O Novo Sistema Recursal e o Combate à Jurisprudência Defensiva


12/05/2015 às 12h15
Por Marcela Carvalho

Introdução

O direito existe com a finalidade de alcançar a paz social, utilizando-se da imposição de regras básicas de convívio que deverão ser observadas pelos membros da sociedade.

Ocorre que, a imposição de regras de conduta não é impencilho para o surgimento de conflitos de interesses, sendo, assim, necessário que o estado intervenha e ofereça um serviço eficiente para a resolução da lide, já que é vedado ao jurisdicionado fazer justiça pelas próprias mãos, conforme art. 345 do código penal.

Com isso, a jurisdição constitui uma função do estado que é exercida através do processo, sendo o processo um instrumento à serviço do direito material para a resolução de conflitos que surgem na sociedade e que atrapalham o convívio harmônico de seus membros.

Acredita-se que toda ideia de acesso à justiça encontra raízes no conflito, ou seja, sem a existência do conflito a garantia fundamental do acesso à justiça perderia a sua finalidade.

Frisa-se que ter acesso à justiça não é apenas abrir as portas do judiciário para a o jurisdicionado, mas, sim, oferecer um serviço eficiente, com duração razoável e que de fato solucione a lide que foi instaurada.

Nesse liame, kazuo watanabe[1] afirma que o que se busca é o verdadeiro acesso à ordem jurídica justa e não apenas a simples entrada do cidadão no judiciário com a promessa de algum dia ter a resposta para seu caso.

Atualmente, é citado por diversos juristas que alguns dos motivos da lentidão e a falta de efetividade na prestação jurisdicional se deve as inúmeras possibilidades de recursos existentes, a falta de utilização dos meios alternativos de resolução de conflitos pela sociedade, a não conformidade ou o não entendimento das decisões judiciais pelos juriscidionados, a falta de estrutura e organização do judiciário para receber as demandas e a jurisprudência defensiva.

O sistema recursal previsto pelo novo código de processo civil, como todo trabalho criado por seres humanos, possui pontos elogiáveis e outros nem tanto, mas aponta para a evolução do processo como instrumento garantidor do acesso à ordem jurídica justa, efetiva e com tempo razoável, ou seja, coloca o processo como aliado do jurisdicionado.

Uma das finalidades dos criadores do sistema recursal desse novo código era de dar efetividade ao princípio constitucional do acesso à justiça, combatendo visivelmente a jurisdição defensiva e as restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos[2].

Observa-se, também, que todo o texto do novo código de processo civil é guiado pelo preceito de se colocar em primeiro plano o julgamento do mérito, conforme seu art.6º. Veja:

“todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (art. 6º, novo código de processo civil).

Essa regra imposta pelo novo código de processo civil visa impedir que o jurisdicionado tenha seu direito negligenciado pela demora do judiciário em solucionar o caso, pela imposição ilegítima de impencilhos no processo e o uso exacerbado de formalismo, não previsto em texto legal, que impedem a resolução do mérito.

Haja vista, a resolução do mérito é a real finalidade do processo como instrumento.

Ocorre que, na ordem jurídica atual a resolução do mérito tem sido desvalorizada, e, quando se chega na solução da lide, muitas vezes já não é mais interessante para o jurisdicionado ou, o direito que deveria ser assegurado pelo estado, já não é mais efetivo devido a morosidade.

O novo sistema recursal e o combate à jurisprudência defensiva.

A jurisprudência defensiva, em grosso modo, consiste na supervalorização de requisitos formais para o conhecimento dos recursos nos tribunais, ocasionando, assim, a não apreciação do mérito e o cerceamento do direito do recorrente.

É conhecida, também, como uma doutrina utilitarista que cria impecilho para a admissibilidade dos recursos, muitas vezes não previsto em texto legal e/ou que poderia ser facilmente sanável pelo recorrente.

Frisa-se que a origem das práticas denominadas como jurisprudência defensiva tem origem no crescente número de processos submetidos a julgamento perante as cortes superiores.

De acordo com dados do site informativo do supremo tribunal federal[3], somente no ano de 2008 mais de 66 mil processos foram distribuídos, o que daria uma média de 16 processos para cada ministro julgar por dia! Totalmente inviável.

Portanto, com a quantidade exorbitante de processos contrastando com a incessante busca pela duração razoável do processo, nasce a doutrina utilitarista com a proposta de assegurar a resolução do maior número de processos possíveis criando óbices ao conhecimento dos recursos.

Observa-se, atualmente, alguns impencilhos estabelecidos pela jurisprudência defensiva para o não conhecimento dos recursos: i) carimbos não legíveis, criando a impossibilidade de a parte juntar certidão posterior que comprove a tempestividade do recurso; ii) recurso interposto por patrono sem a devida procuração nos autos, iii) não admissibilidade da guia de recolhimento de custas posterior à imposição do recurso ou erro sanável no preenchimento da guia para o pagamento das custas; iv) recursos sem a assinatura do patrono; v) ausência de ratificação de recurso após o julgamento dos embargos declaratórios; vi) óbice à juntada de certidão posterior para comprovação de feriado local; vii) ausência de peça essencial ao julgamento do recurso; viii) impossibilidade de conversão de recurso especial em recurso extraordinário e vice-versa; dentre outros.

O excesso de rigor e formalismo adotado pelos tribunais no conhecimento dos recursos acaba afastando o judiciário do jurisdicionado e dos interesses da sociedade, mitigando, assim, o princípio do duplo grau de jurisdição e cerceando por completo o acesso à justiça.

Para ilustrar o tamanho descaso com o jurisdicionado, entre o período de abril de 2008 a janeiro de 2009, o superior tribunal de justiça inadmitiu quase que 15 mil recursos considerados pelos primeiros assessores como “manifestamente inadmissíveis”, informação que foi alavancada pelo núcleo de procedimentos especiais da presidência[4].

