Introdução
A presente pesquisa se propôs a realizar uma breve discussão sobre o uso do discurso e a sua validação na aplicação do Direito. Para tanto, foram utilizados conceitos da linguística e da filosofia do direito para analisar um caso concreto sob a ótica das relações entre a realidade posta e o que se encontra positivado. Norberto Bobbio aponta que as normas e as leis existentes não podem estar isoladas dos outros elementos que compõem o ordenamento jurídico (Bobbio, 1995, p. 19), sendo, então, imprescindível dispor de mecanismos que possibilitem a aplicação das normas, para que elas não existam como “letra morta”.
O caso Serra Raposa do Sol, que versou sobre a disputa do território indígena de mesmo nome e teve a demarcação homologada pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, serviu de pano de fundo para tal análise, uma vez que foi essa decisão que estabeleceu pressupostos para decisões futuras acerca do mesmo tema.
Breves apontamentos sobre o caso Serra Raposa do Sol
O discurso é um elemento essencial na análise de qualquer objeto inserido no contexto social e não está limitado à linguagem. A linguagem, por sua vez, é apresentada por Ferdinand de Saussure (Saussure. 2006, p. 80.) como sendo um fenômeno composto por signos, sendo esses formados por dois elementos: o significante e o significado, analisados pelo linguista na chamada Teoria do Valor. O primeiro deles é concebido pelo autor como sendo a imagem interior dentro de um discurso. O significado seria o conteúdo apresentado pelo significante. Assim, o significante é o aspecto material dos signos, enquanto o significado é a parte abstrata dele. O autor utiliza, ainda, a teoria do valor para apontar a unidade de sentido conferida a um mesmo conceito a depender do tempo e do espaço no qual esse é posto e, a partir desse fenômeno, aparece a arbitrariedade a qual os conceitos podem estar sujeitos. Considerando tais aspectos, torna-se relevante analisar a maneira como todos esses fatores aparecem no discurso.
Nesse sentido, cada fundamento apresentado no discurso pode indicar um direcionamento, uma vez que, conforme pode-se inferir a partir da Teoria do Valor de Saussure, não há escolha de linguagem separada de uma motivação, ou seja, há interesses arbitrários em preencher os significantes com significados que possam beneficiar o locutor de algum modo, embora por vezes possa pairar sobre o discurso uma suposta neutralidade. Assim, mesmo havendo a motivação e essa sendo dotada de um aspecto aparentemente geral, os significados podem aparecer esvaziados. É o que ocorre quando o discurso se encontra desvinculado da realidade material. Um exemplo disso se manifesta quando há uma igualdade dos sujeitos de direito apenas de maneira abstrata, de modo que o que aparece positivado em um sistema jurídico não tem aplicabilidade na realidade material posta.
Tratando-se do sistema jurídico de um Estado, a presença de tal fenômeno tende a ser problemática, isso porque não há segurança jurídica em normas que não têm a capacidade de ultrapassar o mero positivismo. Essa dissociação entre a realidade posta e as leis possui uma vasta discussão teórica e um dos textos mais emblemáticos sobre o tema é de Karl Marx, que apresenta em “Os Despossuídos” (Marx, 2017, p. 12) uma crítica à lei da madeira. Trata-se de uma lei criada do dia para a noite e que passou a qualificar o ato de apanhar madeira na floresta, até então propriedade comunal, como furto e a punir as pessoas que sobreviviam desse costume há gerações e muitas vezes não sabiam sequer por que estavam sendo punidas. Marx argumenta que, por ter sido criada pela nobreza, a mais interessada na proteção da propriedade privada que ali surgia, essa lei serviria apenas para corresponder aos interesses de determinada classe, estando distante da realidade material da maior parte das pessoas.
Dessa forma, parece não fazer sentido que uma lei criada de repente, com base nos interesses de uma classe, seja imposta sobre outra que não se reconhece no que se apresenta positivado. Nessa perspectiva, ocorre o esvaziamento de sentido de uma norma e surgem os desafios para torná-la eficaz. Assim o é para os institutos jurídicos criados para lidar com as questões envolvendo a demarcação das terras indígenas no Brasil. São normas de posse civil e propriedade privada que são estranhas a esses povos por serem parte de um âmbito cultural distante de sua realidade.
