação fiduciária pode ser conceituada como um contrato de efeitos reais que visa à constituição de direito real acessório de garantia, segundo o qual se transfere ao fiduciário (credor) a propriedade resolúvel e a posse indireta de uma coisa, com a finalidade de assegurar o cumprimento da obrigação principal pelo fiduciante (devedor) que se tornará possuidor indireto do aludido bem. Desta forma, em breve síntese, conclui-se que a alienação fiduciária de coisa imóvel, assim como a bem móvel, é espécie do gênero negócio fiduciário, pois, ambos os institutos realizam a transmissão da propriedade ao fiduciário unicamente para garantir outro negócio jurídico, tido como principal, o qual, uma vez cumprido, retornará ao fiduciante sem nenhum embaraço.

                  Ademais, a alienação fiduciária de imóvel constitui um direito real de garantia, no qual o devedor fica investido de um direito expectativo, que corresponde ao direito aquisitivo da propriedade que alienara em garantia, recuperando-a automaticamente uma vez recuperada a condição resolutiva. Por outro lado, o credor fiduciário, titular da propriedade resolúvel e nessa condição, quedando-se inadimplente o devedor, poderá resolver o contrato, mediante consolidação da propriedade do imóvel em seu favor através do procedimento extrajudicial próprio previsto em lei.

 

2.2. Natureza Jurídica

                  A alienação fiduciária em garantia se dá por meio de um contrato acessório, de garantia, típico, formal, oneroso, bilateral e comutativo.

                  Diz-se que é um contrato acessório, pois o que se pretende não é a transferência do domínio pleno e irreversível do bem ao credor fiduciário, mas sim, tem como objetivo apenas garantir ao credor contra eventual inadimplência do devedor no tocante ao cumprimento de uma obrigação principal. Pode-se afirmar também que se trata de um contrato de garantia por excelência, uma vez que nasce para garantir um crédito gerado por outro contrato, tido como principal.

                  É também um contrato típico, pois suas regras são ditadas de forma precisa pela lei.

                  Trata-se de um contrato formal, portanto, escrito, revestido de formalismo inclusive registrário, pois é necessário ser levado a registro público a fim de constituir a propriedade fiduciária e para adquirir validade contra terceiros, ou seja, a alienação fiduciária é o contrato e a garantia é a propriedade fiduciária, que é instituída como consequência do registro do contrato de alienação fiduciária.

                  É ainda um contrato oneroso, pois ambas as partes têm como objetivo a obtenção de vantagens ou benefícios, impondo-se a cada uma delas determinados encargos.       

                  Diz-se ainda que se trata de um contrato bilateral, uma vez que gera obrigações ao credor fiduciário e ao devedor fiduciante.  Vale dizer, ao credor fiduciário, pois, ficará com a propriedade e a posse indireta do bem enquanto perdurar a obrigação, devendo devolvê-la ao fiduciante assim que a obrigação estiver totalmente cumprida. E ao devedor fiduciante, pois se compromete a pagar a dívida no prazo combinado, limitando-se a permanecer com a posse direta do bem.

                  É também um contrato comutativo, pois as obrigações decorrentes do contrato são conhecidas previamente pelas partes e guardam entre si relativa equivalência de valores.

 

2.3 Características

                  A alienação fiduciária apresenta duas características, a saber: resolubilidade e restrição da propriedade.

                  A característica da resolubilidade está presente, pois quando o contrato de alienação fiduciária é firmado, transfere-se a propriedade ao fiduciário somente para garantia da dívida, sendo, portanto, tal propriedade considerada  resolúvel e o domínio a ele transferido sofre limitação temporal, pois, uma vez cumprida a obrigação pelo fiduciante, este, automaticamente, em razão da resolubilidade da propriedade fiduciária, recobra a condição de proprietário pleno do bem e os efeitos do implemento da condição são retroativos.

                  A característica da restrição de propriedade está presente, pois, é cediço que o credor fiduciário não recebe a coisa com o ânimo de tê-la para si como sua de forma plena e definitiva; antes, se obriga a restituí-la ao fiduciante assim que cumprida a obrigação. Por isso, a propriedade do fiduciário sofre restrições, pois, uma vez cumprida a obrigação, o efeito do implemento da condição resolutiva é ex tunc e o fiduciário jamais terá as faculdades de usar e perceber os frutos da propriedade que somente foi transmitida com a finalidade de garantia. Esta característica está prevista no artigo 25 da Lei 9.514/1997.

 

3 EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO

            Conforme já explicitado, a obrigação garantida pela alienação fiduciária extinguir-se-á pelo seu cumprimento, ou seja, pelo pagamento da dívida ou ainda, pelo seu inadimplemento.

            Portanto, se houver o pagamento da dívida, o bem alienado fiduciariamente será restituído ao devedor (alienante). Por outro lado, se a extinção da obrigação se der por força do inadimplemento da obrigação pelo devedor, o bem alienado responderá pela dívida.  

            Neste ponto, vale destacar que a Lei 10.931/2004 inseriu o § 8° no artigo 26 da Lei 9.514/1997, possibilitando ao fiduciante, desde que com a devida anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, proporcionando ao fiduciário a consolidação, em seu nome, da propriedade plena do bem imóvel.

 

3.1 Pagamento e suas consequências

            O artigo 25 da Lei 9.514/1997 é clara ao dispor que, com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se a propriedade fiduciária do imóvel e o faz nos mesmos termos do artigo 1.359 do Código Civil, aplicável à alienação fiduciária em garantia por força do artigo 33 da Lei de Alienação Fiduciária.

            De igual forma, também se aplica o disposto no artigo 304 e seguintes do Código Civil, no que diz respeito ao pagamento da obrigação pelo devedor principal (fiduciante) e seus coobrigados, os quais, em caso de pagamento, subrrogam-se no crédito e na garantia fiduciária, conforme prevê o artigo 31 da Lei 9.514/1997.

            Importante esclarecer que o artigo 31 da supracitada Lei, refere-se ao fiador e também ao “terceiro interessado”, sendo certo que tais pessoas só poderão efetuar o pagamento desde que constituído em mora o devedor fiduciante, nos termos do artigo 26 da lei em questão e desde que haja o pagamento da dívida em sua integralidade, com a extinção da obrigação. Se, porém, o terceiro interessado (ou fiador) satisfizer somente algumas parcelas da dívida, será aplicado o disposto no artigo 350 do Código Civil, com respectivo direito de regresso apenas sobre o valor que efetivamente foi pago por ele, no limite e proporção das importâncias pagas.

            Na qualidade de titular do crédito e legitimado a recebê-lo está o credor fiduciário ou seu cessionário a qualquer título.

            Desta forma, o pagamento é o fato jurídico que fará extinguir a obrigação e nos termos do artigo 25 da Lei 9.514/1997, uma vez resolvida a propriedade fiduciária do imóvel, o fiduciário fornecerá ao fiduciante o termo de quitação no prazo de trinta dias, instrumento este que deverá ser averbado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente para cancelamento do registro da propriedade fiduciária, fazendo com que a propriedade plena do imóvel, automaticamente e por força da lei, imediatamente retorne ao fiduciante.

            A inclusão do § 8° no artigo 26 da Lei 9.514/1997 também possibilitou ao devedor fiduciante, mediante anuência do credor fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, dando ensejo à consolidação da propriedade em nome deste, que ficará dispensado de cumprir os procedimentos previstos no artigo 27 da referida lei. Esta previsão legal vislumbrou alcançar os interesses tanto credor fiduciário quanto do devedor fiduciante, que se estiver em dificuldades financeiras que o impeça de cumprir com o pagamento da dívida, poderá resolver esta questão sem burocracia, através da rápida e eficiente recuperação do crédito pelo fiduciário, que estará desobrigado de cumprir o disposto no artigo 27 da Lei 9.514/1997 e ainda sem necessidade de constituir o devedor fiduciante em mora.

 

3.2 Do inadimplemento e suas consequências

             Efetivamente, uma vez inadimplida a obrigação de pagamento pelo devedor fiduciante, o credor fiduciário poderá recuperar seu crédito em sede de execução judicial ou pelo procedimento extrajudicial de consolidação em seu nome, da propriedade fiduciária do bem imóvel que foi lhe dado em garantia.

            É cediço que  a Lei 9.514/1997 foi bem recepcionada no ordenamento jurídico pátrio, pois,  visa proporcionar eficácia e celeridade na recuperação do crédito, portanto, é por óbvio, que o credor fiduciário acabará por optar pelo procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária em seu nome, através de requerimento formulado ao cartório de registro de imóveis competente.

            Assim, o artigo 26 e seguintes da Lei 9.514/1997 preceitua que o devedor fiduciante deverá ser intimado, a requerimento do credor, pelo oficial do Cartório de Registro de Imóveis competente, isto é, aquele em que o imóvel estiver matriculado, para que no  prazo de quinze dias, satisfaça a obrigação de pagamento das prestações vencidas e vincendas até a data do pagamento, acrescido dos juros convencionais, as penalidades e demais encargos contratuais e legais, inclusive tributos, contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

            O § 2° do artigo 26 da lei em comento, estabelece que o prazo de carência, após o qual será expedida intimação ao fiduciante para purgar a mora, deverá ser definido em contrato, acrescido dos demais requisitos elencados no artigo 24 da mesma lei.

            O credor fiduciário deverá instruir o requerimento de intimação do devedor fiduciante, para fins de purgação da mora, com o respectivo demonstrativo do débito e o Oficial do Registro de Imóveis intimará pessoalmente o devedor para efetuar o pagamento no prazo de quinze dias, nos termos do  § 1° do artigo 26 da Lei 9.514/1997. Caso o devedor não seja encontrado ou estiver em lugar incerto e não sabido, o fato deverá ser certificado e competirá ao oficial do Registro de Imóveis promover a intimação editalícia, com o integral cumprimento do disposto no § 4° do artigo 26 da Lei 9.514/1997 referente à publicação do edital por três dias em jornal de maior circulação local ou comarca de fácil acesso caso no local não houve imprensa diária.

            Destaca-se ainda, a introdução dada pela recente Lei 13.465/2017 ao §3º item A ao artigo 26 da Lei em comento, que se coaduna com o disposto nos artigos 252 a 254 do Código de Processo Civil vigente, ampliando a possibilidade de considerar o fiduciante intimado, na hipótese de sua flagrante ocultação.

            Se o devedor fiduciário purgar a mora, nos termos do §5° do artigo 26 da referida lei, convalescerá o contrato de alienação fiduciária. O oficial de Registro de Imóveis deverá entrega ao credor fiduciário, no prazo de três dias, as importâncias recebidas, deduzidas as despesas de cobrança e intimação, nos termos do § 6° do artigo 26 da referida lei. Por certo que com o pagamento do débito, restabelece-se a conservação do negócio fiduciário.

 

3.3 Da consolidação da propriedade em mãos do credor fiduciário

            Em contrapartida, nos termos do §7° do artigo 26 da Lei 9.514/1997, caso o devedor não faça a purgação da mora no prazo legal, o oficial do CRI competente deverá certificar o fato, ensejando ao credor fiduciário que realize o pagamento dos impostos devidos (ITBI) e requeira a consolidação da propriedade do imóvel em seu nome, mediante averbação no respectivo Cartório de Registro de Imóveis.

