O racismo no futebol brasileiro sob a ótica da criminologia.


14/07/2020 às 15h20
Por Raul Carlos

Resumo: O artigo trata dos atos discriminatórios contra negros no futebol, tenta compreender vários por quês, no que concerne a torcida, o motivo pelo qual o sentimento de racismo aflora bem como os motivos pelos quais determinados jogadores são comumente alvos dos atos preconceituosos, partindo de uma análise criminológica.

Palavras-chave: Racismo; futebol; criminologia.

1. Introdução

Em que pese o futebol ser um esporte democrático, que coloca lado a lado a mais de um século, afrodescendentes, europeus e brasileiros juntos em campo, tem se tornado cada vez mais comuns episódios de racismo e de xenofobia por parte dos torcedores, que ofendem jogadores e tem seus sentimentos racistas aflorados.

No Brasil, a luta contra o racismo não é de hoje, a história demonstra que desde o início do século passado, há movimentos de inclusão e de lutas, o primeiro clube brasileiro a admitir negros foi o Club de Regatas Vasco da Gama, com elenco repleto de operários e negros, ganhou o título carioca de 1923, o que despertou descontentamento de outros clubes que não admitia atletas de “cor”, inclusive gerando a exclusão do clube carioca dos campeonatos seguintes.

Destarte, compreende-se que não foi fácil à aceitação dos negros no esporte, e que a luta continua até hoje. Casos recentes demonstram dificuldade que a sociedade brasileira tem de aceitar negros em posições de prestígio.

2. Racismo: Apontamentos iniciais

O racismo é um sistema que afirma a superioridade de um grupo racial sobre outros, sobretudo por motivos biológicos.

Preleciona Joel Rufino dos Santos (1984) que “Em nosso país os brancos sempre esperam que as minorias raciais cumpram corretamente os papéis que lhe passaram – no caso do negro, os mais comuns são artistas e jogadores de futebol. Se fracassam, lhes jogam na cara a suposta razão do fracasso: a cor da pele.”.

É mister destacar que o direito brasileiro, por meio de proteção constitucional, artigo 5º, inciso XLII prescreve a conduta de racismo como crime inafiançável e imprescritível, de forma que o poder constituinte buscou proteger os cidadãos de atos discriminatórios e que atentam contra as crenças, e diferenças entre os povos, constituindo inclusive objetivo da Republica. Cite-se:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A partir daí, coube à legislação infraconstitucional regulamentar os atos típicos que configuram o racismo, os atos discriminatórios encontra-se prescritos na Lei 7.716/1989. O legislador elencou como crimes: impedir ou obstar acesso; recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, de ensino, restaurante, hospedagem, transporte público, cargo da administração pública ou Forças Armadas; negar emprego, impedir ascensão na carreira, proporcionar tratamento diferenciado no trabalho; impedir o acesso a entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais; e impedir ou obstar o casamento ou convivência familiar e social, por preconceito de raça ou cor.

Ressalte-se que não se confunde a figura do racismo com a injúria racial. Nesse sentido Rogério Greco (2009):

Não se deve confundir a injúria preconceituosa com os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, tipificados na lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989.

O crime de injúria preconceituosa pune o agente que, na prática do delito, usa elementos ligados a raça, cor, etnia, etc. A finalidade do agente, com a utilização desses meios, é atingir a honra subjetiva da vítima [...] (páginas 466, 467).

3. Decisões Judiciais

3.1 Ampliações do conceito de racismo

Neste tópico, convém destacar e citar decisões judiciais que retratam o tema abordado neste capítulo de forma concreta, trazendo o entendimento jurisprudencial.

Inicialmente, ressalte-se a decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de Ação Direta de Constitucionalidade por Omissão (ADO 26), no qual entendeu que houve inconstitucionalidade por omissão por parte do Congresso Nacional ao não criminalizar condutas como a homofobia e transfobia. Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso edite lei que trate matéria.

Ademais, o plenário do egrégio tribunal aprovou tese dividida em três pontos, proposta pelo relator ministro Celso de Melo. Primeiro ponto, a lei de racismo será aplicada no casos de transfobia e homofobia, até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre a matéria, mencione-se também, que no caso de homicídio, em que a motivação do crime for homofobia ou transfobia, constitui qualificadora do crime, na modalidade motivo torpe. Segundo ponto, a tese prescreve que a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio. Terceiro ponto, fixou que o conceito de racismo para o direito brasileiro ultrapassa, ou seja, vai além de aspectos estritamente fenótipos ou biológicos, mas alcança a negação da dignidade de grupos humanos vulneráveis.

Desta forma, o Supremo inova ao ampliar o conceito de racismo, protegendo não só aqueles que são vítimas pelo seu fenótipo, contudo, também as pessoas que compõe grupos vulneráveis aos preconceitos, como por exemplo, os LGBT.

3.2 Casos concretos

É mister gizar que o futebol brasileiro em sua maioria das vezes não é julgado por órgãos do poder judiciário, mas por uma justiça especializada, de natureza administrativa, trata-se da justiça desportiva, que no âmbito estadual e municipal temos os Tribunais de Justiça Desportiva, e de competência máxima temos o Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Vejamos alguns casos.

Em partida válida pelo Campeonato Brasileiro de 2005, entre Juventude e Internacional, o jogador Tinga ao tocar na bola ouvia a torcida do Juventude imitar macacos, o caso foi relatado pelo árbitro em súmula. O STJD puniu o clube gaúcho com multa de 200 mil reais e perda de dois mandos de campo. O Juventude foi o primeiro clube brasileiro a ser punido por injúrias raciais.

Em partida válida pela Copa do Brasil de 2014, entre Grêmio e Santos, o goleiro do Santos, aos 42 minutos do segundo tempo, Aranha é hostilizado pela torcida do Grêmio, aos gritos de “macaco”. O grêmio foi julgado pelo STJD e punido com multa de 54 mil reais e eliminação da competição. Neste caso, trata-se de injúria racial, pois o insulto é direcionado especificamente ao goleiro do time santista.

Apesar de não se tratar estritamente de racismo, mas sim de injúrias raciais, é possível perceber o sentimento racista de alguns torcedores dos times brasileiros, os casos acima são meramente exemplificativos, existem vários outros que poderiam ser mencionados.

4. Teoria da Psicanálise de Sigmund Freud

A psicanálise foi desenvolvida por Sigmund Freud, com o intuito estudar o homem, entendido como sujeito inconsciente. Partindo de uma análise de seus pacientes, Freud observa que traumas vivenciados pelas pessoas influenciavam em suas ações e comportamentos. Compreendeu que a repressão dos instintos delituosos pela ação do superego, não destrói esses instintos, mas deixa que esses sedimentem no inconsciente.

A estrutura da personalidade é composta pelo id, ego, superego. O id consiste na esfera inferior comanda pelo prazer, parcela impulsiva, inconsciente da personalidade. O ego consiste na esfera intermediária, entre o id e o superego, atuando como o mediador entre a esfera do prazer do id e a censura do superego. O superego consiste na esfera superior corresponde à ideia de consciência do sujeito, é o que nos dar noção de deveres, obrigações valores morais. Começa a desenvolver-se por volta dos 5, 6 anos de idade.

Ademais, ressalte-se que para Freud todo homem é um criminoso em potencial, visto que existem desejos reprimidos, e que o mesmo o maior cumpridor das leis, é capaz de matar.

Alessandro Barata (2011) com o brilhantismo que lhe é peculiar, explica que o conceito de tabu, consiste numa formação social, ou seja, há uma convenção social do certo e do errado. No caso da violação de um tabu, a punição ocorre de modo espontâneo; e de forma secundária a pena a que se realizam com a intervenção do grupo social, todos os componentes do grupo social se sentem ameaçados pela violação do tabu.

Convém destacar a função contaminadora do tabu, que consiste no desejo dos indivíduos tem de imitar as atitudes e gestos dos violadores do tabu, em virtude dos sentimentos e desejos reprimidos, transformando desse modo em uma violação coletiva.

Destarte, compreende-se que onde há uma proibição, existe um desejo impedido. Desta feita, o ordenamento jurídico somente proíbe os comportamentos que as pessoas estão propensas a fazer.

5. Análises dos atos sob a ótica da teoria da psicanálise

É indubitável que o esporte mexe com as emoções e sentimentos não só daqueles que são os protagonistas dos espetáculos, mas também das pessoas que, assistem, torcem e emocionam-se.

O presente capítulo busca compreender as manifestações racistas sob a ótica da teoria da psicanálise encabeçada por Freud.

Tomando como exemplo o caso descrito acima do goleiro Aranha do Santos, em que a torcida do Grêmio tenta desestabilizar o atleta com insultos discriminatórios. Acontece tão somente, uma violação do tabu, como descrito por Freud, em que as vontades e o inconsciente antes restringindo daquelas pessoas que estão no estádio de futebol vêm à tona. Havendo uma sobreposição da esfera inferior da personalidade (id), responsável pelos impulsos e pelo inconsciente, sobre o ego e o superego.

Ademais, ocorre também o fenômeno da solidariedade do tabu, onde outros indivíduos diante da violação do tabu sentem-se desejosos a imitar os atos discriminatórios, gerando um ato coletivo de racismo.

Mencione-se, ainda, que muito embora na maioria das vezes cercados por diversas câmeras, os indivíduos se deixam levar pela emoção, ratificando a influência do interior inconsciente do homem no momento dos movimentos racistas em estádios de futebol.

6. Conclusão

O escritor peruano Mario Vargas escreve:

O futebol é o ideal de uma sociedade perfeita: poucas regras claras, simples, que garantem a liberdade e a igualdade dentro de campo, com a garantia do espaço para a competência individual.

Em contrapartida a visão romântica do esporte, atualmente tem-se uma sociedade preconceituosa, que muitas vezes não reconhecem a importância dos negros no futebol, esquecem-se do rei brasileiro negro, Edson Arandes do Nascimento que muito representa o nosso futebol, dentre tantos outros como Barbosa, Garrincha, Ronaldinho, Rivaldo, Rivelino que fizeram história representando a seleção canarinha.

Muito embora seja um esporte que entrega aos seus espectadores apaixonados emoção, alegria, tristeza, é necessário ter esperança de que a sociedade assimile melhor os diferentes, de maneira mais respeitosa e gentil, não só dentro dos estádios, mas também no cotidiano.

Bibliografia

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

HUNGRIA, Nelson. A criminalidade dos homens de cor no Brasil. Rio de Janeiro. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 3, p. 273-297, 1956. Comentários ao Código Penal, p. 283.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

SANTOS, Joel Rufino Dos. O que é racismo? São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 82 (Coleção Primeiro Passos).

GRECO Rogério Curso de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 a 154 do Cp). 6. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 631 2v.

O racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: Uma história de identidade. Soares, Antonio J. Disponível em <<https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=eskJnfG0ZhoC&oi=fnd&pg=PA101&dq=racismo+no+futebol&ots=t4eMwB9f-6&sig=41E6GMOm16_qPZGk5Cxz7oL30aU#v=onepage&q=racismo%20no%20futebol&f=false>>

STJD muda punição, mas mantém Grêmio fora da Copa do Brasil.<<http://stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>>

  • Criminologia
  • racismo
  • direito constitucional

Raul Carlos

Advogado - Mossoró, RN


Comentários