Comentários Iniciais
Para Caio Mário da Silva Pereira, bem de família “é uma forma da afetação de bens a um destino especial que é ser a residência da família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio prédio” (Instituições de direito civil, v. 5, p. 557-558).
O bem de família é um direito patrimonial que incide diretamente sobre o domicílio mas não se confundindo com este. Trazendo a impenhorabilidade e a inalienabilidade ao domicílio da família que está instalada no imóvel. Portanto, nas lições do professor Álvaro Villaça Azevedo, “o bem de família é um meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde ela se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade” (Comentários ao Código Civil, v. 19, p. 11).
Origem
Com muita clareza Carlos Roberto Gonçalves expõe a origem do bem de família:
“A sua origem remonta ao início do século XIX, quando o Estado do Texas, em consequência da grave crise econômica que assolou os Estados Unidos da América do Norte, promulgou uma lei (homestead act) em 1839, permitindo que ficasse isenta de penhora a pequena propriedade, sob a condição de sua destinação à residência do devedor. Surgiu, assim, o instituto do homestead, que se integrou na legislação de quase todos os Estados norte-americanos e passou para o direito de outros países. (Cf. Stolze; Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, v. 6, p. 406 – 407; Azevedo, Bem de Família, 4. ed., RT, cap. 2)
No Brasil, além da legislação ordinária que será a seguir mencionada, o princípio foi acolhido, em benefício do pequeno produtor rural, na Carta Magna de 1988, cujo art. 5º, XXVI, proclama que “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”.
No direito norte-americano, o instituto representava a simples isenção de penhora sobre o pequeno imóvel, de até cinquenta acres, rural ou urbano. Com algumas variações, sistemas similares foram adotados em países como Suíça, Espanha, Portugal e Chile, como designações diferentes, tendo, porém, como ponto comum o fato de constituir exceção ao princípio do direito das obrigações, universalmente aceito, de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas perante os credores (CC de 2002, art. 391; CPC, art. 591).
O instituto do bem de família foi introduzido no direito brasileiro pelo Código Civil de 1916, que dele cuidava em quatro artigos (70 a 73), no Livro II, intitulado “Dos Bens”. O Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, também tratou da matéria nos arts. 8º, § 5º, e 19 a 23, estabelecendo valores máximos dos imóveis. Essa limitação foi afastada pela Lei n. 6.742, de 1979, possibilitando a isenção de penhora de imóveis de qualquer valor. O art. 1.711 do Código Civil de 2002 voltou, no entanto, a limitar o valor do imóvel, quando existentes outros também residenciais, a um terço do patrimônio líquido do instituidor.
Os arts. 20 a 23 do mencionado Decreto-Lei n. 3.200 complementavam o Código Civil, disciplinando o modo de instituição e de extinção do bem de família, bem como os procedimentos necessários. Outros diplomas legais também cuidaram do bem de família, como a Lei n. 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos, arts. 260 a 265) e o Código de Processo Civil de 1973 (art. 1.218, VI).
Posteriormente, adveio nova modalidade de bem de família, imposto pelo próprio Estado por norma de ordem pública (Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990), em defesa da entidade familiar” (Direito Civil brasileiro, v. 6, p. 560-561).
Conceito
Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, bem de família é o “bem jurídico cuja titularidade se protege em benefício do devedor — por si ou como integrante de um núcleo existencial —, visando à preservação do mínimo patrimonial para uma vida digna” (Novo Curso de Direito Civil, v. 6, p. 407).
Tal deriva do garantismo constitucional tutelando o patrimônio e a família do ser humano a uma vida digna.
No ordenamento jurídico brasileiro, existem duas espécies de bem de família, o bem de família voluntário e o bem de família legal.
Bem de família voluntário
O Código Civil de 2002, tutela, em poucas considerações, muito bem o assunto, art. 1711, in verbis:
“Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada”
O dispositivo supracitado é claro, pois, mediante a escritura pública ou testamento, podem os cônjuges ou entidade familiar instituir bem de família desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido ao tempo instituição e expõe a impenhorabilidade do imóvel em lei especial.
Resumidamente, é instituído por ato de vontade do casal ou de entidade familiar, mediante formalização do registro de imóveis, deflagrando dois efeitos fundamentais: impenhorabilidade limitada (significa que o imóvel torna-se isento de dívidas futuras, salvo obrigações tributárias referentes ao bem e despesas condominiais - art. 1.715 , CC) e inalienabilidade relativa (uma vez inscrito como bem de família voluntário, ele só poderá ser alienado com a autorização dos interessados, cabendo ao MP intervir quando houver participação de incapaz - art. 1.717 , CC).
Para maior observância a regra do Código Civil, transcreve-se os artigos supracitados:
Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.
Parágrafo único. No caso de execução pelas dívidas referidas neste artigo, o saldo existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz.(grifos nossos)
Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.
Bem de família legal
O bem de família legal é aquele decorrente da lei. A lei 8.009/90 foi instituída com o propósito de regularizar o bem de família legal, assim, diz respeito à impenhorabilidade legal do bem de família, independentemente de inscrição voluntária em cartório, e que convive com o bem de família voluntário. Assim, se há duas casas, a proteção se dá na de menor valor, contudo, será protegida a de maior valor se os proprietários a inscreverem como bem de família voluntário. Ressalte-se que, esse bem de família não tem teto de valor.
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza,contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.(grifos nossos)
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza , salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (grifos nossos)
Por fim, em outubro de 2008, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 364[1], para estender o conceito de impenhorabilidade de bem de família ao imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas. Afinal, a regra da impenhorabilidade do bem de família deve ser sempre pautada pela finalidade que a norteia, ou seja, a manutenção da garantia de moradia, de subsistência e de respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88). Assim, se o imóvel pertencente as pessoas solteiras, separadas ou viúvas tem por fim o exercício desse direito, conclui-se que à eles se aplica o conceito de bem de família.
[1] Súmula 364: "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas".