PREÂMBULO
Tensão entre contratos que precisam ser observados sob a égide da lei e os interesses sociais de menos favorecidos que precisam ser cumpridos.
O Juiz e a atividade judicial tem um fim social à cumprir, e a busca da justiça social justificam decisões que violam contratos?
1. Introdução
Decerto quando abordamos temas relacionados à atividade judicial, em especial às decisões tomadas na solução de contendas que possuem influências diretas no contexto social, em suma, com repercussão coletiva, nos vem a tona as discussões doutrinárias, ora polêmicas, ora pacificadas da ação do Juiz-Interprete-decisor nos casos em concretos, no entanto, muitas destas discussões, de uma maneira ou outra, com o viés moderno da contextualização de um Estado Democrático de Direito instituído por uma Constituição de Núcleo Social, partem do pressuposto que o judiciário vem mudando, vem rompendo a visão do distanciamento, vive-se um novo tempo, abriu-se uma nova visão, pela qual o Juiz encontra maior legitimação quanto mais próximo estiver da sociedade [1].
Decisões judiciais são tomadas à todo dia, à toda hora, à todo minuto, valendo dizer que ainda no encerramento da introdução deste artigo, na edição 2.391 de 17/09/2014 da Revista Semanal Veja, Editora Abril, nas páginas amarelas dedicada à entrevista com personalidades, a Ministra do STF Carmen Lúcia quando indagada sobre o número de processos que tramitam na justiça, apresenta dados alarmantes na ordem de 85 milhões de processos para 200 milhões de habitantes no Brasil com 18.000 juízes, enfatizando que somente no STF são mais de 60.000 processos e à sua relatoria encontram-se 2.000 destes, o que em um tom quase de desespero, diz que se tivesse que pedir alguma coisa aos cidadãos brasileiros, pediria misericórdia.
Assim, entende-se que definitivamente uma decisão tomada acerca de uma visão positiva e estritamente legal, quase sempre não é justa o suficiente ou não se adéqua as realidades dos fatos, pois uma coisa é a preceituação abstrata da Lei, outra é a situação concreta em lide, e por isso, já com um excesso de demandas judiciais típicas de um Estado Democrático de Direito com um Poder Executivo que muito deixa a desejar, o cidadão encontra guarida no Poder Judiciário, o que espera-se que nenhum juiz se enveredará ao positivismo exacerbado legal para acelerar seus atos judiciais, levando sim a quase pedir “misericórdia” à sociedade face o seu compromisso de justeza não poder ser ultrajado em função da quantidade de demandas que lhe são caras.
Leis, Direitos e Princípios é a tríplice argamassa que (re) reúne a sociedade moderna que se valoriza no Estado Democrático de Direito e influencia de forma demasiada em qualquer decisão judicial, quando não, esta última é que garante a própria “argamassa”, pois dosa, ou procura dosar os ingredientes de forma a colher o melhor assentamento da Justiça. Com isso, entende-se que para responder a questão em destaque no presente trabalho, faz-se necessário compreender, não todos, mas uma parte da Lei (contratos), e dos Princípios Gerais do Direito, iniciando com a teoria geral dos contratos, passando pelos princípios gerais que norteiam a atividade contratual, e encerrando com o livre convencimento do Juiz, tudo resultando no Direito, mas um Direito legitimidado, de efeito progressivo e ponderado que não só retoma a pacificação da sociedade, mas também a mantém em paz de forma perene.
Espera-se contudo que na conclusão, possamos justificar e motivar o nosso entendimento quanto à resposta exigida à questão, senão vejamos.
2. Acepções doutrinárias sobre a teoria geral dos contratos
Nada mais salutar que procurar por acepção na atual doutrina jurídica, fundamentos que possam consubstanciar uma posição declaratória acerca da função social do contrato que é entendida pelo Juiz em suas decisões quando que por preceitos contemporâneos sociais e legais, dentro da mais pura e evidente observação metacomplementar social, observa os efeitos extrínsecos de sua decisão sobre determinada lide contratual na sociedade, ou seja, aplica a valoração do vínculo social que é mormente e se estabelece na relação de vontades pactuadas entre dois ou mais sujeitos de direito no consentimento de um contrato, que no plano material da circulação financeira e econômica da sociedade faz valer a eficácia do objeto contratual, e no plano teleológico deve fazer valer seus efeitos.
Neste sentido, o Prof. Silvio Venosa, logo no final da vacatio legis do novo Código Civil de 2002, em sua obra dedicada a teoria geral dos contratos, quando estabelece as diferenças com o antigo Código Civil de 1916, exalta a evolução do direito privado em nosso país principalmente depois de promulgada a Constituição de 1988, aludindo que o novo código, embora tardio em relação a data de promulgação de nossaConstituição fez prevalecer nas relações contratuais da sociedade e também nas decisões judiciais, uma visão social mais abrangente e moderna, quando então trouxe para discussão a decisão do Juiz no campo da lide contratual, afirmando que:
“O novo direito privado exige dos juristas e do juiz soluções prontas e adequadas aos novos desafios da sociedade. (...), e em especial o direito dos contratos, que duramente tantos séculos se manteve avesso a modificações de seus princípios, está a exigir reflexões que fogem aos dogmas clássicos. Nesse cenário, o novo Código procura inserir o contrato como mais um elemento de eficácia social [grifo nosso], trazendo a ideia de que o contrato deve ser cumprido não unicamente em prol do credor, mas como benefício da sociedade.”[2]
Isto posto, e complementando a obrigação do Juiz na observância da função social do contrato, o doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, apresenta uma visão doutrinária sobre a modernidade do conceito da função social do contrato e seu contexto que prevalece e delimita efeitos contratuais, deixando praticamente à margem o advento da autonomia da vontade e o próprio princípio do pacta sunt servandaveementemente garantido no antigo Código de 1916, e porque não objeto de sustentação econômica da antiga sociedade do início do século XX que se protegeu juridicamente sob um código projetado por Clóvis Bevilaqua ainda no final do século XIX; à época uma sociedade recém republicana, com restícios da escravidão, e com evidentes mudanças econômicas de ajustamento da nova ordem social que se estabelecia. Suscintamente o Prof. Carlos Gonçalves então nos traz:
“A função social do contrato constitui, assim, princípio moderno a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Alia-se aos princípios tradicionais, como os da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, muitas vezes impedindo que estes prevaleçam.”[3]
E encerra complementando:
“Segundo Caio Mário, a função social do contrato serve precipuamente para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social [grifo nosso] e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar.”[4]
Quanto a concepção doutrinária muito evidente no campo da teoria geral dos contratos que possui em seu cerne conceitual as garantias da circulação de riquezas na sociedade economicamente ativa da modernidade, emitindo grande valoração ao contrato e prevalecendo por excelência a evolução econômica e social da sociedade, o Prof. Pablo Stolze colabora com o seguinte ensinamento:
“Em um segundo plano, o contrato é considerado não só como um instrumento de circulação de riquezas, mas, também, de desenvolvimento social. Isso mesmo: desenvolvimento social. Sem o contrato, a economia e a sociedade se estagnariam por completo, fazendo com que retornássemos a estágios menos evoluídos da civilização humana.”[5]
Logo, quando falamos de desenvolvimento social, não tão somente podemos assentir as questões econômicas da circulação de mercadorias e das propriedades como veio máximo e constante que garante alguns direitos fundamentais constitucionalmente conquistados para os entes que formam a sociedade, o Homem e sua livre iniciativa, nem tão pouco o seu real valor metafísico como pessoa humana ser garantido simplesmente pelas garantias econômicas que espera-se com o advento do contrato, mas sim, pela linha estruturante constitucional valorativa que afeta toda e qualquer situação geradora da eficácia legal e moral do ato de contratar, a própria potencialidade jurídica da “observância dos limites traçados pela própria ordem social, a fim de que a perseguição dos interesses das partes contratantes não esbarre em valores constitucionais superiores, condensados sinteticamente no princípio da dignidade da pessoa humana”[6]
Ainda, em referência à dignidade da pessoa humana,, não por acaso já expressa no inciso III do art. 1º da Carta Magna, fazendo parte do rol de fundamentos do Estado Democrático de Direito, mais que um fundamento inicial de uma Carta Política, este se valoriza como princípio estruturante da própria Constituição em todos os seus demais artigos, ou seja, não há de se falar em qualquer garantia ou preceito político constitucional sem que esteja revestido principiologicamente de um pressuposto vinculante à dignidade humana, e não por menos Ingo Sarlet, aludindo sobre a racionalização do jusnaturalismo e da concepção de dignidade da pessoa humana, citou Kant quando este construiu uma noção de dignidade fundada na autonomia da vontade e na idéia de que o homem é um fim em si mesmo[7], concluindo então que:
“De qualquer sorte, vinculada à noção de liberdade e de direitos inerentes à natureza (racional) humana, a dignidade passou a ser gradativamente reconhecida e tutelada pelo direito positivo, tanto constitucional quanto internacional, assumindo, no que parece existir considerável dose de consenso, a condição parâmetro de legitimidade do Estado e do Direito.”[8]
Assim, com a dignidade da pessoa humana que por excelência é um princípio estruturante constitucional, não há de se falar em um ordenamento jurídico pátrio que não estruture seus preceitos legais, doutrinários e jurisprudenciais no contexto da dignidade, tendo por sujeito lógico o Homem e sua vida em sociedade.
Neste âmbito e em uma de suas remissões jurídicas de âmbito social, o Prof. Pablo Stolze, que me parece um grande humanista, colaborando com o veio estruturante da dignidade humana nas relações contratuais que transmuta diretamente no fim social do contrato, nos presenteia com o seguinte trecho doutrinário quando do consentimento contratual e da visão social do Juiz.
“Tal negócio não pode ser avaliado apenas sob o prisma formal dos seus pressupostos de validade — agente capaz, objeto lícito, forma prescrita em lei etc.E os seus reflexos ambientais?E os seus reflexos trabalhistas?E os seus reflexos sociais?E os seus reflexos morais (no âmbito dos direitos da personalidade)?”[9]
E é nesse ponto, nos reflexos do contrato, que tanto os entes contratantes quanto juristas e juízes devem se ater socialmente ao serem provocados, de forma respectiva; Ao consentimento que faz nascer o contrato, à estruturação contextual e doutrinária, e principalmente à eventual decisão de uma lide, esta última sendo a própria representação do Estado não tão somente buscando apaziguar o mundo fático jurídico, mas observando e se acercando dos reflexos que poderão recair no efeito extrínseco (efeitos na sociedade), em alguns momentos abstrato, em outros, concretos, que residem no entorno do contrato celebrado de forma ulterior.
A decisão do Juiz que é abrilhantado com a visão social de mundo, visão essa provocada inclusive pelo ordenamento jurídico vigente estruturado pelos princípios constitucionais, e com um amplo olhar na função social de suas decisões, não se sublima em uma torpe decisão socialista, principalmente quando estarrece o panteão da propriedade privada da economia capitalista, tão somente se constrói e se fundamenta em princípios estruturantes de uma sociedade de direitos, tal como observa a Prof.ª. Giselda Hironaka quando desmitifica o termo “social” nos contextos doutrinários jurídicos, já nos remetendo ao entendimento da função social como princípio e não como decisão de puro aspecto dialético político-econômico.
“Ainda que o vocábulo social sempre apresente esta tendência de nos levar a crer tratar-se de figura da concepção filosófico-socialista, deve restar esclarecido tal equívoco. Não se trata, sem sombra de dúvida, de se estar caminhando no sentido de transformar a propriedade em patrimônio coletivo da humanidade, mas tão apenas de subordinar a propriedade privada aos interesses sociais, através desta ideia-princípio, a um só tempo antiga e atual, denominada “doutrina da função social””[10]
Dignidade da Pessoa Humana, fim social da propriedade, livre iniciativa, todos compõem, não de forma principal, porém estruturante, o elenco de princípios e fundamentos que estruturam a função social do contrato hoje condensada tanto na propriedade e seu fim social, mas também positivada no Código Civil 2002 em seu art. 421 “A liberdade [ ou Livre iniciativa] de contratar será exercida em razão [ da Dignidade da Pessoa Humana] e nos limites [ do Fim Social da Propriedade e ]da função social do contrato”, encontrando guarida na probidade e boa-fé objetiva dos contratantes (art. 422 CC/2002), no entanto, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade, distribuição de riquezas, for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social [11],que se dará tão somente no exercício dos contratantes da livre vontade de contratar observando em primeiro momento os aspectos dos efeitos sociais e legais, e em segundo momento na eventual necessidade de intervenção interpretativa do Juiz.
