Multiparentalidade: uma nova perspectiva nas relações parentais


16/10/2014 às 15h17
Por Milena Abreu

ABREU, Milena Martins de. Multiparentalidade: uma nova perspectiva nas relações parentais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.47902>.

RESUMO: As famílias multiparentais são aquelas compostas por dois pais e/ou duas mães, situação comumente notada nas famílias recompostas ou neoconfiguradas. Desta feita, o presente artigo tem por escopo analisar o instituto da multiparentalidade, especialmente no que concerne a concessão dos direitos provenientes da filiação a figuras paternais e/ou maternais distintas, onde comumente um exerce a filiação biológica e outra, a socioafetiva. Para tanto, o desenvolvimento do trabalho se deu por meio de revisão bibliográfica, descritiva e exploratória, onde, por ser tema ainda incipiente no Direito de Família, foram colhidos os recentes julgados exibidos pelos Tribunais brasileiros, os quais revelam uma tendência ao acolhimento deste novel modelo de arranjo familiar. Assim, tendo seus sustentáculos firmados nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente, bem como na teoria tridimensional do Direito de Família, a multiparentalidade emerge como forma de solução dos litígios judiciais, consagrando a simultaneidade dos liames biológico e afetivo, pondo fim, as discussões que muitas vezes se arrastam anos a fio.

Palavras-Chave: Dignidade da pessoa humana. Filiação biológica. Filiação socioafetiva.

MULTIPARENTING: A NEW PERSPECTIVE ON PARENTAL RELATIONS

ABSTRACT: The multiparentals families are those composed by two fathers and/or two mothers, a situation commonly denoted in blended families or neoconfigured. This time, the present article aims analyze the Institute of multiparenting, especially with regard to the granting of the rights arising from filiation to father figures and/or different maternal, where commonly one exercises biological filiation and other, the socioaffective. To this end, the development of the work took place through literature review, descriptive and exploratory, where, for still being incipient theme in Family Law, were collected recent judged displayed by Courts, which reveal a tendency to host this novel model of family arrangement. So, having your supports signed in constitutional principles of human dignity, of the affection and in the best interest of children and adolescents, as well as in the three-dimensional theory of Family Law, the multiparenting emerges as the form of a solution of judicial disputes, consecrating the simultaneity of biological and affective ties, putting an end, in the discussions that often drag on for years.

Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ABREU, Milena Martins de. Multiparentalidade: uma nova perspectiva nas relações parentais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=.47902>.

Key Words: Biological filiation. Human dignity. Socioaffective filiation.

1 INTRODUÇÃO

O artigo em análise tem o condão de ponderar acerca das relações pluriparentais, tendo em vista as novas aspirações jurídicas voltadas para a busca da felicidade (família eudemonista). A multiparentalidade, ao lado dos Princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança, tem ganhado papel de destaque nos estudos científicos e precedentes jurisprudenciais.

Como será visto adiante, tal fenômeno exsurge com maior frequência quando são analisadas as famílias recompostas ou neoconfiguradas, através das quais, um novo vínculo familiar é constituído por pessoas que trazem filhos de um relacionamento anterior, razão pela qual forma-se a presença de dois tipos de parentesco, o biológico e afetivo. O que se tem percebido, costumeiramente, é que a filiação socioafetiva tem tomado sua dianteira sobre aquela, o que na maior parte das vezes não privilegiam a verdade real já verificada em muitas famílias, qual seja, a convivência harmoniosa entre pais/mães biológicos e afetivos com os filhos em comum.

Sobre esse enfoque, tem-se como mola propulsora da elaboração da presente obra científica a multiparentalidade, efetivando a consagração de uma nova forma de estruturação familiar. É no seu alcance que o objetivo do pretenso trabalho se instala. Trata-se, deste modo, de uma revisão bibliográfica em consonância com as tendências jurisprudenciais e abordagens científicas e ainda que versem sobre uma temática ainda embrionária, referências doutrinárias tem trilhado no mesmo sentido de adoção das relações pluriparentais.

Por fim, denota-se a importância do trabalho em comento por se tratar de uma temática ainda pouca explorada, mas que vem sendo, paulatinamente, inserida no ordenamento jurídico pelas decisões jurisprudenciais. Assim, cabe ao presente artigo analisar os contornos que pairam sobre o instituto da multiparentalidade, como por exemplo, os benefícios ocasionados com a sua aplicação.

2 DA FAMÍLIA PATRIARCAL ROMANA À PROTEÇÃO DAS FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEAS

A família é a base primeira na formação moral e psíquica de qualquer indivíduo, de forma a lhe oferecer condições mínimas valorativas capazes de lapidar a essência deste ao longo do seu desenvolvimento, conforme salienta Pereira apud Dias (2010, p. 29) “a família é o primeiro agente socializador do ser humano”. É por tal carga valorativa que essa entidade é comparada como célula primordial da vida em sociedade, ou como acrescenta Arruda Neto apud Dias (2010, p. 29) a família “[...] há muito deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade”.

Frente ao desenvolvimento social ocorrido ao longo dos tempos, coube à família, amoldar-se, inevitavelmente, as características de cada época, passando por intensas adaptações. Nesta esteira, colhem-se as precisas lições de Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 1): [...] “assim, exatamente por acompanhar o desenvolvimento social, a família vai se adequando a ele conforme necessário. Em cada momento histórico, novas necessidades, novos interesses e, consequentemente, uma peculiar estruturação familiar”.

