No dia 6 de julho de 2015 foi sancionada a lei 13.146/2015 que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Inobstante a nobreza do escopo desta norma, o seu pretenso alvo de tutela foi, em verdade, o principal prejudicado.
A lei visa à proteção da dignidade do portador de deficiência e, com essa finalidade, a mesma promove alterações de artigos do Código Civil que refletem diretamente em alguns institutos do direito de família, notadamente o casamento do incapaz.
O matrimônio contraído pelo enfermo mental passa a ser válido. Mantêm-se, tão somente, a anulabilidade do conúbio daquele que for considerado incapaz de manifestar, de modo inequívoco, o seu consentimento. Percebe-se que o novo Estatuto impõe barreiras para a anulação do casamento do portador de deficiência, independentemente do seu grau de discernimento. Em outras palavras, o agente, por mais severa que seja a sua deficiência mental, poderá se casar, transformando, ipso facto, o cônjuge, em seu herdeiro necessário e meeiro.
Sem ignorar que o casamento é, via de regra, salutar ao portador de deficiência e contribui para a sua inclusão social, este tema deveria ter sido tratado com maior zelo pelo legislador, considerando o risco de tornar-se lesivo ao próprio deficiente, o que, de fato, aconteceu.
A título de ilustração, o matrimônio contraído por um indivíduo maior de dezoito anos, com a idade mental equivalente a uma criança de nove anos e capaz de manifestar sua vontade de forma clara, não será passível de anulação. Percebe-se aí uma porta aberta para um casamento no qual o outro nubente tenha interesses diversos do estabelecimento de um laço afetivo com o deficiente, como por exemplo, a obtenção de vantagens financeiras. Por óbvio, a realidade pode ser facilmente deturpada perante um enfermo mental e o mesmo se tornará deveras susceptível à dilapidação do seu patrimônio.
Como se percebe, uma alteração como esta, ainda que bem intencionada, pode acarretar prejuízos à segurança do incapaz que precisa ser rigorosamente protegido em todos os aspectos. Não há como desconsiderar a vulnerabilidade de um indivíduo que, por variadas causas, não têm discernimento pleno.
O art. 1550 do Código Civil, por sua vez, também ganhou um novo parágrafo, preceituando que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador. Eis aí uma outra grave impropriedade da referida Lei.
Cumpre elucidar que a vontade é elemento essencial ao casamento que detém uma natureza personalíssima. Admitir que a vontade do nubente possa ser expressada mediante o seu responsável ou curador contraria a pessoalidade do instituto, além de, igualmente, escancarar possibilidades para fraudes perpetradas pelo matrimônio decorrente apenas da pretensão dos responsáveis e curadores. Ora, não parece lógico que deficientes interditados por incapacidade de manifestar sua vontade possam expressa-la através de seus curadores. Se não há como conhecer a vontade do deficiente, também não há como garantir que o curador atuará no interesse daquele.
Ainda sobre esse parágrafo, não se pode deixar de aludir a fulgente contradição entre ele e o art. 85 do Estatuto aqui analisado. Segundo preceito deste último, a curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcançando o “direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”. Percebe-se aí que o enlace matrimonial não está dentre os atos afetados pela curatela, o que torna ainda mais inconcebível e contraditório a hipótese de expressão da vontade do curatelado através de seu curador no que tange às núpcias.
Percebe-se, portanto, que a Lei 13.146/2015 buscou a inclusão do deficiente trilhando por um caminho oposto ao adotado anteriormente pelo Código Civil. As normas revogadas buscavam afastar ou, ao menos, minimizar os riscos de lesões a estes indivíduos, especialmente no que tange ao casamento. O novo Instituto, porém, ao tentar equiparar as condições dos considerados incapazes à força, retira deles a proteção consubstanciada no sistema das incapacidades e desconsidera as suas vulnerabilidades, abandonando-os à própria sorte.
Engessar o poder do juiz de proteger plenamente o indivíduo acometido por uma situação incapacitante não assegura a dignidade deste. A flexibilidade legislativa garantiria a adequação dos princípios protetivos a cada caso concreto. O grau de incapacidade do deficiente deveria ser apurado pelo julgador que, apenas estaria autorizado a afastar as restrições impostas ao interditado no que tange ao casamento, se este demonstrasse plena aptidão para compreender a importância e as consequências deste ato. Esta seria a forma mais correta, segura e eficiente de buscar a igualdade.
As diferenças existem e são fatores biológicos que não serão suprimidos por advento de lei alguma. Não adianta tentar “negar” as adversidades por meio de um Estatuto que, formalmente, proclama a igualdade. Infelizmente, este não é o caminho. O fato é que essas mudanças trarão consequências negativas para aqueles que se tentou proteger, pois suas fragilidades ficarão expostas e o ordenamento jurídico não mais estará apto a acolhê-los.
LARISSA MUHANA
Advogada, sócia do Muhana, Souza & Dias Advocacia.
Graduada em Direito pela Universidade Católica do salvador.
Pós Graduada em Direito Empresarial pela Universidade Anhanguera- UNIDERP, Rede de Ensino LFG.