Nos últimos tempos estamos acompanhando por meio da grande mídia inúmeros casos de mortes no trânsito envolvendo motoristas embriagados ou com suspeita de embriaguez. Esse problema, infelizmente, tem se tornado cada vez mais frequente, sendo que a indignação causada por tais acidentes acaba desvirtuando o entendimento de alguns aplicadores do Direito.
Pressionados pela mídia na maioria das vezes desqualificada ou, ao menos, sem o devido preparo para tratar o assunto alguns profissionais do Direito estão rasgando os seus diplomas e deixando de lado tudo o que estudaram na faculdade com a desculpa de se fazer justiça. Frequentemente nos deparamos com juristas da mídia e até repórteres falando em dolo eventual, em o motorista embriagado assume o risco de produzir o resultado etc. Ao ouvir tais comentários nos perguntamos se essas pessoas realmente sabem o que dizem.
O intuito deste trabalho é explicar de maneira clara e objetiva toda a problemática que envolve esse tema, possibilitando o entendimento do leitor, ainda que ele não seja da área jurídica. Como se trata de uma questão que aflige toda a sociedade é justo que o cidadão comum entenda todos os pontos que cercam esse assunto.
De início, já deixamos clara nossa opinião no sentido de que na maioria dos casos em que houver morte no trânsito e motorista embriagado, o fato será melhor enquadrado no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Em outras palavras, tratar-se-á de um crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, em que o agente não teve a intenção de matar.
A seguir, passaremos a discorrer sobre o tema e fundamentar nossa opinião.
Dolo eventual e culpa consciente
Rogério Greco nos ensina que dolo é a vontade e consciência dirigidas a conduta prevista no tipo penal incriminador. De maneira ainda mais simplificada, podemos afirmar que há dolo quando uma pessoa possui a vontade e a consciência de cometer um crime.
Se, por exemplo, um sujeito durante uma caçada confunde o amigo com um animal e atira nele, vindo a matá-lo, tal indivíduo não pode ser responsabilizado pelo crime previsto no artigo 121 , caput, do Código Penal (homicídio doloso), uma vez que ele não tinha a consciência de que atirava contra seu amigo. Nesse caso, o dolo deve ser afastado, restando configurado um erro de tipo, previsto no artigo 20 do Estatuto Repressor.
Da mesma forma, o dolo é afastado se não houver a vontade do agente em praticar determinado crime. Se uma pessoa é coagida fisicamente a empurrar outra pessoa de um penhasco, ela não atua com vontade e, portanto, não atua com dolo.
Sem nos preocupar em esmiuçar todo o estudo do dolo e suas teorias, podemos resumir que o nosso Código Penal adotou, de acordo com a maioria da doutrina, as teorias da vontade e do assentimento.
Segundo a teoria da vontade, dolo seria a vontade livre e consciente de querer praticar uma infração penal. Já a teoria do assentimento defende que atua com dolo aquele que, antevendo como possível o resultado lesivo com a prática de sua conduta, mesmo não o querendo diretamente, não se importa com a sua ocorrência, assumindo o risco de produzi-lo.
Assim, com base no artigo 18 , inciso I , do Código Penal, podemos dividir o dolo em duas espécies: dolo direto (teoria da vontade, em que o agente quer, efetivamente, cometer a conduta descrita no tipo) e dolo eventual (teoria do assentimento, onde o agente, embora não querendo diretamente praticar o crime, não deixa de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado).
No dolo eventual o agente vislumbra a possibilidade de ocorrer um resultado não querido diretamente, mas não deixa de seguir com a sua conduta, assumindo o risco de produzi-lo. Nesses casos o agente pouco se importa com o que poderá acontecer, para ele tanto faz, o resultado é indiferente.
Com relação ao delito culposo, Mirabete o define como a conduta humana voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado.
(São elementos do crime culposo: I-) conduta humana voluntária; II-) inobservância do dever objetivo de cuidado, manifestada por meio de uma negligência, imprudência ou imperícia; III-) resultado lesivo não querido, tampouco assumido; IV-) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; V-) previsibilidade; e VI-) tipicidade (o crime culposo só se configura quando houver expressa previsão legal).