É com esse viés que se faz mister a uma análise dos conjuntos familiares existentes ao longo da história. Isto se faz necessário para que se possa compreender os vários modelos familiares hoje existentes, inclusive o surgimento de fenômenos sociais ainda não salvaguardados pelo direito, a exemplo do instituto da multiparentalidade, objeto do presente artigo.

Inicialmente, quando se tem por missão trazer a lume a história da evolução da unidade familiar não se pode deixar de lado o estudo modular da família romana, pautada de forma peculiar, no culto aos mortos. Neste sentido, preleciona Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 3) “adorar os antepassados era a forma de lhes conceder valor e mesmo felicidade. E isso a tal ponto de se crer que a importância do falecido encontrava-se não nas ações por ele efetuadas em vida, mas no culto a ele prestado pelos familiares, a partir de sua morte”.

Como forma de manutenção da prática de adoração aos antecedentes, se fazia necessário na família romana a prossecução das gerações seguintes. Por vez, a efetivação de tal necessidade encontrou guarida no casamento, imperativo de grande valor na sociedade romana. De acordo com Colanges apud Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 3) o casamento romano:

Tratava-se de uma efetiva cerimônia. Num primeiro momento, o pai pronunciava que concedia sua filha em casamento. Esta era a ação através da qual ela era desligada da religião doméstica inicial, fato imprescindível justamente porque não se podia pertencer, concomitantemente, a dois cultos. Num segundo momento, a mulher era levada à casa do marido sem, porém, tocar seus pés à soleira. Era carregada pelo esposo. Assim justamente porque ainda não integrava aquele novo grupo. Isso só ocorria após o terceiro ato: diante da divindade local, rezava-se e, então, os esposos dividiam uma espécie de refeição. Aí que se iniciavam a comunhão religiosa e a formação familiar.

Desta maneira, competia ao homem o exercício do poder familiar (patria potestas) e do parentesco (ALMEIDA & RODRIGUES JÚNIOR, 2012). À mulher, por sua vez, jamais lhe era incumbida tais faculdades, exercendo tão somente função procriatória. Com efeito, a família romana tinha como fim primordial a procriação e na exata medida desse fim, adquiria caráter inevitável (ALMEIDA & RODRIGUES JÚNIOR, 2012).

Com o modelo familiar canônico, denotam-se poucas, porém significativas mudanças em relação ao matrimônio, agregando-se a este questionamentos como os impedimentos. Gutierrez (2011, p. 2) relata que embora [...] “o pátrio poder estivesse forte como no Direito Romano, quanto ao casamento surge uma preocupação maior com a sua manutenção preferindo falar-se em impedimentos a mencionar-se nulidades.”

Posteriormente, em terras tupiniquins com a inserção do Código Civil de 1916 a família despiu-se daquela ideia de instrumento de veneração aos antepassados para ser vista como ferramenta de aquisição da propriedade privada. Em sede de Trabalho de Conclusão de Curso, Buchmann (2013, p. 13) aduz: “o aspecto patrimonial possuía uma acepção tão consolidada no seio familiar, que os membros da família assumiam o papel equivalente à força de trabalho para seu patriarca”. A autora ainda arremata que: “o conceito de família chegava a se confundir com o de unidade de produção, uma vez que visava à formação de patrimônio a ser transmitido hereditariamente”.

Nesta perspectiva, a família ainda era hierarquizada patriarcalmente e vista pelo ordenamento com desígnio reprodutor, mero instrumento de garantia da prole. Permaneceu-se ainda a figura feminina pautada na denominada “esfera privada”, destinada aos cuidados com o lar e na consecução da procriação, enquanto o homem representava força de trabalho para a manutenção e aquisição do patrimônio e do sustento da casa – esfera pública (ALMEIDA & RODRIGUES JÚNIOR, 2012).

Esse foi por décadas o modelo singular da família brasileira, marcada pelo império do patria potestas na figura do pai e pela insigne desigualdade entre o homem e a mulher, situação que só veio a mudar, significativamente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Neste sentido, posiciona-se Venosa (2009, p. 7) “em nosso país, a Constituição de 1988 representou, sem dúvida, o grande divisor de águas do direito privado, especialmente, mas não exclusivamente, nas normas de direito de família”.

O art. 226 da Carta Magna, com redação dada pela Emenda Constitucional 66/10, estendeu seu manto protetor as demais formas familiares até então desprezadas pelo ordenamento jurídico. Além daquelas constituídas pelo casamento, a dicção constitucional de 1988, de forma expressa, desdobrou especial proteção à união estável e às ditas famílias monoparentais, formadas por qualquer dos pais com seus descendentes (DIAS, 2010). É a redação do aludido dispositivo constitucional:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 2013, p. 73).

Entretanto, em que pese a Lei Maior ter se referido apenas a estes institutos, cabe ressaltar que se trata de mero rol exemplificativo (DIAS, 2010). Por conseguinte, a Constituição ao elencar apenas estas espécies de entidades familiares, não o fez com desígnio taxativo, e sim consagrou em seu bojo um rol indefinido, no qual cabe à sociedade eleger, pela consagração habitual quais merecem arrimo constitucional.

