Transtorno de Estresse Pós-traumático (TPET) e revitimização nos crimes contra a dignidade sexual.


07/08/2020 às 17h14
Por Paulo Emmanuel Albuquerque

Este artigo aponta prováveis consequências para a vítima de crimes contra a liberdade sexual quando sua experiência traumática desencadeia sintomas de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-traumático). Discorre sobre a condição de revitimização diante da obrigação legal de colaborar com a investigação e processo criminal que passou a ser de iniciativa do Estado através da ação penal pública incondicionada para os crimes contra a dignidade sexual. Discute a possibilidade de a vítima exercer sua autonomia e ainda assim evitar a punição relacionada ao crime de desobediência do artigo 330 do Código Penal.

 

1. Expansão dos tipos penais nos crimes contra a dignidade sexual e castração da autonomia das vítimas - ação pública incondicionada.

 

O direcionamento da política criminal em nosso país nas últimas décadas nos informa de uma opção pelo punitivismo e expansão dos tipos penais. Neste artigo analisamos as modificações operadas nos crimes contra a dignidade sexual perpassando pelas formas de se iniciar a persecução penal, a diminuição da autonomia da vítima e as consequências da revitimização.

 

2. Lei 13.718/2018 e a autonomia da vítima.

 

A modificação na legislação afetou a forma de propositura da ação penal tornando-a pública incondicionada em todos os casos de crimes contra a dignidade sexual. Em sua redação originária o Código Penal fixou como regra a ação penal privada e elegeu algumas exceções, entretanto, a lei 12.015/09 inovou e tomou como regra a ação pública condicionada à representação, mantendo algumas exceções também. Atualmente, através da redação da lei 13.718/18, todas as ações são públicas incondicionadas. Estas modificações ao longo do tempo apresentam a tendência do Estado a retirar a autonomia da vítima lesionada em sua dignidade sexual. O Estado assume todas as nuances do jus puniendi nos casos de lesão à dignidade sexual.

O referido conjunto de modificações legislativas expõe a política criminal adotada em nosso país. É evidente que experimentamos uma ampliação da perspectiva punitivista, ao passo que se exclui a possibilidade de a própria vítima deixar de acionar o Estado, evitando-se que haja o início da indesejada persecução penal. Ademais, há também uma expansão em tipos penais no capítulo reservado à proteção da dignidade sexual. Atualmente mesmo os crimes praticados sem lesão grave são obrigatoriamente submetidos à ação pública incondicionada. 

 

2.1 Transtorno de Estresse Pós-traumático (TPET) e revitimização.

 

A vítima de abuso sexual é exposta a fatores estressores que no mais das vezes prejudicam sua saúde para além dos efeitos da violência física. A literatura psicológica apresenta o transtorno de estresse pós-traumático - TEPT- como um dos exemplos. As pessoas expostas a situações traumáticas que “ seriam situações essencialmente violentas, como acidentes naturais (enchentes, incêndios, soterramentos), acidentes automobilísticos, assaltos, sequestros, estupros, torturas, ataque terrorista, receber o diagnóstico de uma doença que traz risco de vida, dentre outros.” (ALBUQUERQUE, 2019), podem desenvolver essa patologia que "corresponde ao desenvolvimento de sintomas característicos após a exposição a um estresse traumático, envolvendo a experiência pessoal direta de um evento real ou ameaçador ligado a morte, ferimento grave ou outra ameaça a integridade física, ou ter testemunhado ou ter conhecimento de tais acontecimentos, principalmente se estiverem ligados a membros da família ou a pessoas de seu relacionamento estreito" (PALOMBA, 2003).