Feitas essas observações, será tomada como ponto de partida para analisar a tutela dos povos indígenas no Brasil a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol e os argumentos utilizados para embasá-la, sendo a análise do discurso ponto crucial para compreender qual é o tipo de tutela jurídica que o Estado Brasileiro concede aos povos indígenas. Para direcionar tal análise, parte-se dos conceitos de marco temporal de ocupação e renitente esbulho utilizados no acórdão do processo da Pet. 3.388, que são resultado da interpretação do art. 231 da Constituição da Republica Federativa do Brasil.
Desde o início do processo de colonização do Brasil e da utilização do Direito como ferramenta para resolver as questões sociais, há uma discussão em torno da legitimidade da posse das terras pelos povos indígenas. Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a criação das diversas legislações que regulam os direitos dos povos indígenas no Brasil, as decisões judiciais em torno dos litígios envolvendo a disputa de terras clamavam cada vez mais por uma uniformização nos critérios de decisão. O caso Serra Raposa do Sol estabeleceu, assim, parâmetros para resolver litígios que envolvessem a posse das terras indígenas. A partir de então, dois requisitos ficaram estabelecidos como embasamento para tratar dessas questões, a saber: o marco temporal de ocupação e o renitente esbulho.
O conceito de marco temporal de ocupação foi apresentado pelo voto do Ministro Carlos Ayres Britto, que entendeu a data da promulgação da Constituição Federal de 1988 como referência para definir a ocupação das terras por comunidades indígenas. Segundo seu entendimento, a constituição fixou 5 de outubro de 1988 como referencial para o reconhecimento, aos indígenas, dos direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles. Assim, para que haja o reconhecimento da legalidade das terras ocupadas, esse processo precisa estar em vigência na data da promulgação da constituição de 1988.
José Afonso da Silva argumenta que “se há um marco temporal a ser firmado este deveria ser o da data de promulgação da constituição de 1934, qual seja, 16 de julho de 1934, que, por primeiro, deu consagração constitucional a esses direitos” (Cunha,2018, p. 26). O jurista segue sua crítica apontando que ao deslocar o marco temporal para o ano de 1988 há uma ruptura na lógica de continuidade da proteção dos direitos indígenas. Nessa linha, utilizando como requisito para um suposto marco temporal as legislações que primeiro apresentaram alguma tutela dos povos indígenas no Brasil, a Carta Régia de 1611 poderia ser apontada como referência inicial. Seguida desta, o Alvará Régio de 1680 estabeleceu que a posse dos indígenas sobre as terras deveria ser respeitada por serem esses os primeiros a dominá-las e, por isso, seriam os detentores originários (Araújo, 2006, p.24). Outra lei, de 1755, referia-se aos indígenas como titulares do domínio, seguindo o direcionamento das leis anteriores nesse sentido. Tais normas serviram de base para a criação da categoria do Indigenato, que se manteve presente nas legislações anteriores e, inclusive, deu base para a criação da Fundação Nacional do Índio.
O conceito de renitente esbulho, por sua vez, é oriundo do direito civil, ou seja, do direito privado e, por esse motivo, não é o mais adequado para ser aplicado na esfera do direito público e coletivo. O instituto do renitente esbulho é definido pela Suprema Corte como situação de efetivo conflito possessório que persista até o marco temporal de 5 de outubro de 1988, e que se materialize por circunstâncias de fato ou por uma controvérsia possessória judicializada (STF, 2014).