Em consonância com o mesmo pensar, Farias & Rosenvald (2012, p. 84) engrandecem o raciocínio ao dispararem: “o conceito trazido no ‘caput’ do artigo 226 é plural e indeterminado, firmando uma verdadeira ‘cláusula geral de inclusão’”. E a guisa de arremate, concluem: “desta forma, são o cotidiano, as necessidades e os avanços sociais que se encarregam da concretização dos tipos. E, uma vez formados os núcleos familiares, merecem, igualmente, proteção legal”.

Sobre esse enfoque, para o legislador é impossível prever todas as situações fáticas de uma sociedade, principalmente a familiar. Logo, em virtude dessa limitação é aconselhável normatizar em cláusulas gerais para que futuras imposições sociais tenham sua devida tutela e esta trilhem os mesmos contornos daquela.

Porém, em desconformidade com o pregado, o Código Civil de 2002 adentrou no ordenamento jurídico em desafino com o disposto constitucional. Ocorre que o “novo” Código Civil foi fruto de um projeto confeccionado em 1975, não restando alternativa, senão sofrer profundas alterações para adequar-se às diretrizes constitucionais (DIAS, 2010).

É compreensível que a norma material civilista possuía eficácia em total descompasso com os ditames constitucionais, em razão das constantes mudanças porque perpassa o Direito ao longo do tempo, especialmente, o de Família. A afirmativa encontra justificativa no axioma de que o Direito não é uma ciência estática, motivo pelo qual sofre profundas mutações em meses, quiçá em décadas.

3 ASPECTOS GERAIS DA FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Numa perspectiva técnico-jurídica, filiação para Farias & Rosenvald (2012, p. 619) é “a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal”.

Sintetizando o cerne de uma reflexão contemporânea pode ser conceituado ainda como o liame estabelecido entre pais e filhos, resultante da fecundação natural ou mediante as técnicas de reprodução assistida, homóloga ou heteróloga, bem como, em virtude de adoção ou de uma relação socioafetiva proveniente da posse de estado de filho (FUJITA, 2010).

Ocorre que esse conceito de filiação nem sempre foi tão abrangente. Como visto outrora, na Roma Antiga, a filiação só ganhava proteção quando proveniente no núcleo matrimonial, denotando a prevalência do critério legal de determinação filiatória. Como bem observa Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 345): “a geração de descendentes era atividade eminentemente afeta à formação familiar que, por sua vez, tinha no casamento seu único assento admissível”.

Nesta época, o único critério comprobatório do nascimento do filho era à gravidez, assim, era a gestação e o parto que denotavam a mãe da criança, vigia a máxima mater semper certa est. Quanto à figura paternal, o vínculo de filiação era estabelecido por mera presunção – pater is est quaem justae nuptiae demonstrant -. A respeito da máxima, Farias & Rosenvald (2012, p. 642) tecem uma comparação:

Desde o Código de Hamurabi, a ciência jurídica vem admitindo a presunção de paternidade dos filhos nascidos de uma relação familiar casamentária. É um verdadeiro exercício de lógica aplicada: considerando que as pessoas casadas mantêm relações entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente da fidelidade existente entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se que o filho nascido de uma mulher casada, na constância das núpcias, por presunção, é seu marido.

Nesta toada, à condição de filho dependia exclusivamente de ser fruto matrimonial, onde os filhos havidos fora do casamento eram rejeitados pelo ornamento jurídico, sendo-lhes usurpado até mesmo o reconhecimento de sua ancestralidade, daí que recebiam denominações estigmatizantes como ilegítimos, espúrios e incestuosos (ALMEIDA & RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 346). Ademais, o próprio Código Civil de 1916 trazia um dispositivo legal onde vedava expressamente o reconhecimento de filho originário de uma relação extra-matrimonial, ao definir que os filhos adulterinos não poderiam ser reconhecidos (BUCHMANN, 2013).

Paulatinamente, toda essa problemática foi sendo contornada, amenizando a ignóbil predileção que reinava entre os filhos legítimos e aqueles fora do casamento, onde embora estes últimos sempre estiveram existentes no meio social, eram esquecidos pelo ordenamento jurídico. Um dos primeiros passos foi dado com a Constituição de 1937, cujo texto equiparou os filhos tidos no seio matrimonial e aqueles oriundos de pessoas não casadas, mas sem impedimento para tanto. Daí para frente, mesmo que timidamente, outras legislações infraconstitucionais buscaram amenizar esse disparate (ALMEIDA & RODRIGUES JÚNIOR, 2012).

O art. 51 da Lei nº 6.515/77, também denominada como Lei do Divórcio, trouxe grande contribuição ao tema ao determinar igualdade de condições para todos os filhos, no que toca à herança, independente de sua natureza (FUJITA, 2010). Reforçando o dito, Venosa (2009, p. 242) pontua: “A Lei nº 6.515/77 alterou a redação do dispositivo para atribuir herança em igualdade de condições, qualquer que fosse a natureza da filiação”.

Mas, foi com a Constituição Federal de 1988, eu seu artigo 227, § 6º, que em termos de avanço, a conjuntura tomou novo rumo. O novo texto constitucional atribui aos filhos, havidos ou não do casamento, ou mesmo por adoção, isonomia de direitos e proibição a quaisquer designações discriminatórias concernentes a filiação (FUJITA, 2010). Em consonância com o mesmo pensar, Barboza apud Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 348) assevera que [...] “a Constituição Federal de 1988 que, coerentemente à instauração da ordem jurídica voltada a dar importância às situações existenciais, fixa os princípios da igualdade de filhos e da desvinculação de sua qualidade ao estado civil dos pais”. Estabelece o texto legal, no art. 227, §6º que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 2013, p. 74).

A isonomia entre os filhos originou pela necessidade de ratificar um preceito jurídico que propôs outras formas de filiação, latentes no contexto social, principalmente por meio de ações reivindicativas de paternidade, fazendo com que anos de tratamentos injustos se dissipassem diante do ordenado constitucional.

3.1 DO CRITÉRIO BIOLÓGICO DA FILIAÇÃO

Com o avanço da medicina genética e da biotecnologia, rouba a cena outra espécie de filiação, a biológica. Para Fujita (2010, p. 494) “no momento em que se conseguiu um meio científico de determinação da paternidade com quase absoluta precisão, impositivo foi admitir a denominada paternidade biológica”. Sobre o tema, Farias & Rosenvald (2012, p. 665) asseveram:

Dentro deste novo conceito igualitário, proveniente da Constituição, causou profundo impacto sobre o critério legal de determinação filiatória (assentado na presunção pater is est) o avanço das pesquisas científicas, em especial com a utilização do exame de DNA. É que, com a utilização deste meio de determinação genética tornou-se possível uma certeza científica (quase absoluta) na determinação da filiação – o que veio a realçar a pluralidade na determinação filiatória.

Deste modo, com o advento da Lex Legum somado as conquistas tecnológicas, a presunção juris tantum foi paulatinamente cedendo espaço à consecução do vínculo genético, silenciando as incertezas que rondavam o critério da verdade legal. Neste sentido, Canova (2011, p. 53) em enfática dissertação de mestrado dedicada à matéria, esclarece que: [...] “com o apogeu do exame de DNA, pai e mãe passaram a ser revelados pelo laudo, dando início a fase de genetização das relações paterno-filiais, por meio da origem genética apta por si só a configurar o vínculo consaguíneo do parentesco.”

3.2 A PERSPECTIVA DA DESBIOLOGIZAÇÃO DA PATERNIDADE

Ao passo que a evolução dos métodos tecnológicos de investigação de paternidade representou um salto no direito de família, outra espécie de filiação roubou os holofotes das discussões jurídicas. Trocando em miúdos, ainda que a verdade biológica possa parecer ‘a verdade verdadeira’, não se podia admitir um sistema jurídico fechado à veracidade sociológica, erguida pelos hábitos individuais, familiares e sociais, onde a comunidade psicológica do liame familiar pode ser tão robusto como a comunidade com laços de sangue (CARBONNIER APUD CANOVA, 2011). Eis que surge então um terceiro aspecto da filiação pautado no vínculo socioafetivo e distante da verdade real, ora consubstanciada pelas técnicas sofisticadas de comprovação do vínculo consanguíneo.

Neste sentido, Leite apud Canova (2011, p. 54) salienta que “o efeito revolucionário do DNA destruiu a incerteza da paternidade biológica mas, ao mesmo tempo, levou os juristas a repensarem a questão da paternidade afetiva (até então, inimaginável)”. Em excelente explanação Buchmann (2013, p. 38) acrescenta:

O critério biológico, principalmente em razão da certeza científica emergida dos testes do DNA, já foi predominante, compondo o chamado paradigma do biologismo. Todavia, a prevalência absoluta do conceito de paternidade fundado no critério genético começou a perder forças na medida em que se passou a considerar a existência de outro fundamento para a filiação, o qual, culturalmente, sempre esteve presente.

Percebe-se que o denominado “biologismo” deixou de ser o critério preponderante das relações filiais para dar ensejo a outra espécie de filiação, consagrada nos laços de afeto e objetivada principalmente na busca pela felicidade. Neste sentido, Veloso apud Fugita (2010, p. 497) assevera que as relações de parentesco “não atende, exclusivamente, quer valores biológicos, quer juízos sociológicos, sendo uma moldura a ser preenchida, não com meros conceitos jurídicos e abstrações, mas com vida, na qual pessoas espelham sentimentos”.

A filiação socioafetiva se revela na convivência, na manifestação inexprimível dos sentimentos de ternura e do querer bem. Para FUJITA (2010, p. 475) “filiação socioafetiva é aquela consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem sanguínea entre eles”. O autor ainda compara o afeto a um “elemento aglutinador, tal como uma sólida argamassa a uni-los em suas relações, quer de ordem pessoal, quer de ordem patrimonial”.

É mister ressaltar que a filiação socioafetiva encontra-se intimamente ligada à posse do estado de filho, em outras palavras, à crença da condição de filho fundada em laços de afeto (DIAS, 2010). Madaleno apud Dias (2010, p. 366) afirma que o juízo que se faz da posse de estado de filho “não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação”.