Entre as espécies de culpa, nos interessa para este estudo apenas a denominada culpa consciente. Esta se caracteriza quando o agente prevê a ocorrência de um resultado danoso, mas não deixa de agir, pois acredita, sinceramente, que será capaz de evitá-lo.
Com a intenção de facilitar o entendimento do leitor, vale destacar a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, haja vista que eles possuem certa similaridade. No dolo eventual o agente prevê a possibilidade de ocorrer um resultado danoso, mas não deixa de dar seguimento a sua conduta, já que pra ele tanto faz, ele aceita a produção do resultado. Na culpa consciente, por outro lado, o agente prevê o resultado, mas jamais o aceita como possível. Nesse caso ele se importa com a ocorrência do resultado e acredita que não irá produzi-lo.
Por tudo que foi dito, é possível notar a dificuldade de se definir em um caso concreto a diferença entre dolo eventual e culpa consciente, haja vista que, para tanto, nós precisaríamos ingressar no subconsciente do agente. Desse modo, caro leitor, já podemos concluir que a problemática envolvendo morte no trânsito e embriaguez ao volante não é tão simples como parece. No próximo tópico abordaremos o tema de maneira mais específica.
Embriaguez ao volante e morte: tipificação
Este estudo tem como objetivo principal desmistificar a seguinte fórmula matemática: embriaguez ao volante + morte no trânsito = homicídio doloso na modalidade dolo eventual (art. 121 c/c art. 18, inciso I, segunda parte).
Conforme já adiantamos, a tipificação da conduta irá variar de acordo com a análise do caso concreto. Entretanto, defendemos que, em regra, este fato será mais bem enquadrado no artigo 302 do CTB (homicídio culposo na direção de veículo automotor), senão vejamos.
Primeiramente, devemos nos fazer as seguintes perguntas: será que o motorista embriagado prevê a morte de alguém no momento em que se dispõe a dirigir nesse estado? Aqui não vemos muitos problemas, sendo perfeitamente viável que um motorista embriagado preveja a possibilidade de se envolver em um acidente devido ao seu estado de embriaguez. Agora, será que este motorista aceita ser o causador da morte de uma pessoa no momento em que liga o seu carro?
Para responder essa pergunta nós precisamos nos despir de qualquer preconceito e sermos sinceros e honestos. Em princípio, não nos parece que o motorista embriagado aceite produzir o resultado morte. Na maioria absoluta dos casos, este motorista age acreditando, sinceramente, que tem capacidade para conduzir o seu veículo sem provocar qualquer acidente e, de forma alguma, ele aceita ser o causador da morte de uma pessoa.
Nós defendemos o entendimento de que, repita-se, na maioria dos casos, o motorista embriagado age de maneira culposa. Para tanto, basta analisar a conduta com base nos elementos do delito culposo. Assim, podemos afirmar que este motorista teve uma conduta voluntária, conduta esta que deixou de observar um dever objetivo de cuidado, manifestado por meio de uma imprudência, que acabou gerando um resultado lesivo (morte) não querido, nem tampouco assumido, mas que era previsível devido ao seu estado de embriaguez, sendo este fato tipificado no artigo 302 do CTB .
Salientamos que deve ser afastada qualquer fórmula matemática sobre o assunto, sendo imprescindível a análise do caso concreto. A opção entre dolo eventual e culpa consciente deve se pautar em dados objetivos, palpáveis, uma vez que não é possível entrar no subconsciente do agente para saber se ele aceitou ou não a produção do resultado.
Como exemplo, citamos o exame pericial realizado no local do crime. Imaginemos o caso em que um motorista embriagado atropele e mate duas crianças que brincavam na calçada da porta de casa. Por meio do laudo pericial é possível constatar se o motorista acionou os freios antes do atropelamento. Caso tenha freado, isso significa que ele não aceitou a produção do resultado. Se ele tivesse aceitado o atropelamento, não teria acionado os freios no intuito de evitar a ocorrência do resultado. Sendo assim, não podemos falar em dolo eventual nessa situação.
Outro ponto que merece destaque e que fundamenta nossa posição é a observação feita por Rogério Greco no que se refere à tentativa e o dolo eventual. O autor defende ser impossível a tentativa nessa modalidade de dolo e cita como exemplo o caso em que um motorista embriagado causa a morte de duas pessoas e fere outras três. Nessa situação, se admitirmos a tentativa em dolo eventual, o agente deverá responder pelo homicídio doloso de duas pessoas e mais três tentativas.
Indo mais além, imaginem o caso de um motorista embriagado que foge de uma blitz da polícia e, assim, comete barbaridades no trânsito, trafegando em velocidade excessiva, andando na contramão etc. Em certo ponto, esse motorista atropela e mata duas pessoas. Para aqueles que defendem a aplicação do dolo eventual, a conduta deveria ser enquadrada no artigo 121 do Código Penal .
Entretanto, se no mesmo exemplo o motorista não tivesse causado qualquer resultado danoso a terceiros, onde enquadraríamos a sua conduta? Ora, se admitido o dolo eventual no primeiro caso, também devemos admiti-lo no segundo. Sendo assim, o agente deveria responder pela tentativa de homicídio (dolo eventual) de todas as pessoas que passaram por ele durante o seu trajeto desde o momento em que deu início a sua fuga. Parece-nos que tal hipótese seria um tanto absurda, já que seria impossível constatar todas as vítimas.
O argumento utilizado para a aplicação do dolo eventual nessas situações é no sentido de que o motorista que se dispõe a dirigir em estado de embriaguez também assume o risco de produzir um resultado lesivo a terceiros. Se a ação foi livre na causa, ou seja, no momento em que ele se dispôs a fazer uso de bebidas alcoólicas, também deve responder pelo resultado advindo de sua conduta (teoria da actio libera in causa).
Analisando friamente essa questão, concluímos que o motorista embriagado não consome bebidas alcoólicas com o objetivo de causar um acidente e matar alguém. Na verdade, sua conduta foi imprudente na medida em que ele deixou de observar os cuidados necessários para conduzir um veículo. O próprio Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente que a teoria da actio libera in causa não pode ser aplicada nos casos de acidente de trânsito com vítima. Isto, pois, esta teoria tem aplicação quando o agente faz uso de bebidas alcoólicas com a intenção de praticar um crime.
Vale destacar que nós nos solidarizamos com os familiares das vítimas desses crimes e nos revoltamos com esses acontecimentos, contudo, a adoção de medidas de política criminal não pode se sobrepor ao princípio da legalidade. Cabe ao legislador alterar o artigo 302 do CTB e impor uma pena mais severa para os motoristas que causem lesão ou morte no trânsito devido ao seu estado de embriaguez.
Por fim, reiteramos que, excepcionalmente, será possível a aplicação do dolo eventual no crime em estudo. Vejamos o exemplo em que um indivíduo revoltado com o fim do namoro vai até a rua de sua ex-namorada e começa a realizar manobras perigosas com seu carro. Como o local estava cheio de crianças, o motorista adverte as mães para tirá-las da rua porque algo de pior podia lhes acontecer e ainda destaca que pouco se importava com isso.
Nessa situação não temos dúvidas em aplicar o dolo eventual, sendo o motorista responsabilizado pelo delito previsto no artigo 121 , caput do Código Penal , nos termos do artigo 18 , inciso I , segunda parte do mesmo Estatuto Repressor. Ademais, ele também deverá responder pelo delito previsto no artigo 306 do CTB .
Conclusão
Frente ao exposto, concluímos que o motorista embriagado que provocar uma morte no trânsito deve responder, em regra, pelo delito previsto no artigo 302 do CTB (homicídio culposo na direção de veículo automotor). Entendemos que, na maioria dos casos, o agente age com culpa consciente, acreditando, sinceramente, que é capaz de evitar um resultado danoso a terceiros. O fato de o motorista estar embriagado não significa, por si só, que ele assumiu o risco de causar a morte de alguém.
Excepcionalmente, contudo, o motorista embriagado poderá responder por homicídio doloso, na modalidade dolo eventual. Para tanto, deve restar bem caracterizado no processo o fato de ele haver assumido o risco de causar o resultado morte, o que não é fácil.
Os operadores do Direito, como técnicos no assunto, devem analisar os fatos de maneira imparcial e equidistante, fundamentando suas decisões no princípio da legalidade, não se deixando levar pelo clamor da sociedade e da grande mídia. Essa pressão por justiça deve ser direcionada aos membros do Congresso Nacional, que precisam sair do seu estado de inércia e adequar a lei à nossa triste realidade.