            Após a consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária e em atendimento ao disposto no artigo 27 da supracitada lei, esta, no prazo de trinta dias a contar da data da averbação da consolidação na matrícula do imóvel, deverá promover leilão público para alienação do imóvel, exceto se o fiduciante utilizar-se do disposto no § 8° do artigo 26 da Lei 9.514/1997, já anteriormente mencionado.

            No primeiro leilão, o imóvel não poderá ser vendido por preço inferior ao seu valor de mercado, de acordo com a indicação no contrato de alienação fiduciária (artigo 24, VI) e, se não houver licitantes, nos quinze dias subsequentes, será realizado o segundo leilão, no qual poderá ocorrer a arrematação do imóvel pelo maio lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida e demais encargos e tributos, conforme prevê o art. 27 § 2º da lei em questão.

            Assim, se o produto da venda em leilão for superior à importância devida pelo devedor, o credor entregará àquele o saldo remanescente, nos termos do artigo 27 §4º da lei.

            Entretanto, se o maior lance ofertado for recusado por não se igualar ao mínimo exigido, isto é, pelo valor da dívida acrescido dos encargos legais, tributos, contribuições condominiais (se houver), então, a dívida será considerada extinta e o credor, no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, dará ao devedor a quitação da dívida mediante termo próprio, de acordo com o artigo 27 §§ 5º e 6º da Lei 9.514/1997, mesmo que a dívida seja superior ao valor do bem. Por outro lado, se o total do débito for inferior ao valor do imóvel, exonera-se o credor de entregar eventual quantia excedente.

 

4 A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

            Conforme já comentado na introdução, certa cizânia tem surgido por conta das interpretações divergentes acerca das regras insculpidas na Lei da Alienação Fiduciária.

A exemplo disto, tem-se a dúvida sobre a incidência ou não do artigo 53 da Lei 8.078/1990 e neste sentido, mister esclarecer que tal regra não se aplica no que diz respeito à alienação fiduciária de imóveis, a uma, porque as leis especiais prevalecem sobre as gerais, e, neste caso, a Lei da Alienação Fiduciária de imóveis prevalece sobre o Código de Defesa do Consumidor. Ademais, é evidente que as parcelas pagas pelo devedor fiduciante são mera amortização daquilo que recebeu previamente do credor fiduciário para aquisição do imóvel, mais encargos e taxas contratuais inerentes a qualquer contrato de empréstimo.

O doutrinador Antonio Carlos Camargo Dantzger (2007, p.86), leciona que: “Sendo certo que as leis especiais prevalecem sobre as gerais, em caso de antinomias, e sendo certo também que a lei que regula a alienação fiduciária de bem imóvel é lei especial em relação ao Código de Defesa do Consumidor, então, parece-nos inaplicável o art. 53 do mesmo, havendo de prevalecerem os ditames da Lei 9.514/1997.”.

De acordo com os ensinamentos de Afranio Carlos Camargo Dantzger (2007, p. 89), “Admitir-se a devolução das parcelas pagas seria o mesmo que se admitir que, num contrato de empréstimo bancário comum,fosse o credor obrigado a devolver, na hipótese de inadimplemento do devedor, as quantias recebidas a título de amortização da dívida. Ora, o dinheiro é do próprio credor que o adiantou ao devedor, não havendo, assim, como se admitir seja o credor obrigado a devolver aquilo que recebeu em pagamento.”

            Outra polêmica questão acerca do caso em comento,refere-se sobre a aplicabilidade ou não da Teoria do adimplemento substancial do contrato na alienação fiduciária de imóveis. Neste sentido, em que pese inúmeros entendimentos contrários, poder-se-ia dizer que é o caso de se aplicar a decisão análoga do Superior Tribunal de Justiça, que pacificou entendimento de que tal teoria não se aplica nos casos previstos pelo Dec. Lei 911/69.

            De outra sorte, a questão acima mencionada não é unânime perante os tribunais, especialmente a respeito do percentual mínimo a ser exigido nos casos de contrato de alienação fiduciária de imóveis, a ponto de se aplicar a teoria do adimplemento substancial do contrato e sobretudo por fazer valer os princípios constitucionais da proteção ao devedor, a boa-fé objetiva e a função social do contrato.