Ocorre que há uma série de dificuldades para que os indígenas consigam comprovar sua posse, visto que seria preciso resistir aos esforços de quem quer que tentasse invadir suas terras, sendo utilizada inclusive a força física, aspecto que, historicamente, contribuiu para o genocídio de mais de 50% da população indígena desde a invasão europeia. Isso porque, os povos originários ocuparam quase todo o território brasileiro desde muito antes da invasão dos europeus, tendo a maior parte deles perdido suas terras durante o processo de colonização. Ou seja, poucas foram as comunidades indígenas que conseguiram resistir e manter-se em suas terras- ou, ao menos, disputando seu domínio ao longo dos anos. De acordo com o censo demográfico realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vivem no Brasil cerca de 817.963 indígenas, que representam 0,26% da população brasileira (IBGE, 2010). Esses números são alarmantes se comparados aos dados do ano de 1500, quando viviam no Brasil 3.000.000 (Azevedo, 2013).
Ainda, no que diz respeito à necessidade de, ao menos, a existência de uma controvérsia possessória judicializada há que se enfatizar a desvantagem social dos indígenas em relação aos esbulhadores para se ter acesso à justiça, principalmente considerando-se o fato de que não faz parte da cultura desses povos levar os seus conflitos ao judiciário.
Ou seja, há inúmeros requisitos para que os povos indígenas consigam comprovar, dentro do que estabelece o judiciário brasileiro, que há a “posse justa” de suas terras, considerando, por certo, o marco temporal de 1988, porém todos esses encontram-se distantes da sua realidade. Conforme já citado, esses elementos estão presentes na cultura “branca”, estando longe de figurar como parte dos costumes dos povos originários.
A despeito dessas questões, o Supremo Tribunal Federal vem argumentando em suas decisões que a exigência do renitente esbulho para assegurar o direito de acesso à terra deriva da interpretação do art. 231 da Constituição Federal. Todavia, uma análise até mesmo superficial desse dispositivo é capaz de levar ao questionamento dessa justificativa, pois esse instrumento prevê o respeito ao multiculturalismo e à autodeterminação dos povos, o que vêm se mostrando serem expressões de significados esvaziados, uma vez que não têm encontrado aplicação na realidade material posta.
Além da aplicação desses requisitos sempre que há litígio envolvendo a demarcação de terras indígenas, o Indigenato, que, de modo geral, regula a autonomia e a determinação dos povos originários e transfere sua posição para a de indivíduos tutelados pelo Estado (Cunha, 2018, p.107), tem guiado as decisões judiciais sobre o tema. Cria-se, então, um pressuposto para mitigar a autodeterminação dos povos indígenas de pleitear seus direitos ou mesmo para estabelecer quais seriam esses direitos sem que o Estado intervenha, sob a forma de impor sua vontade. Rosembert Ariza Santamaría, ao referir-se ao tipo de tutela que os colonizadores dirigiam aos povos indígenas, aponta que:
“percebendo que eles eram pessoas necessitadas de tutela, à semelhança dos incapazes, impuseram-lhes, com intuito de favorecê-los e defendê-los, determinadas travas ao livre exercício de suas faculdades dominicais sobre as terras de sua propriedade” (Santamaría, 16).
A interpretação segundo esse entendimento, bem como o emprego de institutos jurídicos do direito privado às questões de demarcação das terras indígenas criam um obstáculo para que o Estado brasileiro consiga tutelar os povos originários sem ferir a sua autonomia e, ainda, aplicar as legislações de modo que não ocorra o seu esvaziamento. Significa que deve haver um esforço por parte do Estado para garantir que haja a proteção plena dos povos indígenas e dos seus direitos à terra.
Considerações finais
Feitos esses apontamentos, é possível inferir que a tutela que o Estado brasileiro tem concedido aos povos indígenas vem sendo deficitária. Isso porque há um esvaziamento de sentido nas legislações e institutos aplicados diante das questões que envolvem demarcação das terras indígenas. Fica evidente que não basta que o Estado demonstre preocupação formal com a situação desses povos quando não há, para além disso, um esforço em entender a realidade dos indígenas, suas reais necessidades e a sua situação de vulnerabilidade política e social. É preciso que sejam feitas mais do que apenas leis, esvaziadas de significado, para que haja uma efetiva tutela dos povos indígenas pelo Estado brasileiro e a aplicação do que prevê o art. 231, CF/88 é um primeiro passo importante para isso.