A expansão dos tipos penais relacionados à dignidade sexual e o emprego, como regra, da ação pública incondicionada podem ter reflexos na saúde de muitas das vítimas que outrora poderiam optar em não processar os agressores. O exercício da autonomia, que a legislação passada permitia, gerava como efeito prático a possibilidade de a vítima evitar a exposição durante as fases pré-investigativa, inquisitorial e processual que a persecução penal está sujeita. A literatura psicológica informa que " o indivíduo, ao deparar-se com sinais associados ao evento traumático, sejam reais ou simbólicos, pode apresentar intensas reações psicológicas ( terror, repugnância, depressão, etc. ) e/ou respostas fisiológicas ( aumento dos batimentos cardíacos, suor, respiração rápida, etc.)." (CABALLO, 2015). Atualmente uma vítima de um crime contra a dignidade sexual nada pode fazer para evitar eventos que assumem cores traumáticas e podem desaguar em adoecimento, pois estudos indicam que 94% das pessoas vitimadas por estupros ao serem examinadas no primeiro mês após o evento manifestaram sintomas de TEPT. Exames posteriores realizados em três meses, seis meses e nove meses apresentaram os percentuais de 65%, 47% e 42%, respectivamente, para a manifestação dos sintomas de TEPT, não havendo redução substancial dos sintomas após os primeiros três meses. É importante notar que não havendo redução dos sintomas nestes primeiros meses e sem a apropriada intervenção, o TEPT costuma persistir (CABALLO, 2015). Consideramos o elevado tempo de tramitação dos processos criminais na justiça brasileira, em média 3 anos e 9 meses[1], um fator crítico que adiciona sofrimento à vítima, sendo notório o contato, por excessivo tempo, com os elementos que revivem o trauma e depõem contra sua saúde. A atual disciplina legal impositiva da ação pública incondicionada para os crimes sem ocorrência de lesão grave à vítima pode ampliar sobremaneira o trauma gerado. A vítima tem o dever de comparecer e responder ao chamado da autoridade policial e judicial, submetendo-se às perícias e demais procedimentos investigatórios e processuais. Citamos uma importante posição acerca da modificação legislativa e alguns dos seus efeitos:

"Portanto, agora, a ação penal será pública incondicionada para todos os casos (antes a regra geral era que fosse condicionada à representação da vítima e incondicionada nos casos de vulnerabilidade). Neste ponto pensamos que andou mal o legislador e, ao aparentemente ampliar a proteção da vítima (maior e capaz), o que fez foi menosprezar sua capacidade de decisão, escolha e conveniência. A exigência de representação para vítimas maiores e capazes, por ser um ato sem formalidade ou complexidade, assegurava à vítima o direito de autorizar ou não a persecução penal. Era uma condição de procedibilidade que denotava respeito ao seu poder decisório, importante neste tipo de delito, em que a violência afeta diretamente a intimidade e privacidade, além da liberdade sexuais." ( AURY LOPES JR., ALEXANDRE MORAIS DA ROSA, MARÍLIA BRAMBILLA E CARLA GEHLEN).

Acrescentamos que a modificação, além de afetar diretamente a intimidade e privacidade, atinge a própria saúde da vítima e caso esta procure evitar um maior dano, eximindo-se de colaborar com as investigações e comparecimento aos atos processuais, pode suportar sofrimento adicional através de uma inversão de posição, passando de vítima a acusada.

 

2.2 Crime de desobediência e estado de necessidade.

 

A vítima que pretende não comparecer perante os órgãos de investigação e de justiça, quando devidamente notificada na qualidade de ofendida estaria sujeita à punição pela prática do crime de desobediência tipificado no artigo 330 do CPB?

A mais autorizada doutrina (HUNGRIA, 1959) classifica a desobediência como crime doloso, exigindo esse elemento subjetivo de forma genérica, afastando a forma culposa. Havendo conduta típica, além de sintomas/diagnóstico do TEP, entendemos ser possível a aplicação da exculpante do estado de necessidade narrada no artigo 24 do Código Penal. A caracterização do estado de necessidade perpassa por requisitos  (DOTTI; HUNGRIA, 2016) ligados à situação de perigo. São necessários que estejam presentes os elementos referentes a sua comprovação, atualidade, involuntariedade em sua criação e também a inevitabilidade. Haverá um confronto/conflito entre bens jurídicos que deve ser resolvido em favor do bem de maior valor, sendo este o balanceamento a ser providenciado no caso concreto. A resolução deverá sempre favorecer o bem de maior valor, não considerando-se razoável exigir o sacrifício do bem ameaçado.

