O cheque é considerado, ao mesmo tempo, um título de crédito e uma ordem de pagamento à vista, devendo ser pago no momento de sua apresentação ao banco sacado, descontando-se o valor do saldo em depósito do emitente.
Tal título de crédito possui bastante relevância jurídica, uma vez que é amplamente utilizado em relações comerciais e contratuais, dispondo, portanto, de uma sólida regulamentação.
No Brasil, a legislação tratando sobre o tema era bastante esparsa, até a promulgação do Decreto nº 2.591, em 1912, que, por sua vez, vigeu até ser substituído pela Lei nº 7.357, de 1985.
Esta rege os procedimentos e requisitos para utilização da referida cártula, sendo, ainda, complementada por resoluções e circulares expedidas pelo Banco Central do Brasil e pelo Conselho Monetário Nacional.
Ocorre que, com o passar do tempo, desenvolveu-se, nas relações de comércio, sobretudo no Brasil, a prática de uma venda à prazo, aceitando-se os chamados “cheques pré ou pós-datados”, modalidade não prevista de forma especial por lei.
Nessa situação, o emissor do cheque, de comum acordo com quem irá receber, o emite com uma data futura, indicando, desse modo, que ele só deverá ser apresentado ao banco sacado a partir da data indicada, não antes.
No entanto, como se mencionou, o cheque é um título de crédito com ordem de pagamento à vista, válida para o dia de sua apresentação ao banco, mesmo que nele esteja indicada uma data de emissão futura, conforme determina o art. 32, da Lei nº 7.357/85, vejamos:
Art. 32. O cheque é pagável a vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário.
Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação.
É importante ressaltar que, conforme prevê o §1º, do art. 4º da Lei do Cheque, no momento da apresentação será verificada a existência de fundos para descontá-lo, vejamos:
Art . 4º (...)
§ 1º - A existência de fundos disponíveis é verificada no momento da apresentação do cheque para pagamento.
Assim, se houver fundos na conta do emitente, o cheque pré-datado será pago, caso contrário, não poderá haver a compensação e o mesmo será devolvido, com a indicação, no verso, do código correspondente ao motivo da devolução.
Havendo a devolução, em virtude da ausência de fundos, a sistemática vigente, determinada pelo Banco Central, prevê algumas sanções, como a inscrição no CCF (Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos), a impossibilidade de emissão de outro talonário de cheques, o pagamento de taxa do Serviço de Compensação de Cheques e Outros, podendo, além disso, haver o encerramento da conta do emitente.
Assim, a apresentação antecipada de um cheque “pré-datado” consubstancia-se em um ato com potencial gravoso ao emitente, de modo que a questão passou a ser reiteradamente enfrentada por nossos Tribunais.
Em fevereiro de 2009, os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovaram a Súmula nº 370, a qual pretende estabelecer, em âmbito nacional, um entendimento unificado de que a apresentação antecipada da cártula seria passível de indenização. Vejamos o teor da Súmula:
STJ – Súmula nº 370 - Caracteriza dano moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado.
Esse entendimento reforça o ideal de manutenção da boa-fé contratual entre as partes, já que a apresentação antes da data pactuada, denota o descumprimento do contrato (negócio jurídico) afixado no título de crédito, gerando danos na esfera extrapatrimonial do emitente devedor.
Leva-se em consideração que o Código Civil Brasileiro de 2002 prevê a possibilidade de ser realizado negócios jurídicos atípicos, como é o caso dos contratos de pagamento parcelado por meio de cheques pré-datados, de modo a validarem o contrato em todos os seus termos. Vejamos os dispositivos legais que tratam do assunto:
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
Desse modo, tal prática de mercado claramente serve como um estímulo à conclusão do negócio, uma vez que se permite ao emitente dilatar o prazo de pagamento, bem como deixando o credor resguardado com a posse de um ou mais títulos de crédito.
Frisa-se, ainda, que, segundo nosso ordenamento jurídico, apenas as cédulas e as moedas do Real têm curso forçado, ou seja, ninguém está obrigado a aceitar outra forma de pagamento, senão em espécie na moeda nacional. Porém, se aceitar alguma forma alternativa, deverá cumprir o contrato.