Lei, Partes e Juiz, constituem então o trinômio da vinculatividade jurídica do contrato, a própria conciliação do útil e do justo. A busca da equidade, do estabelecimento da ordem pública e da preservação dos bons costumes positivados especialmente pela boa-fé dos contratantes sem esmorecer a responsabilidade social de cada um, faz exsurgir um sistema normativo misto expressamente destacado pelo instituto das cláusulas gerais que levam em consideração as particularidades do caso concreto e efetiva-se no sistema contratual com os princípios contemporâneos que “constituciolizam” o negócio jurídico, trazendo para dentro o princípio da dignidade humana que não se exaure tão somente no expresso instituto contratual, mas substitui o foco anterior da autonomia da vontade e da máxima do pacta sunt servanda, muito bem esclarecido pela jurista Judith Costa, citada pelo Prof. Pablo Stolze:
“Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar resposta, previamente, a todos os problemas da realidade, uma vez que estas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é o de enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes. (...) as cláusulas gerais não contêm delegação de discricionariedade, pois remetem para valorações objetivamente válidas na ambiência social.” [12]
A aplicabilidade da decisão judicial perante o conflito existente entre a Liberdade Contratual, a interpretação de cláusulas gerais e a função social do contrato, evidenciam cada vez mais a valoração do princípio do livre convencimento do Juiz que nada mais é que a construção de uma certeza subjetiva que se calça com um grau utilizável de sua vida prática, no entanto é revestida de uma alta probabilidade de uma experiência não recíproca e não suficiente para sua convicção, pois a segurança da experiência pode não se refletir na visão social esperada, constituindo então na possibilidade de criação de um contraponto revestido de fundamentação objetiva dogmática, e por isso, vale adentrarmos à seara do entendimento da formação da livre convicção judicial para buscarmos a breve compreensão dos valores intersubjetivos dos sujeitos afetados pela função social do contrato.
3. O Princípio do livre convencimento do juiz - subjetividade e valoração social
Definitivamente não é de matéria fácil definir o secundum conscientiam[13] atribuído ao Juiz, que muito embora não seja desvinculado da verdade formal que lhe impõem a legislação processual, tem o atributo principiológico e legal de tomar suas decisões segundo critérios racionais que constroem sua livre convicção.
A livre convicção do Juiz pertence à um rol que compõem o conhecido Sistema do Livre Convencimento do Juiz que se integra ao Princípio do Livre Convencimento, porém não se pode confundir com ele, uma vez que o princípio abrange a prova, sua produção e avaliação, a formação do convencimento e da motivação do juiz, bem como suas limitações quando da sentença perante a Lei, logo vale ater-se neste momento somente sobre o sistema de construção deste convencimento, sem desconsiderar a grande importância e relevância processual dos institutos que compõem o bojo do princípio. O entendimento e aplicação jusfilosófica e adogmática neste ínterim tem maior importância ao cerne deste trabalho.
Assim como em todo “sistema” existe sempre uma complexidade de maior ou menor grau que lhe é peculiar, o sistema-jurídico que constrói, como já afirmado, osecundum conscientiam, pode ser mais complexo do que se possa determinar doutrinariamente, pois o Homem, assim como o pensamento jurídico evolui, traz novas coisas para a hermenêutica que por excelência já possui preocupações axiológicas, promovendo que a aplicação da lei pelo judiciário deve fundar-se em critérios valorativos mais altos, priorizando as aspirações de justiça e bem-estar social [14]
Neste sentido, e pelo exposto, a Lei aplicada deve ser interpretada para ajustar-se aos fatos do mundo social, dar-se-á a interpretação teleológica, para a qual os recursos aos fins sociais seria a sua própria essência, o fim seria o criador de todo o direito [15], logo, como já se sabe, a Lei por não ser absoluta, o julgador ao exercitar o livre convencimento em conjunto com a interpretação da lei, deve harmonizá-la à realidade fática do momento à que se mostra a sociedade, no entanto harmonizar não quer dizer ignorar ou não atender o comando legal, mas força naturalmente o julgador, entre a variadas interpretações possíveis considerar aquela mais benéfica à sociedade onde o respectivo regramento vige, construindo uma convicção permeada de experiências internas e externas de sua vida perante a realidade social que o cerca, se afirmando na antiga bravata que “a maior fonte do direito não é a lei, é a vida”[16]
Sem dúvida, não há como descartar que a Lei pode ser limitadora do livre convencimento do Juiz, dependendo muito de sua experiência e de sua vontade enquanto Homem inserido na sociedade e Julgador, no entanto, talvez a própria insegurança da possível nulidade de sua sentença combinada com a dificuldade de explicitar sua motivação, o Juiz pode se enveredar no caminho da positividade sem princípios valorativos e axiológicos, não se aproximando dos limites da Lei e protegendo à sua motivação, não obstante, quase criando um contraponto, já afirmava o exímio jurista Pontes de Miranda:
“O inconveniente do Principio da Livre Apreciação, sem limites claros, é o de aumentar enormemente a responsabilidade do Juiz, ao mesmo tempo que abre a porta para impressões pessoais, às suas convicções de classe ou política, às tendências de clã ou de clube.”[17]
Tanto o aumento da responsabilidade do juiz, quanto suas impressões pessoais, ambas construindo moralmente e ao mesmo tempo racionalmente o Livre Convencimento do Juiz, nada mais relevante que colocar no vértice desta construção dialética que de fato motiva a eventual decisão, o “pensamento social que está sempre condicionado por representações com as quais fazemos nossas leituras de vida”[18], e neste aspecto assim se afirmou:
“Um dos tais aspectos é o de que os juízes das supremas cortes (neste sentido, também os das cortes inferiores) absolutamente não são, nem podem ser independentes em relação a inúmeras influências, principalmente da origem de classe, educação, situação de classe e tendência profissional, que contribuem tanto para a formação de sua concepção do mundo como no caso dos outros indivíduos. Ao interpretar e executar a lei, os juízes não podem deixar de ser profundamente afetados por sua concepção do mundo, a qual, por sua vez, determina a sua atitude em face dos conflitos que ocorrem dentro dele. Poderão julgar que são guiados exclusivamente por valores e conceitos que pairam muito acima das considerações mundanas de interesses de classe ou especiais. Mas, em sua aplicação concreta, tais conceitos oferecerão, no entanto, muitas vezes um aposição e uma tendência preconceituosamente ideológica, diferentes e identificáveis, na maioria dos casos de tipo fortemente conservador. (...) Os próprios juízes revelaram algumas vezes ter plena consciência de sua tendência preconceituosa particular. Assim é que um juiz altamente conservador, Scrutton, observou em 1922 que os hábitos nos quais você é treinado, as pessoas com quem você convive, levam-no a possuir certo conjunto de idéias de tal natureza que, quando você tem que enfrentar outras idéias, os julgamentos que profere não são tão globais e acurados quanto desejaria. (...) Ou então, segundo as palavras do Juiz Cardozo, “o espírito da época, tal como ele se revela para cada um de nós é freqüentemente o espírito do grupo ao qual por acidentes de nascimento ou de educação, ou de ocupação ou camaradagem, nós percebemos.”[19]
Até aqui pode-se compreender que o Livre Convencimento do Juiz, sempre será regrado de forma indireta, ora pela aplicação da Lei em seu sentido estrito, ora pela observância das repercussões sociais à que principiologicamente deve se atentar, ora pelas garantias constitucionais fundamentais e ora pela valoração do Estado Democrático de Direito. A Lei, que em sua espécie reflete o desejo da sociedade, passa a ser um delimitador deste convencimento, mas ao mesmo tempo este delimitador é altamente relativo quando encarado pelos efeitos sociais que se emanam das Leis, tal como o Juiz ter que em algum momento decidir entre dois princípios fundamentais, propriedade privada e fim social da propriedade, qual destes teria maior valoração para influenciar o livre convencimento do Juiz? São dois princípios valorativos de mesmo valor axiológico e certamente a prevalência de um não exclui o outro, muito pelo contrário, eles se incorporam entre si, mas aqui estaríamos em outra seara jurídica, porém serve de exemplo para compor a dificuldade do Livre Convencimento em sua aplicação.
O Professor Humberto Theodoro, assertivamente exalta aquilo que chama de atuação criativa do juiz, entretanto delimita esta “criatividade” advertindo que o Juiz não pode se colocar acima da Lei, o que há de se discordar em parte, pois não há como um Juiz estar acima da Lei, por excelência da sua função, ele é o aplicador da Lei, seu papel é respeitá-la e interpretá-la de forma à se adequar à realidade que se vive, poisHomens, por mais brilhante que o sejam, morrem, Leis, porém, ficam, e assim, não só no sentido material do termo ficar, essas ficam no tempo, enquanto ele passa e a humanidade evolui, valores mudam e a realidade social se altera. Na medida que a realidade social se altera, a realidade jurídica também, deve-se alterar [neste sentido, deve-se interpretar com adequação a realidade atual da sociedade], acompanhando-a, para termos uma realidade jurídico-social.[20] Mesmo assim, o Prof. Humberto alerta ponderadamente:
“No desempenho, porém, da atuação criativa, o juiz não deverá, obviamente, se colocar acima da lei, porque a ordem constitucional se acha apoiada no princípio da legalidade. Pode interpretar a lei atualizando-se o sentido, para adequá-la aos costumes e anseios da sociedade contemporânea. [grifo nosso] Pode aprimorá-la, pode completá-la, suprindo-lhe as lacunas, mas não deve, de forma alguma, desprezá-la ou revogá-la.”[21]
O Estado através de seu Poder Legislativo não consegue se adequar à velocidade de transmutação da sociedade, e percebendo isso, as Leis mais modernas, principalmente aquelas que surgiram ou foram alteradas a partir da Constituição de 1988 passaram a ter mais inteligência na construção de seus textos, preceitos e comandos para ao menos conseguir alcançar a evolução social dinâmica e perene da sociedade, bem como atender normas constitucionais definidoras de direito e programáticas[22], mas para isso seu contexto torna-se “aberto”[23], exigindo de juristas e principalmente do Juiz a adequação, muitas vezes tardia em relação ao que se preceitua e a realidade presente, trazendo então ao judiciário a responsabilidade da decisão e com isso grande responsabilidade social, muitas vezes criticada, outras vezes elogiada, tudo dependendo do posicionamento dos Núcleos Significativos da Sociedade[24] que outrora influenciaram o legislador na preceituação legal, e neste mesmo sentido, Mauro Cappelletti nos presenteou, ao menos no Brasil traduzida e publicada pela Editora Sergio Fabris na década de 90, as suas remissões compiladas no livro “Juízes Legisladores? (Giudici Legislatori?)”, trazendo em questão se o Juiz é um interprete-aplicador da Lei ou se ele participa da atividade legislativa de criação do direito?. Isso então nos faz entender tratar de um problema crônico da Sociedade Democrática de Direitos a ação Judicial nas lacunas que surgem no ordenamento jurídico em leis que se estagnam no tempo ou não se adequam a realidade social que se aplica, e aqui confirma-se o adágio de que “A Lei reina, mas é a jurisprudência que governa”[25].
O Poder Judiciário em um Estado Democrático de Direito, legitimado por umaConstituição de núcleo significativo social, deve ter em seus magistrados a consciente convicção de que muito além de interprete-aplicadores, são responsáveis pela função social do Estado, das Leis e principalmente dos negócios que movimentam sua economia e suas riquezas, suprindo lacunas dos poderes remanescentes que não se adequam às reais, fáticas e claras necessidades das sociedade. O empreendimento particular, quase sempre se exime de suas responsabilidades sociais e ambientais sempre com o condão de proteger seus interesses tão somente restritos, e somente com a ação ponderada, racional e ao mesmo tempo subjetiva-social do Livre Convencimento do Juiz, fará com que o cerne constitucional axiológico e valorativo do Homem e sua dignidade se estabeleça na vida em sociedade.
4. A resposta à questão
Sim, o Juiz e a atividade judicial tem um fim social à cumprir, e a busca da justiça social justificam decisões que violam contratos.
O Juiz faz parte, quando mais, é a própria atividade judicial. Suas prerrogativas constitucionais o coloca como meio motriz das garantias fundamentais do cidadão, assim como instrumento afinado para prover a pacificação social.
Em um Estado Democrático de Direito, não há como estabelecer o regramento judicial em um culto a positividade das leis, o Estado, representado pelo Juiz deve ser revestido de ponderamentos e valores que se assentam na amplitude social, no coletivo, porém isso não quer dizer que o particular não tenha direitos a serem garantidos, os próprios princípios gerais do direito se sustentam em primeiro momento no Direito Privado, na relação entre particulares, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas em um relacionamento mútuo tanto negocial quanto social, mas não se pode colocar este explicito direito privado em vantagem aos interesses da sociedade, afinal o próprio direito privado tem atuação fática na mesma sociedade que o garante, tal como o exemplo do terreno que é alugado por uma empresa para armazenamento de lixo tóxico sem tratamento, ou da distribuição de amostras grátis de bebida alcoólica em frente a uma unidade dos Alcoólatras Anônimos. Não há como negar que, nesses casos, há um interesse que decorre dos direitos sociais, de ter um meio ambiente limpo ou a recuperação do alcoólatra, que não pode ser desprezado em favor da liberdade contratual de particulares”[26] , ou até mesmo a expressão preceitual das Disposições Finais e Transitórias do Código Civil de 2002, quando noparágrafo único do Art. 2035 assim se explicita: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”, não podendo ainda deixar de ser lembradoo Decreto Lei nº 4.657/1942 – Lei De Introdução ao Código Civil em seu Art. 5º “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”
A Função Social, na questão em discussão, sempre prevalecerá na decisão judicial, ao menos deveria, seja por força legal ou axiológica, e principalmente com a livre convicção do juiz. Estas determinações legais, morais, sociais e principiológicas serão atingidas em um processo educacional jurídico-ativo, pois impossível seria se a cada julgado ou sentença, o mínimo de tendência das decisões se calçarem na função social do contrato e os próprios contratantes não aprimorarem a efetivação de seus negócios, de seus contratos, procurando minimizar a provocação judicial ou excluir da eventual lide as livres convicções primárias da função social nas decisões, pois essas já foram contraídas e consideradas na concepção contratual de forma ulterior.
Ante a enorme importância do Poder Judiciário no Estado Democrático de direito, a figura do Juiz como ativista de uma magistratura que pode transformar a sociedade e de reafirmar a efetividade das normas constitucionais, contribui para solucionar os problemas da sociedade, quando não, opera diretamente nela com suas decisões sentenciais e jurisprudências, estas últimas aprimoradoras das Leis esparsas e desatualizadas.
O Juiz com convicções sociais racionais, regra os efeitos do Estado regido pelo princípio econômico capitalista que constantemente se volta contra ele mesmo em um processo selvagem de sustentação que além de destruir a sociedade que lhe sustenta, devora a si mesmo. O bem comum e a estabilização da sociedade, são sustentados pela pacificação dos entes que a dinamizam, e esta pacificação é garantida em nosso Estado Democrático de Direito pela prestação jurisdicional, senão pelo próprio Juiz e suas livres convicções.
O pensar social nada mais é que condicionar a prevalência do público sobre o privado sempre, e neste contexto, se necessário for “ignorar” integralmente cláusulas contratuais que consubstanciam um contrato e que ultrajam seu vínculo extrínseco social para que neste prevaleça o interesse público, será mais que uma justificada motivação, será a própria justiça social com total eficácia no seio da sociedade.
Moacir Pinto, é Advogado, Professor de Direito, Palestrante, Escritor e Consultor em Gestão Empresarial