            Não bastassem as polêmicas supramencionadas, convém mencionar sobre o entendimento de alguns estudiosos que alegam vício da inconstitucionalidade do procedimento executório extrajudicial para retomada dos imóveis decorrentes de alienação fiduciária, ao argumento de que a execução extrajudicial fere determinados preceitos constitucionais.

            Segundo esta linha de pensamento, o procedimento de execução extrajudicial afronta o princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrada pelo artigo 5º XXXV da Constituição Federal, que assim prescreve: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

            O princípio constitucional referido acima está estreitamente ligado à garantia constitucional de acesso à justiça e por ele se garante a todos que o Poder Judiciário não deixará de aplicar o direito de forma a atender os anseios do cidadão na solução de seus problemas.

            Esta mesma corrente contrária ao procedimento extrajudicial, alega ainda afronta a outros princípios constitucionais, tais como o artigo 5º LIV da Constituição Federal, que prevê que “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ao argumento de que os mutuários executados por tal procedimento têm o direito constitucional de não serem privados de seus bens ou de sua casa onde residem com sua família, sem o devido processo legal.

            Acrescente-se ainda, outros preceitos invocados pelos adeptos da corrente contrária, tais como inciso XXIII (a propriedade atenderá sua função social), inciso XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção),inciso LV (aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes), todos do artigo 5º da Carta Magna.

 

4.1 Entendimento contrário ao procedimento executório           

            Uma vez traçadas as considerações do item quatro, é relevante expor e analisar o entendimento daqueles que são contrários ao procedimento executório extrajudicial.

Neste sentido, é apropriado esclarecer que este tipo de procedimento foi regulado pelo Dec. Lei 70/1966, que instituiu a cédula hipotecária e disciplinou a forma de execução do crédito representando no título hipotecário e, por meio do artigo 31 do aludido decreto, atribui-se ao agente fiduciário a condução do processo executivo.Por consequência, subtrai-se do Poder Judiciário sua função indelegável e própria como detentor do monopólio da jurisdição. Além disto, não se assegura possibilidade de defesa ao executado, ferindo a garantia da ampla defesa. Portanto, em face de Constituição Federal, é indubitável a inconstitucionalidade deste tipo de procedimento extrajudicial, eis que o mesmo entendimento se estende a cobrança extrajudicial prevista na Lei 9.514/1997.

           

4.2 Entendimento favorável ao procedimento executório

            Por outro lado, a corrente favorável ao procedimento executório, defende que a execução extrajudicial somente tem início após a devida ciência do devedor fiduciante. Desta forma, uma vez intimado da execução extrajudicial, o devedor poderá opor resistência extrajudicial ou judicial, podendo inclusive purgar a mora até o segundo leilão, nos termos do §2º, item da L 9.514/1997.

            Além do mais, o ordenamento jurídico atual prevê a possibilidade da antecipação parcial ou total dos efeitos da tutela, oportunizando pleno acesso ao Judiciário, desde que haja, por óbvio, a iniciativa do interessado, no caso, do devedor fiduciante. É o que preconiza o artigo 356 inciso I do Código de Processo Civil vigente.

            Importante salientar também que se o devedor fiduciante sentir-se ameaçado por qualquer lesão ou ameaça a seu direito, tem ele à sua inteira disposição inúmeras ações judiciais cabíveis com o escopo de atacar o ato ou fato lesivo ou ameaçador, oportunidade em que o livre contraditório e ampla defesa poderão ser exercidos e garantidos pela Lei Maior. Cita-se como exemplo a possibilidade de se propor as seguintes ações: ação cautelar com pedido de liminar, ação ordinária com pedido de tutela antecipada, ação de consignação em pagamento, ação anulatória de ato jurídico, ação revisional de cláusulas contratuais cumulada com repetição do indébito, ação de prestação de contas, dentre outras.

            Diante da exposição acima, conclui-se que o procedimento executório previsto no Dec.Lei 70/1966 nada tem de inconstitucional e, por conseguinte, de modo análogo, a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor fiduciário na forma prevista pela Lei 9.514/1997, ainda que se dê extrajudicialmente, também não deve ser considerada inconstitucional.

 

4.3 Legislação correlata

É cediço que o surgimento da alienação fiduciária em garantia ocorreu da real necessidade de se estimular a economia brasileira por meio do aumento de crédito aos consumidores, fomentando o acesso de parte da população ao crédito e possibilitando o acesso ao consumo de bens. De acordo com os ensinamentos dos doutrinadores Paulo Restiffe Neto e Paulo Sergio Restiffe (2000, p. 161), a alienação fiduciária em garantia surgiu com a legislação de mercado de capitais, consoante artigo 66 da Lei 4,728/65 e ganhou autonomia com o Decreto-Lei 911/69, atingindo seu ápice com a aprovação da Lei 9.514/97, que definiu no artigo 22 o conceito legal deste instituto, além de prever toda a sistemática para execução extrajudicial de retomada do imóvel em caso de inadimplemento pelo devedor fiduciário.

A referida lei já sofreu alterações por meio das leis 10.931/2004, 11.481/2007, 12.810/2013 e 13.097/2015que aperfeiçoaram alguns procedimentos e recentemente, a Lei 13.465/2017 também trouxe significativas alterações à Lei 9.514/1997, como adiante se constatará.

Inclusão do  § 3º-A e § 3º-B ao artigo 26 que adequou o procedimento de intimação do devedor fiduciante à sistemática da lei processual civil vigente, em especial com a possibilidade de intimação do devedor através de citação por hora certa.

Inclusão do  § 2º-A do artigo 27 que estabeleceu a obrigatoriedade de que o devedor fiduciante seja comunicado sobre a realização dos dois leilões públicos, mediante envio de correspondência para os endereços do contrato, inclusive endereço eletrônico. Tal inclusão traz maior transparência ao procedimento e pode evitar eventual contestação judicial acerca da ciência do devedor, além de sistematizar o exercício do direito de preferência do fiduciante à aquisição do imóvel.

Inclusão do parágrago único ao artigo 24 e alteração da redação do § 1º do artigo 27 da Lei 9.514/1997, através dos quais, para fins de vnda do imóvel no primeiro leilão, observar-se-á o valor mínimo utilizado como base de cálculo do ITBI, exigível qando da consolidação da propriedade do imóvel. Entenda-se aqui o valor mínimo como sendo o valor venal, consoante o disposto no artigo 38 do Código Tributário Nacional. Tais medidas visam eliminar a alegação de preço vil pelo devedor fiduciante, porém, tais alterações  também restringem a liberdade das partes e diminuem as probabilidades de arrematação do imóvel no primeiro leilão.

Inclusão do § 2º-B ao artigo 27 que introduziu o direito de preferência do devedor fiduciante na aquisição o imóvel, desde que o exerça até a data da realização do segundo leilão e pague todas as despesas, inclusive o valor do ITBI e eventualmente laudêmio, arcados pela credora fiduciária. Esta inclusão é uma forma de nova aquisição do imóvel, com preferência ao devedor fiduciante que poderá quitar a dívida e não perdeu o imóvel.

Alteração da redação do artigo 37-A, que fixou a data que incidirá a taxa de ocupação do imóvel, passando o marco inicial a ser aquele da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e não mais a data da alienação do imóvel em leilão. Tal alteração objetivou desencorajar o devedor fiduciante a permanecer no imóvel em caso de não purgação da mora e respectiva execução extrajudicial da dívida, o que poderá refletir, inclusive, num aumento significativo nos acordos para que os devedores desocupem os imóveis.

Em virtude das considerações acima explanadas, diz-se que a recente Lei 13.465/2017, de forma geral, visa desburocratizar procedimentos, o que é bem visto por entidades do setor produtivo, porém, as críticas também são vistas por entidades da sociedade civil que temem o fato desta desburocratização resultar em maior desequilíbrio entre as partes envolvidas. O que não se pode olvidar, porém, é que de fato, o objetivo do conjunto destas regras surgiu da vivência dos problemas e discussões mais comuns na execução fiduciária de bens imóveis e visa salvaguardar os dois polos da relação, evitando abusos de ambas as partes e reduzindo incertezas e, por derradeiro, fortalecendo ainda mais o instituto da alienação fiduciária, que foi um dos propulsores do boom imobiliário vivenciado no Brasil, viabilizando investimentos crescentes e possibilitando melhor acesso para aquisição de imóveis pela população em geral.

 

CONCLUSÃO           

Por meio do presente artigo, buscou-se delinear a importância do instituto da alienação fiduciária, especialmente no que diz respeito à legalidade do procedimento executório extrajudicial de imóveis, analisando as suas implicações frente aos princípios constitucionais de proteção do devedor.Vale ratificar que desde a sua criação, a Lei 9.514/1997 buscava fomentar o mercado imobiliário, especialmente na questão do acesso à moradia e por possibilitar aos investidores do Sistema de Financiamento Imobiliário uma forma rápida de recuperar seu crédito por meio da consolidação da propriedade e posterior venda em leilão público, obedecido os exatos termos da lei, o que somente ocorrerá no caso de inadimplemento do devedor fiduciante.

É certo que muitos autores militam contra a constitucionalidade do procedimento executório extrajudicial, ao argumento de que esta forma de atuação do agente fiduciário extirpa da apreciação do Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, que é função indelegável e própria do juiz natural, uma vez que somente este seria o único capaz de assegurar a imparcialidade no tratamento das partes.Não bastasse tal argumento, esta corrente contrária ao procedimento executórioextrajudicial, alega afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e dos direito fundamentais à propriedade e moradia. Registre-se ainda que tal questão, ainda não pacificada pelos tribunais, é tema inclusive de Repercussão Geral perante o Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário 860.631 RG/SP de relatoria do Ministro Luiz Fuxe que foi tomada por maioria no Plenário Virtual do STF.

Apesar das divergências quanto à constitucionalidade ou não do procedimento extrajudicialda forma prevista pela Lei 9.514/1997, é certo que o Poder Judiciário poderá ser invocado pelo devedor fiduciante a qualquer momento, seja antes, durante ou mesmo após a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário.Além disso, esta modalidade de execução extrajudicial visa dar celeridade na solução da inadimplência, através da recuperação do bem imóvel quando constatada a não purgação da mora pelo devedor, ao passo que as outras formas de garantias reais existentes no ordenamento jurídico se mostram muitas vezes ineficazes ante a dificuldade e morosidade do processo judicial.

Em virtude dessas considerações, é importante frisar que o procedimento executório extrajudicial da alienação fiduciária de imóveismostrainúmeras vantagens, especialmente por sua atuação rápida, simples e sem ferir preceitos constitucionais. O reflexo deste procedimento é a tendência na desburocratização do sistema de recuperação de crédito nacional, que deveria evoluir a fim de se adequar aos moldes do mercado atual e atendendo aos anseios dos investidores internos e externos e possibilitando maior acesso à moradia à população de modo geral.

  • Alienação fiduciária imóveis
  • Inadimplemento do devedor
  • Legalidade procedimento extrajudicial
  • Retomada garantia imobiliária

Referências

Link: https://jus.com.br/artigos/67848/legalidade-do-procedimento-executorio-extrajudicial-da-alienacao-fiduciaria-de-imoveis-face-aos-principios-constitucionais-de-protecao-do-devedor

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Salma Elias Eid Serigato - Advogada

Advogado - Londrina, PR


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