I. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS
O furto famélico ocorre quando o agente, em situação de extrema penúria, causa um dano ao patrimônio alheio, cometendo o crime de furto para saciar uma premência urgente e relevante sua ou de outra pessoa, pois se não suprisse tal necessidade poderia ele ou outrem vir a sofrer danos em seus bens juridicamente tutelados.
Com o passar do tempo percebemos um aumento considerável na prática do furto famélico, sendo que, uma das principais causas do agravamento deste delito é sem dúvida, a desigualdade social. O Brasil é um país em que uma parcela significativa da população não tem acessos as condições básicas de saúde, alimentação, estudo, higiene e moradia, encontrando-se em situação desumanas, em contrariedade com a Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, cujo texto assegura a todos os brasileiros, a dignidade da pessoa humana, bem como todos os direitos sociais e fundamentais básicos dele provenientes. Contudo, como é de conhecimento público, o acesso a esses direitos constitucionais é muito limitado, por motivos históricos, culturais, sociais e econômicos, dentre outros.
É notório que a dignidade humana só é alcançada quando as pessoas conseguem manter sua sobrevivência com o mínimo de qualidade e respeito essenciais, pois o problema da pobreza e da miséria é acima de tudo, uma questão social, isto é, que envolve as diretrizes estruturais da sociedade.
Diante do cenário acima mencionado, o ordenamento jurídico brasileiro admite-se a aplicação do instituto do furto famélico, onde a referida conduta do indivíduo da prática de furto é desconsiderada crime, havendo diversos argumentos jurídicos para a não punição, os quais veremos mais adiante.
A Constituição Federal, logo em seu artigo 1º, inciso III, dispõe que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do nosso país.
Analisando nossas normas penais, o crime de furto está disposto da seguinte maneira no Código Penal Brasileiro:
"Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa."
Existem sujeitos que praticam o crime de furto para suprir suas necessidades imediatas, em situações de sofrimento desgastante. Seria injusto e fora do propósito do nosso ordenamento jurídico penalizar tais infratores, vez que estão apenas defendendo interesses legais previstos nas normas jurídicas, uma vez que estas foram criadas exatamente para atender as demandas da sociedade.
Aplicar sanções penais nesses agentes, seria contrária a própria Carta Magna, uma vez que esse dispositivo garante às pessoas a dignidade da pessoa humana e direitos sociais, previstos no art. 6º da CF/88:
"Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
O denominado instituto do furto famélico é reconhecido pela jurisprudência e pela doutrina, sendo que esta conduta não é passível de punição, evitando assim que o agente sofra injustamente sanções por ter agido para proteger seus bens juridicamente tutelados.
Existem teses jurídicas que justificam o reconhecimento do furto famélico, levando em consideração a teoria analítica do crime, que sob a ótica da Teoria Tripartida, o crime é formado pelo fato típico, ilícito e culpável.
II. O FURTO FAMÉLICO E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O Superior Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em suas decisões, tendem a aplicar o princípio da insignificância, que exclui a tipicidade do crime, nos casos de furto famélico, dependendo do caso concreto. Este princípio dispõe que o Direito Penal apenas irá se pronunciar sobre a proteção dos bens mais relevantes para ordenamento jurídico, incriminando apenas condutas que são consideravelmente ofensivas ou capazes de ferir um bem jurídico tutelado.
Ao agente que rouba alimentos ou semelhantes para suprir suas necessidades básicas e que não cause um dano grave para terceiro, é possível considerar a insignificância de seus atos, desde que observados os requisitos fixados pelo STF: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovação do comportamento;d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Leciona Cezar Roberto Bitencourt:
"Assim, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida (...)". A aplicação do princípio da insignificância no furto famélico irá excluir a própria tipicidade penal da conduta do agente. A tipicidade é um dos requisitos obrigatórios da composição do fato típico.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. 17ª Edição. 2012)
Rogério Greco (2017) salienta que "tipicidade quer dizer, a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal (...)". A tipicidade penal é formada pela tipicidade formal, que é o encaixe perfeito da conduta do agente ao tipo penal previsto no ordenamento jurídico e pela tipicidade conglobante. Esta última é quando a conduta do sujeito é antinormativa, contrária às normas jurídicas e não imposta ou incentivada por elas e quando a conduta possui tipicidade material, ou seja, tenha importância relevante para ser abrangida pelo Direito Penal.
É na tipicidade material que se fundamenta a aplicação do princípio da insignificância no furto famélico, pois a ação do infrator não irá ferir bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal, pela pouca significância do bem jurídico, resultando em sua atipicidade. Desta forma, aplicando-se o princípio da insignificância, exclui-se a tipicidade, requisito essencial para que se tenha o fato típico, tornando assim a conduta do agente que pratica o furto famélico como atípica, não tendo que se falar na prática de crime.
III. O FURTO FAMÉLICO E O ESTADO DE NECESSIDADE
O estado de necessidade é uma das causas de exclusão da ilicitude e está prevista no Código Penal:
“Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”
Os autores André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves, dispõem:
“Um deles (interesse legítimo), pelo menos, terá de perecer em favor dos demais. Ocorre uma “situação-limite”, que demanda uma atitude extrema e, por vezes, radical. O exemplo característico é o da “tábua de salvação”: após um naufrágio, duas pessoas se veem obrigadas a dividir uma mesma tábua, que somente suporta o peso de uma delas. Nesse contexto, o direito autoriza uma delas a matar a outra, se isso for preciso para salvar sua própria vida.” (ESTEFAM, André. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Editora Saraiva. 2012)
O jurista Cezar Roberto Bitencourt elenca os requisitos necessários para reconhecer o estado de necessidade:
“A configuração do estado de necessidade exige, no Direito brasileiro, a presença simultânea dos seguintes requisitos: existência de perigo atual e inevitável a um direito (bem jurídico) próprio ou alheio; não provocação voluntária do perigo; inevitabilidade do perigo por outro meio; inexigibilidade de sacrifício do bem ameaçado; elemento subjetivo: finalidade de salvar o bem do perigo; ausência de dever legal de enfrentar o perigo.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. 17ª Edição. 2012)
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, observado as peculiaridades de cada caso concreto, tendem a justificar a não incriminação do furto famélico através da aplicação do estado de necessidade, excluindo assim a ilicitude da conduta do agente e portanto, não tendo em que se falar na existência do crime.
O renomado doutrinador Rogério greco afirma:
“Em tese, o fato praticado pelo agente seria típico. Entretanto, a ilicitude seria afastada em virtude da existência do chamado estado de necessidade. Podemos concluir que o furto famélico amolda-se às condições necessárias ao reconhecimento do estado de necessidade, uma vez que, de um lado, podemos visualizar o patrimônio da vítima e, do outro, a vida ou a saúde do agente, que corre risco em virtude da ausência de alimentação necessária à sua subsistência.” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. 14ª Edição. Editora Impetus. 2017)
IV. O FURTO FAMÉLICO E A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA
Diante do caso concreto, por vezes, a aplicação da inexigibilidade de conduta diversa é justificativa da não punibilidade do furto famélico. Tanto o STF quanto o STJ reconhecem esse instituto onde diante de determinada situação do sujeito que pratica um injusto penal, não poderia se exigir que ele agisse de maneira diferente.
A inexigibilidade de conduta diversa é uma das causas supralegais de exclusão de culpabilidade, pois não está prevista nas normas jurídicas e sim nos princípios basilares do Direito. Adotando-se a Teoria Tripartida do crime, como já mencionado e aplicando-se a excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa, a pessoa que praticou o furto famélico não estaria cometendo um crime e seria absolvido, uma vez que não estaria presente o requisito da culpabilidade.
Se considerarmos a utilização da Teoria Bipartida do crime, onde este é formado apenas pelo fato típico e ilícito, a culpabilidade não é elemento formador da infração penal e sim de punibilidade. Assim, o autor do furto famélico teria praticado o injusto penal, sendo existente o crime. Porém, no momento de aplicação da pena, ao analisar a culpabilidade, a mesma seria desconsiderada, resultando na não punição do agente.
V. JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA
A jurisprudência brasileira não possui um consenso jurídico sobre os argumentos que justificam o furto famélico, dependendo do caso concreto. Porém, é notável a prevalência da aplicação do princípio da insignificância e do reconhecimento do estado de necessidade.
V.1. POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
De modo habitual, o STF afasta o crime baseado na aplicação do princípio da insignificância e do estado de necessidade, porém eventualmente emprega a inexigibilidade de conduta de diversa. Importante ressaltar que para o reconhecimento do princípio da insignificância, o STF considera a análise do histórico criminal do sujeito, observando a constância em que é praticada a infração penal.
Nesse sentido, a Ministra do Supremo Cármen Lúcia, deliberou:
“O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito penal."
(STF, HC 102.088/RS, 1ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe de 21/05/2010)
Para o Superior Tribunal de Justiça, deve-se aplicar o princípio da insignificância ao furto famélico, quando existentes os quatros requisitos supramencionados aliado ao histórico comportamental favorável do sujeito, sem constância na prática criminosa.
V.2. POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Comumente, o STJ fundamenta a atipicidade do “furto famélico” na aplicação do princípio da insignificância e na inexigibilidade de conduta diversa, que incide sobre a culpabilidade, sendo a vida pregressa desconsiderada. Neste ponto, verifica-se que o STJ adota um posicionamento mais brando em relação ao STF.
CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. PEQUENO VALOR DA COISA FURTADA. REINCIDÊNCIA. IRRELEVÂNCIA. RECURSO DESPROVIDO. I. A aplicação do princípio da insignificância requer o exame das circunstâncias do fato e daquelas concernentes à pessoa do agente, sob pena de restar estimulada a prática reiterada de furtos de pequeno valor. II. A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado. III. Hipótese em que o bem subtraído possui importância reduzida, devendo ser ressaltada a condição econômica do sujeito passivo, pessoa jurídica, que recuperou o bem furtado, inexistindo, portanto, percussão social ou econômica. IV. Não obstante o valor da res furtiva não ser parâmetro único à aplicação do princípio da insignificância, as circunstâncias e o resultado do crime em questão demonstram a ausência de relevância penal da conduta, razão pela qual deve se considerar a hipótese de delito de bagatela. V. Orientação da Quinta Turma desta Corte que fixou patamar para a aferição da insignificância do delito, que pode levar a conclusões iníquas, porque dissociadas de todo um contexto fático. VI. Se o reconhecimento da irrelevância penal observa os critérios de índole subjetiva, a fixação de um valor máximo para a incidência do princípio da bagatela se apresenta, no mínimo, contraditória. VII. Ausência de razoabilidade na fixação de valor para a averiguação da inexpressividade da conduta e ausência de lesividade penal, dissociado de outras variáveis ligadas às circunstâncias fáticas. VIII. O entendimento pacificado desta Corte é orientado no sentido de que as circunstâncias de caráter pessoal, tais como a reincidência e maus antecedentes, não devem impedir a aplicação do princípio da insignificância, pois este está diretamente ligado ao bem jurídico tutelado, que na espécie, devido ao seu pequeno valor econômico, está excluído do campo de incidência do direito penal. IX. Recurso desprovido, nos termos do voto do Relator.
(STJ - REsp: 1198358 RS 2010/0110443-9, Relator: Ministro GILSON DIPP, Data de Julgamento: 01/03/2011, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/03/2011)
VI. CONCLUSÃO
Podemos compreender que “furto famélico” se trata da subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel, praticada pelo agente com o intuito de suprir um desprovimento urgente e relevante. Para ser evitada a condenação injusta de uma pessoa pela prática de tal conduta, adotam-se meios que resultem no afastamento do crime.
Levando-se em consideração a Teoria Tripartida do conceito de crime, o princípio da insignificância é fator que descriminaliza o furto famélico, pois exclui a tipicidade penal da conduta. Por sua vez, o estado de necessidade também descriminaliza a conduta, pois exclui a sua ilicitude. Ainda, o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa do agente também é meio para a descriminalização do furto famélico, tendo em vista que exclui a culpabilidade da conduta.
Desta forma, não é possível dizer que existe apenas uma tese jurídica correta para justificar o furto famélico, pois todas são aplicáveis e dependem exclusivamente das variáveis de cada caso concreto e do entendimento de cada julgador sobre elas.
*Artigo original publicado em novembro de 2017, pelos alunos Rayner Mendes Sabino e Ingrid Oliveira Silva, com orientação da professora Denise Cândido Lima e Silva Santos, da Faculdade Pitágoras de Betim – MG.
*Artigo também publicado no site JusBrasil, link: https://raynersabino27.jusbrasil.com.br/artigos/834843924/o-que-e-o-furto-famelico/editar