Havendo, portanto, a firmação do negócio jurídico, o contrato passa a viger entre as partes e consolida-se o dever recíproco de se manter os princípios da boa-fé e da probidade, conforme estabelece o art. 422, do CC/2002:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Os doutrinadores Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery defendem que o referido dispositivo legal deverá sempre ser aplicado e analisado nas relações contratuais, podendo o juiz suprir e corrigir o contrato para tanto, vejamos:
A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes. (NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade, “Código Civil Anotado e legislação extravagante, Saraiva, 2ª Ed., 2003, p. 340-341)
Ademais, resta plenamente configurada no nosso ordenamento jurídico a necessária atenção à boa-fé objetiva contratual, consoante diversos enunciados das Jornada de Direitos Civil, como:
Enunciado nª 24 da I Jornada de Direito Civil: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa;
Enunciado nª 27 da I Jornada de Direito Civil: Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos;
Enunciado nª 363 da IV Jornada de Direito Civil: Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação.
Assim, havendo o credor (aquele que recebe o cheque) apresentado antecipadamente a cártula, há a quebra do contrato, configurando, portanto, um ato ilícito, ainda que por abuso de direito, nos termos dos arts. 186 e 187, do CC/2002, veja:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Destaque-se que, do ponto de vista cambiário, não houve nenhum ato ilícito, uma vez que, sendo o cheque uma ordem de pagamento à vista, poderia ser apresentado a qualquer tempo, sem que se configurasse qualquer ilegalidade. No entanto, nesse caso, o ato ilícito cometido seria contratual, uma vez que se estabeleceu, entre as partes, que o cheque só seria apresentado em uma determinada data.
Carlos Roberto Gonçalves arremata a questão nos seguintes termos:
Prevalece na doutrina, hoje, o entendimento de que o abuso de direito prescinde da ideia de culpa. O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro dos limites da lei, deixa de considerar a finalidade social de seu direito subjetivo e o exorbita, ao exercê-lo, causando prejuízo a outrem. Embora não haja, em geral, violação aos limites objetivos da lei, o agente desvia-se dos fins sociais a que esta se destina. (GONÇALVES, Carlos Roberto, “Direito Civil Brasileiro, Vol. I, Parte Geral, Saraiva, 2003, pag. 459)
Assim, ocorrendo danos, o próprio Código Civil prevê ser devida a reparação, em virtude de atos ilícitos praticados, vejamos:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
A doutrina, no mesmo sentido, informa que:
O não cumprimento da obrigação, quando injustificado, importa lesão de direito, determinando o ressarcimento do dano causado pelo inadimplente. (WALD, Arnold. "Curso de Direito Civil Brasileiro, Obrigações e Contratos", 10a Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992)
Dessa forma, os Ministros do STJ, ao consolidarem o entendimento da Súmula nº 370, levaram em consideração que a devolução de cheque, apresentado antecipadamente, por falta de fundos causa sérios constrangimentos ao emitente, de modo que se presume a ocorrência de danos, independe de provas, gerando, por conseguinte, o direito à indenização.
Nesse ponto, é importante ressaltar que, embora se presuma a ocorrência de danos, é necessário a comprovação mínima da ocorrência dos prejuízos com a apresentação antecipada do título, de modo que se deve demonstrar, por exemplo, que houve a inscrição do nome do emitente no CCF, ou que ocorreu alguma restrição creditícia, ou que a conta do emitente foi encerrada, ou que, por conta desta compensação antecipada, algum outro título fora devolvido.
Por fim, é possível concluir que a Súmula nº 370 do STJ busca pacificar nos nossos Tribunais o entendimento de que a apresentação antecipada de cheque é suscetível a gerar uma indenização por danos morais, uma vez que fere o contrato estabelecido entre as partes, podendo causar diversos constrangimentos e restrições comerciais.
No entanto, a análise dos precedentes que levaram à consolidação desse texto sumular demonstra que não basta que um cheque seja descontado antes do prazo para que se configure um dano moral, devendo a parte ofendida atentar para demonstrar o prejuízo sofrido. Havendo a demonstração do dano, haverá direito certo à reparação.