No que diz respeito às atuações parlamentares brasileiras, é rotineiro no cenário se deparar com as avalanches de denúncias sobre a “quebra” do decoro. São “bocas cheias” de embasamentos morais e legais quando o propósito é apontar o comportamento incompatível vindo do outro.
Sem adentrar, de plano, em situações práticas, vamos refletir sobre o que a Constituição da República retrata sobre a imunidade e o decoro parlamentar:
Em seu artigo 53, “caput”, é disposta a inviolabilidade civil e penal dos parlamentares, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, permissa vênia para o destaque, já que o foco desse artigo será quanto às prerrogativas destinadas a essa “população” representativa no Poder Legislativo brasileiro, e as incompatibilidades com o decoro, também constitucionalmente previstas.
Uma vez destacadas as prerrogativas de imunidade; mais adiante, no artigo 55, “caput” o legislador elenca os motivos de perda de mandato do parlamentar que (falaremos exclusivamente da razão que motivou a reflexão por esse artigo):
(...)
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar (grifo nosso).
Em seu §1º temos a definição sobre a incompatibilidade acima referida:
§1º. É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
Ora, meus caros leitores, pensemos juntos sobre a subjetividade apontada nesse conceito. Não avaliando a questão formal ou material das prerrogativas em si, mas generalizando, assim como o legislador o fez no parágrafo supracitado, passemos a avaliar criticamente o dispositivo, diante de alguns casos concretos.
Um caso interessante foi o do Deputado Natan Donadon (sem partido-RO), que resumidamente, exemplificarei:
O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara instaurou o processo de cassação do referido parlamentar, sob o argumento de quebra de decoro parlamentar, isso ocorreu após absolvição do deputado pelo plenário da Câmara.
Tá “serto”. Dito isso! Pasmem vocês, alguns deputados questionaram a validade da representação com o argumento de que o plenário da Câmara absolvera Donadon.
O Presidente do Conselho, Ricardo Izar (PSD-SP), explicou que a absolvição ocorreu em função da decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou a cassação do mandato do parlamentar e que a representação, em análise no conselho, é por quebra do decoro parlamentar. Segundo Izar, são duas questões diferentes.
Vale ressaltar, que a mencionada cassação determinada pelo STF se deu tão somente em razão de uma condenação a mais de 13 anos de prisão pelos crimes de peculato e formação de quadrilha. Tal decisão foi motivada pelo desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia à época em que ele era diretor financeiro da Casa. O deputado está preso no Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, desde o dia 28 de junho de 2013.
Ainda assim, o parlamentar, em primeira sessão de votação, mesmo preso, só foi afastado do cargo em razão do recolhimento à prisão (até porque, convenhamos, seria difícil continuar na ativa de dentro do presídio).
Esse é um caso perfeito para se demonstrar a forma “democrática” de atuação dos nossos representantes, no que diz respeito à relativização do parágrafo primeiro do artigo 55, da Constituição da República do Brasil.
Ora, caros leitores, votação para definir a cassação de mandato, num caso em que se obteve a condenação de um parlamentar por desvio de seja lá qual for o valor e ainda que fosse ínfimo (o que não é o caso) enquanto no exercício de uma atividade de interesse público, sendo que há uma norma expressa que conceitua o tema.
Ou será questionável que essa atitude seja diversa do que se caracteriza como “abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”, ou ainda que não possa ser entendida como “percepção de vantagens indevidas”?
Questionável é ter de se votar para chegar a tal conclusão, e mais ainda é questionável votação secreta sobre o assunto!!!
Ah, isso é assunto para cada segundo da vida dos cidadãos brasileiros.
Racionalmente e finalmente, menos mal, foram decididas as votações abertas para os casos de quebra de decoro parlamentar e, ainda bem, que após isso, somente um teve “coragem” de se abster sobre a cassação do deputado condenado.
O que concluo e desabafo sobre tudo isso, é que uma democracia marginalizada pela corrupção, pelos interesses partidários, pelo foco no “próprio umbigo” e pela ganância de uma população representativa, faz sufocar a voz dos que são dignos, faz desmerecer a educação e os valores morais e éticos, e o que mais revolta é que essas decisões são tomadas em nosso nome, são legítimas, portanto.
Ah, podemos mais, podemos falar, podemos nos manifestar, e assim como os parlamentares têm prerrogativas em nome do povo brasileiro para atuar, digna ou indignamente, como temos visto, até mesmo de terem votos favoráveis para a manutenção de seus mandatos, mesmo quando presos por condenação em crimes contra esse povo que é por eles representado, nós podemos expressar nossos sentimentos contra uma legislação que não é efetivamente cumprida em favor do povo, porque aqueles que legislam, na maioria das vezes, são os que corrompem o sistema e dificultam a punição dos que corrompem.
O povo pode mais e deve se inteirar melhor sobre as políticas públicas, sobre as atuações em plenários, para assim, se manifestar inteligentemente e compreender que há caminhos poderosos e dignos de revolução eletiva e se não fosse uma manifestação ocorrida sobre esse caso citado, possivelmente, as votações seriam mantidas em secreto e o mandato do referido condenado, seria mantido.
Ademais, que possamos começar praticando essa dignidade requerida, em nosso dia a dia, respeitando o próximo em seus direitos, buscando os nossos direitos, manifestando entendimento plausível e coerente sobre eles, e mais do que isso, entendendo e batalhando pelo direito da coletividade, ainda que para isso, tenhamos de nos abster de nossas autoverdades.
Esse artigo será o primeiro de muitos, por meio dos quais poderemos interagir sobre os assuntos jurídicos, morais e éticos do nosso país. Manifestando nossas opiniões de forma democrática e respeitosa, ainda que sejam divergentes.
Que possamos questionar, somar, unir forças, sem dividir valores, mas preservá-los.
Rute Veiga Garcia
“Os homens que criam o poder trazem uma contribuição indispensável à grandeza da Nação, mas os homens que questionam o poder trazem uma contribuição igualmente indispensável, especialmente quando o questionamento é desinteressado, pois eles determinam se usamos o poder ou se o poder nos usa.”
(John F. Kennedy)