Na hipótese analisada, a vítima de violência sexual ao deixar de comparecer aos atos investigatórios e processuais estaria hipoteticamente cometendo o crime de desobediência e maculando um determinado bem jurídico, no caso a administração da pública. Entretanto é perfeitamente justificável que desobedeça e macule o citado bem, para evitar o grave perigo das intensas reações psicológicas ( terror, repugnância, depressão, etc. ) e/ou respostas fisiológicas ( aumento dos batimentos cardíacos, suor, respiração rápida, etc.), já citadas, que imprimem um sofrimento pessoal que pode culminar a perda da própria vida. Aqui o direito à saúde e a vida é superior e de maior importância em relação ao bem juridicamente protegido pelo artigo 330 do CP, qual seja, a administração pública.

 

 

3. Conclusão

 

Observamos que as mais recentes alterações relacionadas aos crimes contra a dignidade sexual, sobretudo ao tornar a ação pública incondicionada regra absoluta, foram conduzidas pela lógica do exacerbamento punitivista e também reduziram a esfera de autonomia antes conferida à vítima. A impossibilidade de afastar essa vítima dos elementos traumáticos através da revisitação obrigatória aos elementos como pessoas, objetos, narrativas, todos ligados ao trauma sofrido, pode levar ao recrudescimento do sofrimento e agravamento das condições de saúde da vítima. Além disto, diante da negativa desta vítima em denunciar e participar como ator processual - através das suas declarações, exames periciais, etc. - no bojo das investigações e ação penal, ela sujeita-se ao risco de cometer o crime de desobediência, previsto no artigo 330 do CP, acrescentando mais uma condição traumática à sua experiência.

É importante e necessário que se restaure a autonomia da vítima para que esta possa, sempre através de decisão própria, observar a conveniência em dar início a persecução penal, ou participar ativamente de investigação e atos processuais, tendo sempre em conta a preservação da saúde numa perspectiva biopsicossocial. Entretanto, enquanto o atual quadro legislativo não sofrer mutação e restaurar esse espaço de autonomia, pode a vítima laçar mão do artigo 24 do Código Penal e defender seu direito à saúde e negar colaboração e participação em eventos danosos, protegendo seu maior bem: a vida.

 

Paulo Emmanuel Farias de Albuquerque.

Advogado criminalista, graduado em Psicologia e pós-graduando Direito Penal e Processual Penal.

 

[1]Justiça em Números 2019/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2019. Página 163

  • TEPT. Revitimização. Autonomia. Crimes sexuais

Referências

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, ANELISE  (Coord.). Caderno Técnico de Tratamento do Transtorno de Estresse Pós-traumático – TEPT . Caderno técnico de tratamento do transtorno de estresse pós-traumático – TEPT , BRASILIA, p. 16, 2019.

Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa, Marília Brambilla e Carla Gehlen. O que significa importunação sexual segundo a Lei 13.781/18 ? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-28/limite-penal-significa-importunacao-sexual-segundo-lei-1378118. Acesso em: 24 jul. 2020.

CABALLO, Vicente E. TRATAMENTO COGNITIVO-COMPORTAMENTAL DOS TRANSTORNOS PSICOLÓGICOS: TRANSTORNOS DE ANSIEDADE, SEXUAIS, AFETIVOS E PSICÓTICOS. Tradução MAGALI DE LOURDES PEDRO. 2015. ed. SAO PAULO: GEN - SANTOS EDITORA, f. 172, 2015. Tradução de: MANUAL PARA EL TRATAMIENTO CONGNITIVO-CONDUCTUAL DE LOS TRANSTORNOS PSICOLÓGICOS.

DOTTI, René Ariel; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: tomo 2. 7. ed. Rio de Janeiro: LJM Mundo Jurídico, v. 1, 2016. 652 p.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. IX, 1959. 420 p.

PALOMBA, GUIDO.TRATADO DE PSIQUIATRIA FORENSE. SÃO PAULO: ATHENEU EDITORA, f. 559, 2003


Paulo Emmanuel Albuquerque

Advogado - Caruaru, PE


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