O Recurso Extraordinário nº 898.060 do Supremo Tribunal Federal é considerado por muitos especialistas na área do Direito de Família como histórico, um divisor de paradigmas para a Sociedade. Como se sabe, a Suprema Corte houve por reconhecer, em maioria de votos, a possibilidade de existência da pluriparentalidade/multiparentalidade, ou seja, que a paternidade socioafetiva, com ou sem registro, não impede o reconhecimento do vinculo de filiação biológico, com efeitos jurídicos.
A manifestação do STF trouxe diversas consequências no mundo jurídico, não somente no Direito de Família, mas em diversos outros ramos do direito, como o Direito Sucessório, Direito Previdenciário, Direito Tributário, pois, o reconhecimento jurídico da existência da pluriparentalidade permite à pessoa ser reconhecida como herdeira de seu pai biológico com o qual nunca teve contato, por exemplo. A única exceção feita pelo voto vencedor do Excelentíssimo Ministro Luiz Fux é que o reconhecimento do vínculo biológico, concomitantemente com o vínculo socioafetivo, só pode ocorrer se não houve manifesta repulsa por parte da pessoa em relação ao seu pai biológico.
Em que pese a decisão ser de mais valia para o desenvolvimento do direito pátrio, cumpre destacar que a manifestação fora proferida de modo amplo, englobando toda e qualquer relação afetiva, inclusive a nebulosa situação regulatória da inseminação artificial heteróloga, a doação de material genético humano.
A questão da doação de material genético humano para técnicas de reprodução humana assistida heteróloga sofrem com a conhecida insegurança jurídica no Brasil, uma vez que não existem leis regulando o assunto, mas tão somente parecer, resoluções de órgãos públicos e entidades privadas que tratam do tema. Em que pese a desafiadora situação, o RE 898.060 contribuiu para a apresentar maiores dúvidas, receios, inconsistências na matéria.
A Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina serve como diretriz para a doação de sêmen humano em razão da falta de lei e tem como escopo o anonimato do doador a fim de proteger o desenvolvimento psicológico e afetivo da criança e a proibição de venda do material genético em respeito a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos e o Sigilo das Informações Genéticas.
Entretanto, o grande confronto existente em diversos Tribunais dos entes federativos diz respeito à garantia constitucional da criança em ter seu direito fundamental de plenitude familiar assegurado. Reza o Estatuto de Criança e do Adolescente, em seu artigo 48, que o adotado tem direito de conhecer suas origens biológicas ao completar 18 anos de idade. O ápice da questão reside na lacuna da lei que enseja diversas interpretações diferentes para situações similares, na qual há pontos de vista diferentes para proteção da criança e ao anonimato do doador.
Ademais, o provimento nº 52 da Corregedoria Geral de Justiça passou a exigir diversos procedimentos para registro de crianças oriundas de técnicas de Reprodução Assistida, sendo uma delas a indicação de dados do doador ou doadora do material genético.
Sob todas as óticas verifica-se que a questão do anonimato na doação de sêmen ou óvulos é questão que gera enorme dúvidas nos envolvidos no tema e grande incerteza jurídica em razão da existência de diversas posições, interpretações, resoluções de diferentes órgãos e juristas acerca do assunto.
Maiores receios vieram à tona com a decisão proferida pela Corte, sob a luz de Repercussão Geral. Isso porque, o entendimento do Egrégio Supremo Tribunal Federal fora amplo demasiadamente, sem prever qualquer adendo para questões envolvendo a doação anônima de material genético, salvo o voto vencido do Excelentíssimo Ministro Edson Fachin.
O tema central do presente artigo reside na questão de o material genético ter sido obtido por meio de doador anônimo estrangeiro, sem qualquer ligação com o Brasil. Dúvidas residem na maneira pela qual a decisão judicial será cumprida caso o doador seja de outra nacionalidade, residente em seu país de origem, sem qualquer contato com o Brasil. Ou até mesmo, casos em que a lei estrangeira protege o anonimato do doador. São situações como essas que ensejam enormes receios para os Bancos de Sêmen do país que importam amostras biológicas.
As dificuldades que os bancos de sêmen enfrentam para desenvolverem suas atividades no Brasil são gigantescas. Como visto, não há lei que trate especificamente do assunto, cabe ao player deste mercado agir conforme os ditames de resoluções, portarias e outros atos normativos expedidos por entidades públicas, como por exemplo a RDC 23/2011 da Vigilância Sanitária, que regulamenta a área técnica dos bancos.
Tal situação gera um total desconforto para os bancos, bem como para os consumidores/pacientes, que não possuem qualquer segurança jurídica para celebrarem um contrato.
Com o advento da decisão do STF, reconhecendo a multiparentalidade com efeitos jurídicos, o cenário tornou-se mais catastrófico. Admitimos que o RE 898.060 é uma decisão histórica que inovou na maneira de como a sociedade brasileira deve se desenvolver, aceitar as novas ideias, vontades que cada individuo venha a ter, respeitar, acima de tudo, os preceitos fundamentais que protegem o direito à vida e direito à busca da felicidade, assegurados explicita ou implicitamente pela Carta Magna de 1988.
O que urge a ser realizado é assegurar o direito à busca da felicidade para as pessoas que não possuem condições de ter um filho de maneira natural, e para concretizarem o sonho de serem pais, qualquer que seja a relação afetiva, realizem a busca pelos bancos de sêmen de doadores anônimos.
Não se pode acabar com a doação de sêmen anônima no Brasil em razão de uma expectativa de direito que a futura criança possa a vir a ter, caso tenha a vontade de conhecer sua origem biológica e ser reconhecida como tal para efeitos jurídicos.
Portanto, a decisão da Corte Suprema da República deve ser moldada e interpretada em cada caso concreto, como muito bem votou o Ilustre Ministro Edson Fachin. Não podemos, como é sabido por muitos no meio jurídico, quando há um choque de princípios desconsiderar um e aplicar o outro, devemos exercitar a analise concreta do caso a fim de moldar a melhor solução por meio de interpretações de todos os princípios e não somente de um deles.
Assim, caso a decisão do STF, julgada com Repercussão Geral, seja interpretada sem que sejam estudadas as situações específicas de cada caso concreto, podemos afirmar que os bancos de sêmen brasileiros que utilizam material biológico estrangeiro sofreram consideráveis baixas, pois, como será possível que um banco de sêmen que forneça material biológico de outro país tenha controle sobre os dados dos doadores? A resposta é simples: impossível. A impossibilidade no fornecimento das informações não decorre por falta de vontade dos bancos, mas devido às leis vigentes no país do doador que o protegem de ter sua identidade revelada, salvo para questões médicas, e também em razão do cidadão não ter conhecimento para qual local do globo a amostra será enviada, desconhecendo,assim, as regras vigentes naquele local.
O doador estrangeiro, ao celebrar o contrato de doação, não tem como objetivo ter reconhecimento de sua paternidade e muito menos os efeitos jurídicos desta. Pelo contrário, visa com seu ato uma maneira de ajudar os demais que são, infelizmente, impossibilitados de terem sua prole de maneira natural. Assim, não se pode dizer e afirmar ao doador que, caso sua amostra seja enviada ao Brasil, e aqui frise-se que o doador sabe que o material será enviado para diversos locais do mundo, contudo, não sabe especificamente para onde, ele será compelido a ser reconhecido como pai e ainda sofrerá todas as consequências jurídicas de tal reconhecimento. A globalização é atual e iminente e não deve ser desconsiderada em se tratando de aspectos como o ora analisado, pois o direito à busca da felicidade pelos consumidores dos bancos de sêmen será restringido, violando-se, portanto, a Constituição Federal. O vínculo em situações como essa deve ser o afetivo, a fim de se proteger do direito da criança de ter plenitude familiar.
Portanto, caso hajam demandas futuras a serem ajuizadas por pessoas fruto de inseminação artificial heteróloga contra bancos de sêmen que captam recursos/materiais genéticos de outros países o pedido será juridicamente impossível de ser concretizado, mesmo que haja decisão judicial favorável, pois como visto acima, não há meios legais e legítimos para que se compelir os doadores estrangeiros a fornecerem dados sobre suas identidades e muito menos efeitos jurídicos para fins de direito sucessório, patrimonial, entre outros abarcados pela decisão da Corte.
A mudança social a ser provocada pelo RE 898.060 figura como umas das mais importantes já ocorridas no direito pátrio, acolher todo e qualquer tipo de família que possa existir, não se baseando somente em leis, códigos para chancelar o conceito de família. Entretanto, é preciso cautela e avaliação específica de cada caso concreto em se tratando de bancos de sêmen de doadores estrangeiros para se impor a multiparentalidade e, principalmente, seus efeitos jurídicos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal.