O PSICOPATA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PENAL BRASILEITO
Marisa Ferreira Satriuc[1]
Juliana Caramigo Gennarini[2]
RESUMO: O presente artigo é uma pesquisa descritiva que tem como objetivo principal evidenciar a abordagem dada ao indivíduo acometido por psicopatia, quando da prática de infrações penais. Para alcançar tal propósito faz-se necessário apresentar o desenvolvimento da concepção da culpabilidade, esclarecer os seus elementos e excludentes, apontar suas consequências jurídico-penais, bem como adentrar na psicologia jurídica e a psicopatia. Ademais, torna-se essencial proceder à elucidação da atual imputabilidade considerada para o agente infrator psicopata e da consequência jurídico-penal a ele aplicada. Por fim, é razoável verificar se há mudanças previstas na legislação, a fim de se justificar a conclusão de que o tratamento legal despendido atualmente ao tema se mostra insuficiente.
Palavras-chave: Culpabilidade. Imputabilidade. Semi-Imputabilidade. Culpabilidade Diminuída. Psicopatia. Transtorno de Personalidade Antissocial. Consequências Jurídico-Penais.
ABSTRACT: The present article is a descriptive research that aims to highlight the approach given to the individual with psychopathy when practices criminal offenses. Achieving this purpose requires to present the development of culpability’s conception, to clarify its elements and causes of exclusion, to point their legal and criminal consequences, as well as getting into the forensic psychology and psychopathy. Furthermore, it is essential to proceed to the elucidation of the current imputability considered for the psychopathic offender agent and the legal and criminal consequences applied to him. Finally, it is reasonable to verify if there is provision of legal changes, in order to justify the conclusion that the actual legal treatment submitted to the subject comes to be insufficient.
Keywords: Culpability. Imputability. Semi-Imputability. Diminished Culpability. Psychopathy. Antisocial Personality Disorder. Legal and Criminal Consequences.
INTRODUÇÃO
É objetivo deste artigo demonstrar a maneira como a figura do psicopata é tratada no ordenamento jurídico brasileiro considerando a ausência de norma penal com relação a este agente infrator. Tendo isto em vista, cabe inicialmente aludirmos que Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini conceituam o Direito Penal como “a reunião das normas jurídicas pelas quais o Estado proíbe determinadas condutas, sob ameaça de sanção penal, estabelecendo ainda os princípios gerais e os pressupostos para a aplicação das penas e das medidas de segurança”[3].
Isto posto, é preciso esclarecer que, “nos primórdios, a pena era aplicada desordenadamente, sem um propósito definido, de forma desproporcional e com forte conteúdo religioso”[4]. Por meio do avanço do Direito Penal, alcançaram-se as vinganças divina, privada e pública, a Lei de Talião, a fase da humanização das penas e, após a Revolução Francesa, estabeleceu-se como principal sanção a aplicação da pena privativa de liberdade.
À vista disso, a evolução desse ramo do Direito culminou no advento dos princípios e pressupostos acima mencionados, impondo-se assim, limites à intervenção estatal no que se refere à liberdade individual e evitando-se as penas consideradas cruéis. Estes princípios são limitadores do poder punitivo estatal e são garantias do cidadão consagradas na Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 1º, caput, que definem o Brasil como um Estado Democrático de Direito. Assim, é consequência de um perfil político-constitucional brasileiro ter um grandioso princípio a regular todo o seu ordenamento jurídico, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). Este passou a preceder o juízo axiológico do legislador, sendo essencialmente inconstitucional qualquer tipo de incriminação que o desrespeitasse.
Da dignidade da pessoa humana derivam princípios próprios e específicos do âmbito penal que, na doutrina, variam quanto à quantidade e denominação. Dentre os principais princípios derivados, o mais importante para elaboração deste artigo é o da culpabilidade, cuja relevância será evidenciada em vários aspectos. Outrossim, ressaltaremos o elemento imputabilidade defendido pela teoria normativa pura e buscaremos a melhor compreensão da inimputabilidade, como excludente da culpabilidade, e da semi-imputabilidade, como causa de diminuição da pena de um agente infrator.
Destarte, será necessário elencar as consequências jurídico-penais para a inimputabilidade e a culpabilidade diminuída, além de elucidar a reforma de execução penal no Brasil, contextualizando-se o sistema duplo binário e o sistema vicariante.
Em seguida, por um breve momento, tornar-se-á foco deste artigo a psicologia jurídica e a psicopatia, como também será essencial procederemos à elucidação da atual imputabilidade considerada para este agente infrator e a consequência jurídico-penal a ele aplicada. Por fim, será coerente verificarmos se há mudanças previstas na legislação, a fim de se justificar a conclusão de que o tratamento despendido atualmente ao tema se mostra insuficiente, cabendo ao Poder Judiciário adequar-se à realidade das normas pátrias vigentes e preservar, da melhor forma possível, os direitos individuais e coletivos consagrados em nossa Constituição Federal.
CAPÍTULO I - A CULPABILIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
1 Conceito de Culpabilidade
A palavra culpabilidade é derivada do termo culpa, usualmente utilizada no intuito de atribuir a alguém um fato condenável. Todavia, confere-se ao conceito de culpabilidade, pelo Direito Penal, outros sentidos: como fundamento e limitadora da pena, a culpabilidade significa “uma garantia para o infrator frente aos possíveis excessos do poder punitivo estatal. Essa compreensão provém do princípio de que não há pena sem culpabilidade (nulla poena sine culpa)”[5]; já como identificadora e delimitadora da responsabilidade individual subjetiva, é compreendida “como um instrumento para a prevenção de crimes e, sob essa ótica [...] cumpre com a função de aportar estabilidade ao sistema normativo, confirmando a obrigatoriedade do cumprimento das normas”[6].
Outrossim, com o decorrer dos tempos constatou-se uma diferença entre ocasionar inevitavelmente um resultado lesivo e causar um dano evitável. Além disso, atualmente, a culpabilidade passou a ser vista como o juízo de reprovação daquele que, por sua vontade ou inaceitável deslize, provocar um fato punível quando podia e deveria agir de forma diferente. Portanto, sem dolo ou culpa, passou a não existir crime (nullum crimen sine culpa). Isso consiste na necessidade de se questionar se o agente infrator quis o resultado ou poderia prevê-lo.
Pelas razões acima expostas, a responsabilidade objetiva tornou-se infundada no sistema penal atual e iniciou-se a noção de culpabilidade composta por elementos psíquicos (a voluntariedade e a previsibilidade; um volitivo e outro intelectual) como requisitos da imposição da pena. Deste modo, com o passar dos anos, várias teorias buscaram definir o delito e seus elementos estruturais, dentre eles, a culpabilidade.
Vale destacar que a posição amplamente majoritária na doutrina é a de que o Código Penal (CP) brasileiro, com o advento da teoria finalista para a conduta, adotou a teoria normativa pura da culpabilidade. Porém, no que se refere às descriminantes putativas, a teoria da culpabilidade adotada é a limitada, conforme o item 19 da Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, da Reforma Penal de 1984:
Repete o Projeto as normas do Código de 1940, pertinentes às denominadas “descriminantes putativas”. Ajusta-se, assim, o Projeto à teoria limitada da culpabilidade, que distingue o erro incidente sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação do que incide sobre a norma permissiva. Tal como no Código vigente, admite-se nesta área a figura culposa (art. 17, § 1º)[7].
2 Teorias da Culpabilidade Adotadas
2.1 Teoria Normativa Pura, Extrema ou Estrita
Para o jus filósofo Hans Welzel toda ação humana era direcionada a um fim (lícito ou ilícito), ou seja, era essencialmente finalista. Esse finalismo traduzia-se no elemento intencional da ação e mostrava-se inseparável desta. Logo, o dolo e a culpa em sentido estrito haviam de ser deslocados para o tipo legal do crime, “pois, se este é a descrição da ação proibida, e se o dolo e a culpa pertencem à ação humana, não se pode deixar de situar no tipo todos os elementos estruturais da ação”[8].
Esse deslocamento dos elementos psicológicos (dolo e culpa) da culpabilidade para o interior da conduta do agente fez com que a culpabilidade fosse considerada puramente valorativa, o que explica a denominação da teoria de normativa pura e a forma como vários doutrinadores passaram a conceituar a culpabilidade finalista. Fernando Capez a definiu como “puro juízo de valor, de reprovação, que recai sobre o autor do injusto penal excluída de qualquer dado psicológico”[9]. De forma similar, Luiz Regis Prado a elucidou como “juízo de censura pela realização do injusto penal (quando podia o autor ter atuado de outro modo)”[10] e Jiménez de Asúa, por sua vez, a interpretou como “a reprovação do processo volitivo: nas ações dolosas, a reprovabilidade da decisão de cometer o fato; na produção não dolosa de resultados, a reprovação por não tê-los evitado mediante uma atividade regulada de modo finalista”[11].
Welzel também considerou a retirada da consciência da ilicitude do dolo, tornando-o natural, composto pelo elemento volitivo da intencionalidade (finalidade da ação) e pelo elemento intelectual da previsão do resultado. A consciência da ilicitude passava a ser potencial, ou seja, bastava que o criminoso, em um juízo comum, tivesse a possibilidade de conhecimento do caráter ilícito do ato praticado.
Já a culpabilidade fica estruturada pela imputabilidade, a consciência potencial da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. No tocante a esses elementos, Cleber Masson preleciona que estejam hierarquicamente ordenados “de tal modo que o segundo pressupõe o primeiro, e o terceiro os dois anteriores. De fato, se o indivíduo é inimputável, não pode ter a potencial consciência da ilicitude. E, se não tem a consciência potencial da ilicitude, não lhe pode ser exigível conduta diversa”[12].
2.2 Teoria Limitada
Os mesmos elementos que compõem a culpabilidade na teoria finalista são os que a integram na teoria limitada. No entanto, a diferença entre as duas teorias encontra-se na abordagem dada às descriminantes putativas: pela primeira, as descriminantes putativas são sempre consideradas erro de proibição, enquanto pela segunda, são tratadas como erro de proibição e erro de tipo. Assim, conforme o que cada uma das teorias considerar como caracterização de erro, diferentes serão as consequências como efeitos jurídicos.
Sabemos que o erro de tipo eiva o elemento intelectual da previsão no dolo, excluindo-o sempre. Porém, se o erro de tipo era evitável e o agente não o evitou, ocorre a sua punição na forma culposa, se esta estiver prevista em lei. Lembramos que isso é possível porque o dolo agora se encontra situado no tipo, deixando a culpabilidade perfeita para o crime culposo, enquanto o erro de proibição afeta a consciência da ilicitude que se localiza na culpabilidade. Desta forma, quando o erro de proibição for inevitável, teremos a exclusão da culpabilidade e, consequentemente, não haverá condenação, seja a título de dolo ou culpa.
Para a teoria normativa pura, quando o erro de proibição for evitável é possível a condenação atenuada por fato doloso, mas é inviável a condenação por fato culposo, uma vez que não existe um fato ao mesmo tempo doloso e culposo.
Já a teoria limitada da culpabilidade divide as descriminantes putativas entre as espécies de erro da seguinte forma: as que recaem sobre uma situação de fato como sendo consideradas erro de tipo permissivo, cujo efeito é o mesmo do erro de tipo; e as que recaem sobre a existência ou limites de uma causa de justificação como sendo consideradas erro de proibição, com as consequências características deste tipo de erro.
3 Elementos da Culpabilidade Normativa Pura
3.1 Imputabilidade
Luís Augusto Sanzo Brodt sustenta que
a imputabilidade é constituída por dois elementos: um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato), outro volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). O primeiro é a capacidade (genérica) de compreender as proibições ou determinações jurídicas. Bettiol diz que o agente deve poder 'prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social', deve ter, pois, 'a percepção do significado ético-social do próprio agir'. O segundo, a 'capacidade de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico. Conforme Bettiol, é preciso que o agente tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele à ação e, do outro lado, o valor inibitório da ameaça penal[13]
É relevante frisar que a ausência de quaisquer desses aspectos da imputabilidade implica no seu afastamento, bem como vale lembrar que o Código Penal brasileiro não a define, mas ao elencar as causas que a afastam nos deixa claro que se trata de um elemento da culpabilidade definido por exclusão em nosso ordenamento jurídico penal.
3.2 Potencial Consciência da Ilicitude do Fato
Para o juízo de reprovação, é imprescindível a possibilidade do infrator poder conhecer o caráter ilícito de sua conduta por meio de um normal e exigível empenho de consciência, quer dizer, o chamado conhecimento profano.
E para tal conhecimento “basta que o autor tenha base suficiente para saber que o fato praticado está juridicamente proibido e que é contrário às normas mais elementares que regem a convivência”[14].
3.3 Exigibilidade de Conduta Diversa
Para que um comportamento seja reprovável, além dos elementos já mencionados, é imperioso que o crime tenha sido praticado em circunstâncias comuns, nas quais o agente poderia se comportar conforme o Direito, mas escolheu transgredir a lei penal, uma vez que só podem ser reprimidas as condutas que poderiam ser evitadas. Em síntese, temos a concepção de exigibilidade de conduta diversa como:
[...] a possibilidade que tinha o agente de, no momento da ação ou da omissão, agir de acordo com o direito, considerando-se a sua particular condição de pessoa humana. [...]
Essa possibilidade ou impossibilidade de agir conforme o direito variará de pessoa para pessoa, não se podendo conceber um ‘padrão’ de culpabilidade. As pessoas são diferentes umas das outras. Algumas inteligentes, outras com capacidade limitada; algumas abastadas, outras miseráveis; algumas instruídas, outras incapazes de copiar o seu próprio nome. Essas particulares condições é que deverão ser aferidas quando da análise da exigibilidade de outra conduta como critério de aferição ou de exclusão da culpabilidade, isto é, sobre o juízo de censura, de reprovabilidade, que recai sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente[15].
4 Causas Excludentes da Culpabilidade
Em que pese a doutrina não tratar de maneira uniforme o tema, o enfoque deste artigo estará nas causas excludentes de culpabilidade denominadas inimputabilidade (em razão de doença mental) e culpabilidade diminuída (em razão de perturbação mental).
4.1 Inimputabilidade em Razão de Doença Mental
A primeira hipótese de causa excludente de culpabilidade tratada no Código Penal brasileiro, no caput do seu art. 26, é a inimputabilidade em razão de doença mental, sendo que esta encampa todas as psicoses, sejam orgânicas, tóxicas ou funcionais, podendo ser crônicas ou transitórias.
Logo, tem-se a inimputabilidade em razão de doença mental como todas as alterações psíquicas ou mentais que anulem, à época da conduta (a ação ou omissão), a capacidade do sujeito de compreender a natureza da ilicitude do fato ou de autodeterminar-se com essa compreensão. Desta forma, doentes mentais podem ser penalmente imputáveis se realizarem o injusto penal durante intervalos de lucidez.
4.2 Culpabilidade Diminuída em Razão de Perturbação Mental
A culpabilidade diminuída é disciplinada pelo Código Penal brasileiro, no parágrafo único do art. 26, ao dizer que “a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”[16].
Note-se que o desenvolvimento mental incompleto ou retardado foi mencionado no caput do citado artigo da legislação penal e repetido em seu parágrafo único, de forma que esta figura é tratada, ao tempo da ação ou omissão, como inimputável (incapaz de entender o caráter ilícito do fato de forma plena ou de autodeterminar-se conforme esse entendimento) ou semi-imputável (tendo reduzida tal capacidade de entendimento ou autodeterminação), respectivamente.
O parágrafo único do mesmo dispositivo legal também trata como semi-imputável a figura do agente infrator atingido por perturbação de saúde mental. A semi-imputabilidade é caracterizada pela culpabilidade diminuída em virtude de estados que “afetam a saúde mental do indivíduo sem, contudo, excluí-la”[17].
5 Consequências Jurídico-Penais
Desconsiderando os inimputáveis por menoridade (que estão sujeitos ao Estatuto da Criança e do Adolescente), os demais inimputáveis (tanto em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, na forma do caput do art. 26 do CP) serão processados, julgados e, se o juiz não confirmar a autoria, a materialidade, o fato típico ou a ilicitude, será caracterizada a hipótese de absolvição própria (sem a imposição de qualquer sanção penal).
Ao contrário, se for comprovado que o sujeito foi autor de um injusto penal (fato típico e ilícito), o juiz examinará a existência ou não da culpabilidade. Sendo a inimputabilidade constatada por exame de insanidade mental, uma vez que a inimputabilidade não pode ser presumida, estaremos diante da sentença de absolvição imprópria, na qual o agente é absolvido, mas lhe é aplicada a medida de segurança.
A justificativa para a utilização da medida de segurança é a substituição do juízo de culpabilidade (essencial para a pena) pelo juízo de periculosidade (essencial para a medida de segurança), posto que esta é presumida de forma plena aos inimputáveis.
É valoroso reforçar que,
discute-se, porém, se a redução da pena e obrigatória ou facultativa. Há decisões, inclusive do STF, de que a redução da pena é facultativa. Entretanto, comprovada a redução da capacidade de entendimento e de autodeterminação, a culpabilidade é sempre menor e o juiz deverá atenuar a sanção e justificar seu grau entre os limites estabelecidos[18].
O art. 98 do CP estabelece que aos semi-imputáveis também pode ser aplicada a medida de segurança. Porém, a literal interpretação desse dispositivo implica na possibilidade de aplicação dessa medida substitutiva da redução de pena sem limite de duração, o que para alguns doutrinadores seria uma ofensa ao art. 5º, XLVII, “b”, da CF/88, que veda penas de caráter perpétuo. Assim, esta cisão doutrinária fez com que o Supremo Tribunal Federal se manifestasse firmando para as medidas de segurança o período máximo de trinta anos.
Ainda acerca das consequências jurídico-penais, vale ressaltar que, com a Reforma Penal de 1984, afastou-se o sistema duplo binário, no qual existia a possibilidade da medida de segurança e a pena serem aplicadas simultaneamente, aditando-se o sistema vicariante. Sobre o assunto, Cézar Roberto Bitencourt, manifesta-se da seguinte forma:
[...] A aplicação conjunta de pena e medida de segurança lesa o princípio do ne bis in idem, pois, por mais que se diga que o fundamento e os fins de uma e outra são distintos, na realidade, é o mesmo indivíduo que suporta as duas consequências pelo mesmo fato praticado [...][19].
CAPÍTULO II – A PSICOLOGIA JURÍDICA E A PSICOPATIA
1 Psicologia Jurídica: Conceito e Origem
Carla Pinheiro define a psicologia jurídica como o “ramo da psicologia portador de conteúdos tendentes a contribuir na elaboração de normas jurídicas socialmente adequadas, assim como promover a efetivação dessas normas ao colaborar com a organização do sistema de aplicação das normas jurídicas”[20].
A psicologia jurídica teve seus primórdios embasados na Idade Antiga e está relacionada à medicina, mais pontualmente à psiquiatria. Esta área da medicina nasceu em 1793, com o inspirador da psicopatologia e da psicologia clínica, o médico francês Philippe Pinel. No entanto, foi no século XIX que teve, dentre outras funções, a de exercer o controle e estabelecer a ordem na sociedade, e a partir desse enfoque é que surgiu a psicologia jurídica, com o entendimento de que a subjetividade é algo que identifica cada um de nós, é o singular e individual que cada pessoa vai elaborando conforme vai se desenvolvendo e vivenciando o mundo social e culturalmente.
A despeito do objeto comum com a psiquiatria, a psicologia jurídica partiu das denominadas condutas anormais para então atingir o estudo das condutas normais, e compreende a doença mental como uma desordem de personalidade, alterando-a ou desviando-a progressivamente, ou seja, a define pelo grau de desvio do que é considerado como comportamento normal.
1.1 A Personalidade e os Transtornos de Personalidade
Na doutrina da psicologia jurídica encontramos a definição de personalidade como “a totalidade relativamente estável e previsível dos traços emocionais e comportamentais que caracterizam a pessoa na vida cotidiana, sob condições normais”[21]. No entanto, é valioso lembrar que a personalidade não é imutável, pois em condições atípicas, como situações de estresse ou eventos traumáticos, pode ela apresentar novas características.
Tendo isso em vista, José Osmir Fiorelli e Rosana Cathia Ragazzoni Mangini definem a personalidade “como a condição estável e duradoura dos comportamentos da pessoa, embora não permanentes”[22]. Sendo assim, em meio às diversas situações do convívio social, os comportamentos que persistem nessa condição estável do indivíduo recebem a designação de características de personalidade.
Tais características não podem ser vistas como virtudes, defeitos ou problemas. Elas integram maneiras de se comportar já predominantes no indivíduo e que se ressaltam, de acordo com as situações por ele vivenciadas.
Os transtornos de personalidade, por sua vez, são “padrões de comportamento profundamente arraigados e permanentes, manifestando-se como respostas inflexíveis a uma ampla série de situações pessoais e sociais”[23]. Isto posto, percebe-se que no cenário de transtorno há características da personalidade do indivíduo visivelmente preponderantes e a perda da flexibilidade situacional pelo indivíduo, isto é, a perda da capacidade dele em adaptar-se para atender as suas necessidades individuais e sociais.
2 Psicopatia: Conceito e Características
Pela 5ª versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) e pela 10ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS), é notável que várias denominações sejam utilizadas como sinônimos para o transtorno de personalidade antisocial (TPAS), inclusive psicopatia.
Robert D. Hare retratou os psicopatas como
predadores sociais que, com seu charme, manipulação e crueldade, cavam seu espaço na vida, deixando para trás um largo caminho de corações partidos, expectativas frustradas e carteiras vazias. Completamente desprovidos de consciência e empatia, eles egoisticamente pegam o que querem e fazem o que lhes agrada, violando normas sociais e expectativas sem o menor sentimento de culpa ou arrependimento[24].
De encontro com o DSM-V e a CID-10, temos a corrente majoritária resultante da evolução das ciências da saúde, considerando a psicopatia como um transtorno de personalidade antissocial. Nesse diapasão, Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini elucidam:
[...]. Mais adequado parece considerar a psicopatia como um transtorno de n personalidade, pois implica uma condição mais grave de desarmonia na formação da personalidade.
Com efeito, a personalidade refere-se a uma individual característica de modelos de pensamento, sentimento e comportamento. Nesse sentido, ela é interna, reside no indivíduo, mas é manifestada globalmente, e possui componentes cognitivos, interpessoais e comportamentais, de modo que descreve modelos comportamentais através do tempo e das situações. De acordo com essa compreensão, a psicopatia pode ser entendida como um particular modelo de personalidade. [...][25].
Hilda Morana, em seus recentes estudos, faz menção a dois níveis de psicopatia: o transtorno parcial (TP) da personalidade e o transtorno global (TG) da personalidade. O primeiro é tido como uma linha incomum de caráter e mais alcançável à psicoterapia, no sentido de prover um melhor controle comportamental, ou seja, “[...] o comprometimento pessoal se mostrava mais restrito a certas áreas do desempenho da personalidade”[26]. Já o segundo, é considerado como a psicopatia em si, com a personalidade prejudicada em todas as suas esferas. Nas palavras da psiquiatra:
Os pacientes com TP se manifestam através de uma qualidade de ressonância emocional mais socializada. Ao contrário, os pacientes com TG não apresentam sensibilidade afetiva com propensão à socialização. Talvez por isso, as pessoas com TP interiorizem sentimentos mais diferenciados e maior capacidade de controlar os impulsos, a não ser em determinadas circunstâncias[27].
E por fim, iremos evocar as características citadas por Jorge Trindade como um consenso na doutrina das principais características da psicopatia:
a) Relacionamento com os outros: No eixo do relacionamento interpessoal, costumam ser arrogantes, presunçosos, egoístas, dominantes, insensíveis, superficiais e manipuladores.
b) Afetividade: No âmbito da efetividade, são incapazes de estabelecer vínculos afetivos profundos e duradouros com os outros. Não possuem empatia, remorso ou sentimento de culpa.
c) Comportamento: Na parte relacionada com o comportamento, são agressivos, impulsivos, irresponsáveis e violadores das convenções e das leis, agindo com desrespeito pelos direitos dos outros[28].
2.1 Instrumentos de Avaliação da Psicopatia
2.1.1 Prova de Rorschach
A Prova de Rorschach teve o início de sua elaboração em 1911 e a sua publicação em 1921 pelo psiquiatra suíço Hermman Rorschach. É um mecanismo de avaliação global da personalidade do examinado independente do ato criminoso que o indivíduo tenha cometido. É composto por dez pranchas com borrões de tintas coloridas ou preta e branca, que apresentam características próprias “quanto à proporção, angularidade, luminosidade, equilíbrio espacial, cores e pregnância formal”[29].
É uma prova de projeção das características comportamentais do examinado, quando este interpreta os significados das manchas de tintas e estes são analisados por especialistas e comparados a dados estabelecidos para a população normal.
A doutrina é majoritária no entendimento de que a prova de Rorschach, aliada a outros instrumentos de avaliações, é considerada adequada ao diagnóstico de transtornos específicos da personalidade, especialmente a psicopatia. Entretanto, a correta e confiável avaliação da prova de Rorschach depende desta ser aplicada por um profissional bem treinado e experiente.
2.1.2 Psychopath Checklist-Revised
Considerando a correlação entre crimes (especialmente os violentos) e a psicopatia, em 1980, o canadense Robert Hare criou o Psychopath Checklist (PCL) e, alguns anos mais tarde, o Psychopath Checklist-Revised (PCL-R).
Atualmente, parece haver um consenso de que o mecanismo mais propício para mensurar a psicopatia e reconhecer fatores de risco de violência é o PCL-R. A eficácia reputada a essa ferramenta de avaliação é destacada também em obra de Jorge Trindade:
[...] a Escala Hare tem se mostrado muito eficaz na identificação da condição de psicopatia, sendo unanimemente considerado o instrumento mais fidedigno para identificar psciopatas, principalmente no contexto forense, e verificar, além de comportamentos, os traços de personalidade prototípicos de psicopatia[30].
O checklist da Escala Hare é organizado em vinte itens, a saber:
· loquacidade; charme superficial;
· superestima;
· estilo de vida parasitário; necessidade de estimulação; tendência ao tédio;
· mentira patológica; vigarice; manipulação;
· ausência de remorso ou culpa;
· insensibilidade afetivo-emocional; indiferença; falta de empatia;
· impulsividade; descontroles comportamentais;
· ausência de metas realistas a longo prazo;
· irresponsabilidade; incapacidade para aceitar responsabilidade pelos próprios atos; promiscuidade sexual;
· muitas relações conjugais de curta duração;
· transtornos de conduta de infância;
· delinquência juvenil;
· revogação de liberdade condicional;
· versatilidade criminal[31]
Cada um desses itens da escala é pontuado de 0 a 2 (0 para a não existência; 1 para talvez/existência em alguns aspectos; e 2 para a sua existência) e o levantamento das características dos itens é baseado em fatores de estilo de vida, afetivos, interpessoais e antissociais (transgressores), cuja pontuação total pode chegar até 40.
O PCL-R já é aplicado nas populações carcerárias de muitos países, dentre eles: Estados Unidos da América, Canadá, Escócia, Nova Zelândia, Bélgica, Austrália, Inglaterra, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, China e Alemanha. Cada país que utiliza este instrumento de avaliação adota um valor como ponto de corte, a fim de se identificar o psicopata típico (com elevadas chances de reincidir na conduta delituosa).
2.2 O Tratamento da Psicopatia
Acerca da eficácia do tratamento de psicopatas, a década de setenta foi permeada de uma descrença, sobressaindo-se a ideia que nada funcionava. A controvérsia sobre tratamentos, na história da psiquiatria, gira em torno de tratamentos medicamentosos, psicológicos, punitivos e, inclusive, cirúrgicos. No entanto, prevalece, nos dias atuais, o entendimento de que não há tratamentos a eles aplicados que resultem na redução da violência ou da criminalidade.
Os psicopatas são pessoas que se reputam autossuficientes e egocêntricas que, numa rara busca por tratamento médico ou psicológico, poderão estar repletos da intenção de se aperfeiçoarem em laudos técnicos, a fim de minimizarem as sanções a que possam ser submetidos.
Nesse mesmo diapasão, Hare destacou que alguns dos recursos terapêuticos podem intensificar aquilo que se objetiva melhorar, ou seja, “[...] determinados programas podem fornecer ao psicopata um aprimoramento na sua técnica de manipular, iludir, enganar e aproveitar-se dos outros”[32], gerando-se mais danos do que melhorias.
Além disso, estudos como os de Salekin, Rogers e Sewell, por exemplo, “demonstraram que psicopatas desestruturam as próprias instituições de tratamento, burlam as normas de disciplina contribuindo para aumentar a fragilidade do sistema, e instalam um ambiente negativo onde quer que se encontrem”[33].
CAPÍTULO III – O DIREITO PENAL E O PSICOPATA
1 Psicopatia e Imputabilidade
Recordando-se o que já examinamos previamente, no que diz respeito à aplicação dessas consequências jurídico-penais, “as penas são aplicáveis aos imputáveis e semi-imputáveis; as medidas de segurança são aplicáveis aos inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi-imputáveis, quando necessitam de especial tratamento curativo”[34].
Desta forma, se faz oportuno adentrarmos na questão da imputabilidade da figura dos psicopatas. Para responsabilizá-los penalmente, é vital a identificação entre o transtorno parcial e global da personalidade antissocial, pois “a maioria dos psicopatas preenche os critérios para transtorno antissocial, mas nem todos os indivíduos que preenchem os critérios para transtorno antissocial são necessariamente psicopatas”[35].
Jorge Trindade nos relata que “há uma tendência universal de considerar psicopatas capazes de entender o caráter lícito ou ilícito dos atos que pratica e de dirigir suas ações”[36]. Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini os consideram imputáveis e responsáveis “por ter alguma consciência da ilicitude da conduta, mas é reduzida a sanção por ter agido com culpabilidade diminuída em consequência de suas condições pessoais”[37].
A par disso, a sanção penal para a culpabilidade diminuída é refletida por Cezar Roberto Bitencourt da seguinte forma:
A culpabilidade diminuída dá como solução a pena diminuída, na proporção direta da diminuição da capacidade, ou, nos termos do art. 98 do CP, a possibilidade de, se necessitar de especial tratamento curativo, aplicar-se uma medida de segurança, substitutiva da pena. Nesse caso, é necessário, primeiro, condenar o réu semi-imputável, para só então poder substituir a pena pela medida de segurança, porque essa medida de segurança é sempre substitutiva da pena reduzida. Quer dizer, é preciso que caiba a pena reduzida, ou seja, que o agente deva ser condenado. E o art. 98 fala claramente em ‘condenado’ [...][38].
Ante tudo o que foi exposto, verifica-se que o ordenamento jurídico penal brasileiro não define a psicopatia, mas a jurisprudência acaba por tratá-la como perturbação mental, atribuindo-se aos psicopatas a redução de pena ou a medida de segurança, nos termos do parágrafo único do art. 26 e do art. 98, ambos do CP.
2 As Avaliações Técnicas no Sistema Carcerário Brasileiro
Após a introdução da Lei nº 10.792/2003, a Lei de Execução Penal (LEP), “para a concessão dos benefícios legais, as únicas exigências previstas são o cumprimento do lapso temporal exigido por lei e a boa conduta”[39], ou seja,
No sistema carcerário brasileiro não existe um procedimento de diagnóstico para a psicopatia quando há solicitação de benefícios, redução de penas ou para julgar se o preso está apto a cumprir sua pena em um regime semiaberto. Se tais procedimentos fossem utilizados dentro dos presídios brasileiros, certamente os psicopatas ficariam presos por muito mais tempo e as taxas de reincidência de crimes violentos diminuiriam significativamente. Nos países onde a Escala Hare (PCL) foi aplicada com essa finalidade, constatou-se uma redução de dois terços das taxas de reincidência nos crimes mais graves e violentos. Atitudes como essas acabam por reduzir a violência na sociedade como um todo.
Hilda Morana, não somente foi a responsável pela tradução, adaptação e validação da Escala Hare no Brasil, como também lutou pela sua aplicação em nossos presídios e pela criação de prisões específicas para os psicopatas, esforços que acabaram por contribuir com o Projeto de Lei nº 6.858 de 2010. Atualmente, esta proposta legislativa encontra-se apensada ao Projeto de Lei nº 4.500/2001 e sujeita a apreciação do Plenário. E tem como justificativa:
garantir a realização obrigatória de exame criminológico do agente condenado a pena restritiva de liberdade, quando de sua entrada no estabelecimento prisional em que cumprirá a pena, e quando das progressões de regime a que tiver direito, por uma comissão técnica independente [...] de fora da estrutura formal das penitenciárias, com a capacitação profissional indispensável à avaliação das condições psicossociais do preso quando este, por decisão da Justiça, puder estar em contato com a sociedade.[...]
Além disso, outra alteração se faz necessária, no mesmo diapasão das primeiras, a fim de prever a execução da pena do psicopata separadamente da dos presos comuns[40].
3 Reforma do Código Penal Brasileiro
Se a Reforma Penal de 1984 trouxe algumas mudanças significativas no que se refere à psicopatia, é com pesar que recebemos o Projeto de Lei nº 236 de 2012, do qual nada disciplinou de novo a respeito da imputabilidade ou do conceito deste agente infrator.
Porém, anexado à proposta de 2012, temos o Projeto de Lei nº 140 de 2010 não abandonando o tema da psicopatia em repleto silêncio na legislação penal. Este projeto sugere a inclusão do conceito penal de assassino em série, por meio da inserção dos §§ 6º, 7º, 8º e 9º ao art. 121 do CP.
De forma censurável, tal projeto de lei acaba por se preocupar apenas com um tipo de psicopatia, além de impor como requisitos a quantidade mínima de crimes realizados de forma dolosa e padronizados em determinado intervalo de tempo. Nada obstante, desprezou a tentativa e não determinou de forma objetiva o lapso temporal.
Ademais, o tratamento dado à pena para este infrator merece atenção, uma vez que a reclusão mínima de trinta anos em regime fechado e as vedações do § 9º lançam dúvidas no que tange à sua constitucionalidade.
Isto posto, conclui-se que, ainda que se perceba boa intenção no esforço do legislador para tipificar de forma específica o psicopata, o assunto ainda demanda atenção das áreas das ciências jurídicas (penal e constitucional) e da psiquiatria forense em conjunto. Outrossim, que não sejam desconsiderados outros tipos de psicopatia.
CONCLUSÃO
Sendo o crime um injusto penal culpável, concluímos que a culpabilidade aperfeiçoa a conduta típica e ilícita do sujeito. Logo, foi necessário atentarmos às causas excludentes da culpabilidade, principalmente a imputabilidade. Constatamos assim, que para a aferição da inimputabilidade, o ordenamento jurídico penal brasileiro adotou, em regra, o sistema biopsicológico, segundo o qual a inimputabilidade somente é possível de ser reconhecida se, ao tempo da ação ou omissão do agente, este apresente problema mental que afaste toda a sua capacidade de entender o caráter ilícito da sua conduta e de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento, isto é, a capacidade de entender a conduta e querer praticá-la.
No decorrer deste estudo foi possível demonstrarmos o crescente consenso de a psicopatia ser um transtorno de personalidade antissocial e os indivíduos por ela acometidos terem plenas condições de distinguir o certo do errado, ou seja, compreenderem o caráter ilícito de um fato e se autodeterminarem conforme esse entendimento. Aliás, é gradual o entendimento da doutrina psiquiátrica de que esses indivíduos, ao agirem de forma criminosa, não o fazem por falta do entendimento do caráter ilícito da conduta, mas sim pela falta de empatia e consideração pelos sentimentos alheios, somado ao fato de acharem que sairão sempre impunes, razão pela qual agem de forma sistemática e repetitiva. Portanto, conclui-se que não se trata o psicopata de um inimputável.
Logo, diante da suspeita do réu ser portador de psicopatia, cabe ao juiz determinar a realização de avaliações, a fim de se verificar o diagnóstico do infrator, inclusive o grau da psicopatia, se for o caso. Para tanto, destacamos o atual entendimento de que a prova de Rorschach, aliada a outros instrumentos de avaliações, como o PCL-R, é considerada adequada ao diagnóstico de transtornos específicos da personalidade, especialmente a psicopatia. É importante ressaltar que pelo próprio sistema biopsicológico, cabe ao perito tratar da questão biológica e ao juiz tratar da questão psicológica.
Diante da ausência de norma penal relacionada à figura do psicopata e da variação, por muitas décadas, de concepções para a psicopatia, é até compreensível que atualmente os psicopatas sejam tratados como semi-imputáveis. Entretanto, com tudo que foi exposto sobre o assunto, é de nosso entendimento que estes indivíduos devam ser considerados como imputáveis. Sob outro ângulo, ao assim considerá-los, levantamos a questão da pena não se tratar de um meio retributivo e preventivo eficaz contra eles. A ressocialização destes infratores é tida, pela maioria, como impossível, assim como o tratamento, o que nos leva a vê-los como uma figura altamente perigosa dentro e fora dos presídios, pois utilizam seu poder de sedução e manipulação com as vítimas, com os encarcerados, com os funcionários da prisão, com os profissionais da área da saúde etc.
Em decorrência do entendimento jurisprudencial de tratar os psicopatas como semi-imputáveis, atribuindo-lhes a culpabilidade diminuída, percebe-se que, nos dias atuais, esse perfil transgressor da lei e de alto índice de reincidência criminal recebe o privilégio da redução de pena, afastando-lhe de uma pena severa.
A possibilidade de se lhe aplicar a medida de segurança em substituição do juízo de culpabilidade pelo juízo de periculosidade, traz à tona a questão desta medida ser discutida como remédio, e não como pena para que possa ser aplicada por tempo indeterminado. Tal entendimento vai contra o posicionamento do Supremo Tribunal Federal de firmar o prazo máximo de trinta anos para essa medida, em respeito à vedação constitucional de penas de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b” da CF/88) e do que preconiza o Código Penal, no caput do seu art. 75, das penas privativas de liberdade não poderem ser superiores a trinta anos.
Diante disto, se passados trinta anos de tratamento ambulatorial de um condenado acometido por psicopatia que, pela Constituição Federal, deva ser liberado da medida de segurança, entendemos restar prejudicado o direito fundamental à segurança da coletividade em prol de um direito fundamental individual que se configura como cláusula pétrea de nossa Carta Magna. Conclui-se, assim, que o tratamento despendido atualmente ao tema mostra-se insuficiente, cabendo ao Poder Judiciário adequar-se à realidade das normas vigentes no país e preservar, da melhor forma possível, os preceitos constitucionais que tutelam os direitos coletivos e individuais.
[1] Autora: Marisa Ferreira Satriuc, Advogada formada pelo Centro Universitário Padre Anchieta, Monografia aprovada em 2015, Jundiaí/SP.
[2] Orientadora: Prof.ª Ms. Juliana Caramigo Gennarini, Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Advogada, Professora de Direito e Processo Penal do Centro Universitário Padre Anchieta.
[3] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 26. ed. rev. e atual. até 5 de janeiro de 2010. São Paulo: Atlas, 2010, p. 1.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 9ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 86.
[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 525.
[6] Idem, Ibidem, p. 526.
[7] CURIA, Luiz Roberto (Colab.); CÉSPEDES, Lívia (Colab.); ROCHA, Fabiana Dias da (Colab.). Vade mecum oab e concursos. 6. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 496.
[8] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a lei nº. 7.209, de 11-07-1984 e com a constituição federal de 1988. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 228.
[9] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120). 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 330.
[10] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 9ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 384.
[11] ASÚA, Luís Jiménez. Tratado de Derecho Penal, 3ª ed., Buenos Aires, Losada,1964, v. 6, p. 199, apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 534. p. 542.
[12] MASSON, Cleber Rogério. Direito penal esquematizado – parte geral – vol. 1. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 441.
[13] SANZO BRODT, Luís Augusto. Da consciência da ilicitude no direito penal brasileiro, p. 46, apud GRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte geral, volume I, arts. 1º a 120 de CP. 13 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 385.
[14] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 9ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 393.
[15] GRECO, Rogério. Curso de direito penal, parte geral, volume I, arts. 1º a 120 de CP. 13 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 403.
[16] CURIA, Luiz Roberto (Colab.); CÉSPEDES, Lívia (Colab.); ROCHA, Fabiana Dias da (Colab.). Vade mecum oab e concursos. 6. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 519.
[17] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 579.
[18] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 26. ed. rev. e atual. até 5 de janeiro de 2010. São Paulo: Atlas, 2010, p. 200.
[19] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1034.
[20] PINHEIRO, Carla; MACIEL, José Fábio Rodrigues (Coord.). Psicologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 34.
[21] KAPLAN e SADOCK (1993, pg. 556), apud FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathia Ragazzoni. Psicologia jurídica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 99.
[22] FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathia Ragazzoni. Psicologia jurídica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 100.
[23] KAPLAN e SADOCK (1993, pg. 196), apud Ibidem, p. 107.
[24] HARE, R.D. Without consciencce: the disturbing world of the psychopaths among us. New York:
Pocket Books, 1993. p. xi, apud CASTRO, Isabel Medeiros de. Psicopatia e suas consequências jurídico-penais. Porto Alegre, 2012. p. 5.
[25] TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 160-161.
[26] MORANA, Hilda Clotilde Penteado. Identificação do ponto de corte para a escala PCL-R (Psychopathy Checklist Revised) em população forense brasileira: caracterização de dois subtipos de personalidade; transtorno global e parcial. 2003. Tese (Doutorado em Psiquiatria) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 13.
[27] Idem, ibidem, p. 15.
[28] TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 167.
[29] TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 171.
[30] MORANA, H. C. P. Disponível em www.casadopsicologo.com.br. Acessado em 02.07.2004, apud TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 170.
[31] FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathia Ragazzoni. Psicologia jurídica. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 110.
[32] HARE, R. D. Without conscience: The disrurbing. World of the psychopaths among us. New Cork: Guilford Presse. 1998, apud TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 172.
[33] SALEKIN, R. T.: ROGERS, R.; SEWELL. K. W. A review and meta-analysis of the Psychopathy 1996, apud Ibidem, p. 172.
[34] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1035.
[35] MORANA, Hilda Clotilde Penteado. Identificação do ponto de corte para a escala PCL-R (Psychopathy Checklist Revised) em população forense brasileira: caracterização de dois subtipos de personalidade; transtorno global e parcial. 2003. Tese (Doutorado em Psiquiatria) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 34.
[36] TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 174.
[37] MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 26. ed. rev. e atual. até 5 de janeiro de 2010. São Paulo: Atlas, 2010, p. 199.
[38] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 581-582.
[39] SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 3 ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
[40] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 6858/2010. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, Lei de Execução Penal, para criar comissão técnica independente da administração prisional e a execução da pena do condenado psicopata, estabelecendo a realização de exame criminológico do condenado a pena privativa de liberdade, nas hipóteses que especifica.