Ocorre que para o reconhecimento da posse de estado de filho constuma-se elencar três aspectos constitutivos, são eles: (a) tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) nominatio – quando o filho usa o nome da família e assim se apresenta; e (c) reputatio – é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais (LÔBO APUD DIAS, 2010). Porém, conforme alerta Fujita (2010, p. 480) “não há necessidade da presença conjunta desses três elementos, nome, tratamento e fama, para a caracterização do estado de filiação, sendo certo valer um critério de equidade: in dúbio, pro filiatio”.

Por conseguinte, torna-se necessário trazer a baila alguns enunciados jurisprudenciais e doutrinários, no qual trilham os posicionamentos sobre as incongruências no que tange a prevalência do caráter socioafetivo em detrimento do biológico. Inicialmente, cabe apontar as correntes que tendenciam favoravelmente à aplicabilidade do caráter socioafetivo em prejuízo do biológico, senão vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PRETENSÃO DE RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. DÚVIDA, DESDE O PRINCÍPIO, ACERCA DO LIAME CONSANGUÍNEO. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DA FILIAÇÃO. PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA PLENAMENTE CONFIGURADA. PREVALÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DO LAÇO AFETIVO AO BIOLÓGICO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. O reconhecimento voluntário da filiação somente pode ser contestado acaso comprovado vício na manifestação de vontade. Caso contrário, o ato é irrevogável (CC/2002, art. 1.610), mormente em se tendo formado a paternidade sócio-afetiva, a qual, na espécie, deve prevalecer sobre o vínculo genético, em prol dos interesses do menor envolvido. (TJ-SC - AC: 20120487096 SC 2012.048709-6 (Acórdão), Relator: Stanley da Silva Braga, Data de Julgamento: 05/09/2012, Sexta Câmara de Direito Civil Julgado). (Grifo nosso).

Doutrinariamente, conforme preleciona Queiroz apud Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 354) “a verdade biológica impõe a paternidade, mas a verdade sociológica a constrói, paulatinamente. E a construção sempre foi mais saudável que a imposição”.

Dessa forma, percebe-se que em caso de “conflito” entre tais formas de filiação a precedência é que a socioafetiva tem sua dianteira sobre a biológica, em razão principalmente do seu condão material, vez que a norma criada deve ter seus sustentáculos bem mais aflorados e definidos que uma norma meramente impositiva. Ademais, os novos contornos, a saber, os novos interesses tutelados e as novas tendências da sociedade, devem ter fontes preponderantes sobre o caso.

De outro sentir, a supremacia socioafetiva sofre limitações quando na busca do reconhecimento dela resta infrutífera ou quando constatado que ela nunca existiu. Como resta demonstrado a seguir:

RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO. - Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ. - O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. - O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp: 878941 DF 2006/0086284-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 20/08/2007, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 17.09.2007 p. 267). (Grifo nosso).

Isso posto, vê-se que a aplicabilidade do critério socioafetivo ou biológico, in concreto, tem-se feito por exclusão, sendo a regra a socioafetividade quando devidamente comprovada, caso contrário subsistirá o caráter biológico. Todavia, como todo entendimento transmuda com o decorrer do tempo, isso não poderia ser diferente em relação a este. Hodiernamente, tem-se encaminhado pela vertente de que esses dois sustentáculos devem ser analisados de forma complementar, pois na verdade não há uma hierarquia entre eles.

4 A MULTIPARENTALIDADE COMO SOLUÇÃO DOS IMPASSES INSTITUÍDOS ENTRE O CARÁTER BIOLÓGICO E SOCIOAFETIVO

4.1 METAPARADIGMA DA MULTIPARENTALIDADE

A multiparentalidade é uma nova espécie de parentesco, porém recebe outras nomenclaturas como: pluriparentalidade; mosaico familiar; famílias reconstruídas; famílias recompostas; famílias ensambladas; entre outras.

Por seu turno, a multiparentalidade segundo Pereira apud Buchmann (2013, p. 51) é “o parentesco constituído por múltiplos pais, ou seja, quando um filho tem mais de um pai e/ou mais de uma mãe”. Nesse mesmo sentir, aponta Kirch & Copatti (2013, p. 339):

A multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado (a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado (a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.

É um novo vínculo em que diferentes pais ou mães convivem harmoniosamente em prol do interesse da criança ou do adolescente. Há deste modo uma criação mútua entre figuras maternais ou paternais distintas, geralmente, um pai/mãe biológico e outro socioafetivo, no qual prestam auxílio material, afetivo, e se complementam na medida em que consagram como fim primordial daquela relação o melhor interesse do menor e do adolescente.

Para Dias (2010, p. 49) a multiparentalidade “decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum”. Em outro momento a autora ainda aduz que “as famílias pluriparentais são caracterizadas pela estrutura complexa decorrente da multiplicidade de vínculos, ambiguidade das funções dos novos casais e forte grau de interdependência”.

Desta forma, pode-se afirmar que a multiparentalidade compreende uma forma de reconhecer no meio jurídico o que incide no mundo fático. Assegura a vivência do direito ao convívio familiar que a criança e o adolescente exercem através da paternidade biológica conjuntamente com a socioafetiva (KIRCH & COPATTI, 2013).

Assim, percebe-se que as famílias multiparentais são aquelas constituídas por dois pais/mães no qual cada um ocupa um papel importante no convívio com a criança ou o adolescente, simultaneamente. Teixeira & Rodrigues apud Jannotti et al. (2013, p. 3) asseveram que:

A multiparentalidade pode ter como causa o fato de o pai biológico desconhecer o nascimento de seu filho, razão pela qual outra pessoa passa a exercer a função paterno/filial. Outro fator é o surgimento crescente das famílias recompostas, em que pode ocorrer uma superposição de papeis parentais, já que, por vezes, o padrasto/madrasta passa a exercer faticamente a autoridade parental, sem que haja, contudo, o afastamento do genitor do convívio com o filho. É possível, ainda, a multiparentalidade temporal, em que a recomposição familiar ocorre após a morte do pai ou mãe biológico e o padrasto/madrasta passa a exercer esta função. Nesses casos, o registro de nascimento deveria conter o real histórico parental.

Adentrando sobre a espécie, o caso mais comum é o das famílias recompostas ou neoconfiguradas, situações constituídas nas hipóteses de um casamento em que há descendentes oriundos de uma experiência anterior. Para Chaves & Rosenvald apud Canova (2011, p. 95) “são entidades familiares decorrentes de uma recomposição afetiva, nas quais, pelo menos, um dos interessados traz filhos ou mesmo situações jurídicas decorrentes de um relacionamento anterior”.

É nessa forma de arranjo familiar que o instituto da multiparentalidade se instala com mais afinco, certo de que são crescentes os agrupamentos familiares constituídos por pessoas que já tiveram uma união anterior, oriundas principalmente de divórcios e separações, situação que constitui um deleite para a presença de mais de um vínculo de parentalidade.

4.2 DA POSSIBILIDADE DE CONCOMITÂNCIA DOS CRITÉRIOS BIOLÓGICO E AFETIVO

A adesão pela pluriparentalidade permite a coexistência simultânea dos critérios de filiação, extirpando disputas, que muitas vezes, não condizem com a realidade jurídica estampada diariamente no convívio familiar Da criança e do adolescente. Sobre este enfoque, Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 357) prelecionam:

[...] permitindo-se a coexistência de relações filiais, seria possível garantir ao filho, alem da relação eudemonista, não oferecida pelo (a) genitor (a), os exequíveis direitos oriundos da filiação biológica – como o de alimentos e os sucessórios. [...] De um lado, mantém intacta a responsabilidade dos genitores que, no exercício de sua autonomia – é de presumir-se – fizeram nascer o filho. De outro, resguarda, de maneira ampla, este último, material e moralmente.

Há corrente doutrinária que advogam pela tese do reconhecimento da multiparentalidade, adotada especialmente por Almeida & Rodrigues Júnior, sob o fundamento de que por se tratar de critérios distintos, a socioafetividade e o fator biológico, podem sobrevir em determinado caso de forma simultânea (FARIAS & ROSENVALD, 2012). Sob este mesmo prisma, Almeida & Rodrigues Júnior apud Farias & Rosenvald (2012, p. 677) aduzem:

Parece permissível a duplicidade de vínculos materno e paterno-filiais, principalmente quando um deles for socioafetivo e surgir, ou em complementação ao elo biológico ou jurídico pré-estabelecido, ou antecipadamente ao reconhecimento de paternidade ou maternidade biológica.

O fundamento dessa corrente, de acordo com Kreuz (2013, p. 10) encontra guarida na Teoria Tridimensional do Direito de Família, de autoria de Belmiro Pedro Welter, no qual se acha possível tutelar vínculos paterno-filiais, uma vez que os pressupostos da existência humana é a genética, afetividade e a ontológica, constituindo uma trilogia familiar (KREUZ, 2013). Sobre esse tema Kreuz (2013, p. 6) discorre o seguinte:

A filiação socioafetiva pode estar acompanhada de outros tipos filiação. O filho pode ser ao mesmo tempo biológico, registral e socioafetivo. A filiação também pode ser registral e socioafetiva, mas não biológica. É o caso da filiação que se estabelece por adoção, pela chamada adoção à brasileira, bem como pela paternidade assistida heteróloga. O pai aparece no registro e mantém uma relação de afetividade filial com a criança, mas não é o genitor biológico. Outra situação é o da paternidade biológica e socioafetiva, mas não registral. É o caso, por exemplo, do filho que está registrado apenas no nome da mãe e convive com o pai, mas não consta no registro de nascimento o nome do genitor. Ainda é possível apenas a filiação socioafetiva, que neste caso não coincide nem com a filiação biológica, nem com a filiação registral, mas é meramente socioafetiva, como é o caso dos denominados filhos de criação. (Grifos do autor)

Sendo assim, vê-se que o condão socioafetivo tem o fim de agregar a carga valorativa do biológico e não de diminuí-la ou abalroarem. De fato, é inadmissível que numa sociedade com tantas facetas e pluralidades familiares, se perfilhe uma prevalência abstrata de um critério sobre o outro, tal como se fosse uma lógica matemática perfeita e insuscetível de discussões.

Saindo da trajetória abstrata e partindo para o caso em concreto, nota-se que recentemente algumas decisões têm direcionado pela possibilidade da multiparentalidade. Por exemplo, o sentenciamento do juiz Kreuz (2013) que deferiu o pedido de adoção do demandante, na condição de padrasto, onde requeria cumulativamente a manutenção da paternidade biológica, bem como o acréscimo de seu patronímico:

É preciso registrar que A. é um felizardo. Num País em que há milhares de crianças e adolescentes sem pai (a tal ponto que o Conselho Nacional de Justiça, Poder Judiciário, Ministério Público realizam campanhas para promover o registro de paternidade), ter dois pais é um privilégio. Dois pais presentes, amorosos, dedicados, de modo que o Direito não poderia deixar de retratar esta realidade. Trata-se de uma paternidade sedimentada, ao longo de muitos anos, pela convivência saudável, pela solidariedade, pelo companheirismo, por laços de confiança, de respeito, afeto, lealdade e, principalmente, de amor, que não podem ser ignorados pelo Direito e nem pelo Poder Judiciário. [...] Diante do exposto e por tudo o que mais dos autos consta, embasado no artigo 227, § 5º, da Constituição Federal, combinado com o artigo 170 e artigos 39 e seguintes da Lei 8069/90, considerando que o adolescente A. M. F, [...] estabeleceu filiação socioafetiva com o requerente, defiro o requerimento inicial, para conceder ao requerente E. A. Z. J. a adoção do adolescente A. M. F., que passará a se chamar A. M. F. Z., declarando que os vínculos se estendem também aos ascendentes do ora adotante, sendo avós paternos: E. A. Z. e Z. Z. (VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE – Cascavel – PR. Autos do processo nº 0038958-54.2012.8.16.0021. Juiz: Sérgio Luiz Kreuz. Data de Julgamento: 20/02/2013. (grifos do autor)

Por idênticas razões também acata essa posição o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2012, ao deferir o pedido de acréscimo de filiação à madrasta quando a enteada já portava em seu registro de nascimento o nome da mãe biológica in memoriam, demonstra a ementa da referida Corte:

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido. (TJ-SP – AC: 0006422-26.2011.8.26.0286 (Acórdão), Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior. Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado. (BRASIL, 2012).

Isso posto, observa-se que a nova tendência jurisprudencial e doutrinária é utilizar os critérios firmadores da família (caráter socioafetivo e biológico) em sentido complementar, e não em caráter excludente, como apregoado por alguns autores supracitados. Ademais, tal afirmativa ultrapassa a esfera dos julgados e discussões doutrinárias, pois encontra guarida constitucional na consagração das fontes principiológicas, principalmente na dignidade da pessoa humana, afetividade e melhor interesse da criança e do adolescente.

5 PRINCÍPIOS CONSAGRADORES DA MULTIPARENTALIDADE

Diante da configuração da multiparentalidade, a família firma seus sustentáculos nos princípios constitucionais, vale ressaltar que os princípios são postulados sempre citados nos julgados, tornando condições sine qua non do presente artigo, razão pela qual se passa a analisá-los com maior minudência em tópico próprio.

A importância da análise dos princípios a seguir se dá frente ao seu caráter enunciativo-normativo de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, cobrindo tanto o campo de pesquisa de Direito quanto o de sua atualização prática (REALE, 2010).

Logo, os princípios constitucionais são espelhos da experiência jurídica, dotados de elevado grau de universalidade, razão pela qual devem ser observados em qualquer episódio concreto, pois desrespeitá-los enseja uma ofensa não só a seu caráter de obrigatoriedade, bem como a todo o sistema jurídico.

Deve-se destacar, entretanto, que o presente trabalho não visa esgotar os conceitos e características que permeiam os princípios da dignidade da pessoa humana, afetividade e melhor interesse da criança e do adolescente, apenas suscitar a sua importância e a correlação existente com a multiparentalidade, visto que, são fundamentais para a compreensão desta nova forma de entidade familiar.

5.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana está arraigado no artigo 1º da Constituição Federal de 1988 como vetor e lente de interpretação dos demais princípios e regras. O princípio em voga confere unidade de sentido e de valor ao ordenamento, razão pela qual é imperativo o seu reconhecimento como “valor-fonte fundamental do Direito” (SARMENTO APUD MENESES & OLIVEIRA, 2010).

A percepção de dignidade está inserida nos valores, aspectos culturais e percepção sobre o que vem a ser uma vida digna. Neste sentido, Cavalcanti et al. (2010, p.68) assevera que “a dignidade da pessoa [...] não possui contornos exatos, podendo ser conhecida e reconhecida de maneiras diferentes por cada cidadão, de acordo com sua visão e valoração da vida”.

Assim, a multiparentalidade adotada por muitas famílias brasileiras como forma de bem viver, encontra efetivação no princípio da dignidade da pessoa humana, cabendo ao direito tutelá-la como garantia de uma vida digna. Segundo os ensinamentos de Louzada (2013, p. 49) a dignidade “deve ser o princípio e o fim do Direito. O ser humano deve ser sempre o que de mais relevante cabe ao Direito tutelar. Se o deixarmos ao desabrigo, estaremos sendo cúmplices de rasgos na alma. O não fazer, o se omitir, também é uma forma cruel de abolir direitos”.

Partindo da premissa de que o princípio da dignidade da pessoa humana visa consagrar o respeito como forma de bem viver e sendo a multiparentalidade adoção voluntária de muitas famílias brasileiras, não cabe ao Direito negar-lhes essa condição, muito pelo contrário, convém designar os mecanismos legais adequados a proteção dos integrantes daquela família.

5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE JURÍDICA OBJETIVA

Ainda que não seja um princípio explícito na Constituição Federal, sem dúvida o princípio da afetividade é hoje um dos pilares do Direito de Família, constituído um postulado recorrente nas mais variadas decisões dos Tribunais em todo o País. A respeito preconiza a jurispsicanalista Groeninga apud Tartuce (2012, p. 28) que:

O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade.

Em razão disso, o princípio da afetividade se manifesta como elemento estruturador das relações familiares ou como acrescenta Tupinambá apud Reis (2008, p. 19) “assume a afetividade verdadeiro papel de elemento constituinte da entidade familiar contemporânea”. Nesta toada, a afetividade assume um desempenho que vai além da natureza principiológica, para tomar o lugar de sustentáculo das relações familiares hodiernas.

Há quem resista à força principiológica do afeto, esta corrente é compartilhada por Almeida & Rodrigues Júnior (2012, p. 43), fundamentando que a existência da afetividade nas relações familiares “é elemento fático; porém, não jurídico. O caráter de juridicidade, o cunho normativo-imperativo, está relacionado às consequências que a presença do afeto, na construção das relações familiares, pode gerar”. Em outras palavras, para os detentores deste posicionamento a afetividade, enquanto sentimento de afeição nasce da livre manifestação de vontade, não detendo o viés imperativo, prisma de toda norma-jurídica.

Vale destacar ainda que o princípio em análise possui duas facetas. A primeira dela é a objetiva, constituída por indicativos do sentimento de afetividade, pauta-se nos fatos sociais exteriorizadores que manifestam perante a sociedade o afeto. A segunda dimensão corresponde ao próprio sentimento de afeição e ocorre quando o direito apenas conhece a primeira dimensão, razão pela qual, o princípio em análise foi cunhado de princípio da afetividade jurídica objetiva (CALDERON, 2011).

A guisa de arremate, ainda que haja autores que entendam o inverso como Almeida & Rodrigues Júnior (2012) é indelével a natureza principiológica da afetividade, fator demonstrado na convivência diária, pela manifestação dos atos que vão além da assistência material, mas consubstanciada basicamente nas manifestações recíprocas de ternura, carinho e amabilidade e medida pela ostentação habitual no meio comunitário.

5.3 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Não se pode olvidar que foi com a constituição Federal de 1988 que houve uma inversão de valores concernentes ao estado de filiação, onde os filhos deixaram de ser qualificados como simples pertence de propriedade dos pais, para serem vistos como sujeitos de direitos e obrigações. Assim, incumbe ao Poder Público, a família e a sociedade a efetivação prioritária de seus interesses, é o que dispõe o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), in verbis:

Art. 4º: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

(BRASIL, 2013, p. 1.043)

Entende-se por tal postulado que a criança e o adolescente possuem preferência no atendimento de seus interesses, orientação estabelecida pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. De acordo com Lobo apud Costa (2010, p. 24) “essa prioridade deve ser tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade”.

O princípio em análise guarda íntima relação com as relações multiparentais, certo de que se um filho reconhece mais de uma figura paterna ou materna e o mesmo se mantém desejoso pela manutenção da convivência com ambos, esta condição se faz imperativa como forma de melhor atender aos interesses da criança e do adolescente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face das múltiplas facetas familiares, especialmente no que tange as famílias recompostas ou neoconfiguradas, entrou em voga uma nova espécie de unidade familiar, a multiparentalidade. Tal arranjo consagra a possibilidade de uma convivência simultânea entre pais/mães afetivos e biológicos, mas, costumeiramente, essas duas formas de parentalidade sempre foram utilizadas por exclusão, auferindo decisões que nem sempre atendem o melhor interesse daquela criança ou adolescente.

Em que pese tal predileção, vêm-se firmando uma tendência jurisprudencial e doutrinária no sentido de que as duas formas de parentalidade devem sem aplicadas de forma complementar, visto que não existe hierarquia entres as duas formas de parentesco. Logo, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente, constituem preceitos de observação obrigatória na análise de cada caso in concreto nas relações pluriparentais.

Destarte, a multiparentalidade é uma realidade presente em muitas famílias brasileiras e cientes de que a norma formal vem atender aos clamores da sociedade, não poderia aquela obstacularizar a eficácia legal desta, sob pena de descredibilizar o judiciário e de não amparar o maior interesse do Direito de Família, qual seja, o de resguardar com dignidade o meio familiar.

  • Direito de Família
  • Multiparentalidade
  • Dignidade da pessoa humana.
  • Filiação biológica.
  • Filiação socioafetiva.

Referências

 

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BRASIL, 2ª Vara Cível da Comarca de Itu, Estado de São Paulo. Apelação Cível nº.  0006422-26.2011.8.26.0286-SP. Apelantes: Vivian Medina Guardia e Augusto Bazanelli. Apelado: Juízo da Comarca. Relator: Juiz Alcides Leopoldo e Silva Júnior. São Paulo, 12 de agosto de 2012. Disponível em:< http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.do?paginaConsulta=1&localPesquisa.cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPROC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=0006422-26.2011&foroNumeroUnificado=0286&dePesquisaNuUnificado=0006422-26.2011.8.26.0286&dePesquisa=&pbEnviar=Pesquisar> Acesso em: 24 out. 2013, 14: 57:02.  

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Milena Abreu

Advogado - Guanambi, BA


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