De acordo com o ministro do supremo tribunal federal eros grau, o direito enfraquece quando não mais corresponde aos interesses do seu tempo, podendo criar barreiras para a evolução da sociedade:

“perece a força normativa do direito quando ele já não corresponde à natureza singular do presente. Opera-se então a frustração material da finalidade dos seus textos que estejam em conflito com a realidade, e ele se transforma em obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças sociais.”[5]

O novo código de processo civil optou por não reduzir drasticamente a quantidade de recursos existentes no nosso ordenamento jurídico, pois os seus idealizadores acreditam que o que estimula o jurisdicionado a recorrer desmedidamente é a jurisprudência dispersa e oscilante e não a diversidade de recursos existentes. [6]

Portanto, o texto do novo código de processo civil inclui o respeito aos precedentes como um dos mecanismos criados para evitar o abarrotamento de processos nos tribunais e garantir a celeridade processual. Veja os artigos 926 e 927:

“art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1o na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

§ 2o ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.”

“art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do supremo tribunal federal em controle concentrado de constitucionalidade;

Ii - os enunciados de súmula vinculante;

Iii - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;”

Ocorre que a crítica afirma que faltou imperatividade no texto dos artigos, principalmente no art. 927, pois o termo “observarão” pode não ser considerado como um dever, mas, sim, como uma exortação.

As mudanças que mais chamaram a atenção no novo sistema recursal foi o combate à jurisprudência defensiva, tornando os recursos menos burocráticos e valorizando a resolução do mérito frente aos requisitos formais de admissibilidade dos recursos.

O art. 932, parágrafo único do novo código de processo civil, de forma imperativa afirma que antes do relator considerar inadmissível o recurso, deverá conceder cinco dias ao recorrente para que seja sanado o vício presente ou para complementar alguma documentação exigível que faltou no recurso.

Ou seja, esse artigo acaba com a inadmissibilidade dos recursos por falta de alguma cópia de documento, falta de assinatura do advogado ou a presença de um carimbo ilegível, por exemplo. Assim, não poderá ser mais usado pelos tribunais esses pequenos detalhes formais como desculpa para não apreciar o mérito e dar uma devida resposta ao recorrente.

Outra mudança interessante foi a questão do preparo. Atualmente qualquer erro no pagamento do preparo ou até mesmo esquecer de juntar nos autos o comprovante de pagamento da guia das custas é motivo para deserção automatica sem ao menos dar oportunidade para o recorrente se pronunciar sobre a questão.

No art. 1.007 do novo código de processo civil, o legislador oferece a chance do recorrente corrigir erros no preenchimento da guia de custas e também aborda a questão da insuficiência no valor do preparo que pode ser suprido em cinco dias.

Ressalta-se, também, que no texto do novo código de processo civil houve a inserção do pré-questionamento ficto, consagrando, assim, a posição do supremo tribunal federal.

No ordenamento atual existe uma divergência jurisprudencial com relação ao tema, pois a súmula 211 do superior tribunal de justiça renega o pré-questionamento ficto, contrastando com o enunciado da súmula 356 do supremo tribunal federal.

Com isso, o novo código de processo civil resolve essa divergêngia jurisprudencial considerando inclusos no acórdão questões que o embargante apontou para fins de embargos de declaração, mesmo que os embargos tenham sido inadmitidos ou rejeitados, veja:

“art. 1.025. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”

Um ponto muito controverso na ordem jurídica atual é também a questão do recurso prematuro, pois, com a oscilação da jurisprudência, existe a possibilidade do recurso ser considerado deserto se for apresentado antes do prazo.

Agora, com o art. 218, parág. 4º do novo código de processo civil, a irracionalidade da possível deserção por recurso interposto antes da publicação não mais perdura. Veja:

“art. 218

(...)

§ 4o será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo.”

Outra conquista elogiável para o jurisdicionado no novo código de processo civil é a fungiblidade entre o recurso especial e o recurso extraordinário, conforme os arts.1032 e 1033.

Agora se o relator do superior tribunal de justiça compreender que o recurso especial versa sobre matéria constitucional, ao invés de inadmitir o recurso de ofício, deverá abrir prazo de quinze dias para o recorrente demonstrar a repercussão geral e explanar sobre a questão constitucional.

Frisa-se, também, que a via contrária do procedimento é possível, ou seja, se o supremo tribunal federal considerar como reflexa a ofensa à constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou tratato, deverá remeter de ofício para análise do superior tribunal de justiça, de acordo com o art. 1033.

Acredita-se que outra vitória conquistada nesse novo sistema recursal desburocratizado e inimigo da jurisprudência defensiva é a retirada da figura do juízoa quo no juízo de admissibilidade do recurso. Senão, veja o art. 1030, parágrafo único do novo código de processo civil:

“art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão remetidos ao respectivo tribunal superior.

Parágrafo único. A remessa de que trata o caput dar-se-á independentemente de juízo de admissibilidade”

Mas todas essas mudanças positivas não são garantias de maior celeridade processual e duração razoável do processo se não houver uma reestruturação do judiciário para receber todas as demandas e a descentralização da gestão administrativa do próprio judiciário.

É cediço que o magistrado despende muito tempo de trabalho com questões administrativas do que julgando propriamente os casos. Então, seria interessante retirar das mãos do juíz essa parte administrativa da vara para que ele se debruçasse somente sobre os casos.

Destaca-se, ainda, que o novo código de processo civil exige a elaboração de fundamentação original para cada decisão, o que pode tornar o judiciário mais moroso se não houver uma estrutura organizada nos tribunais.

No mais, na parte dos recursos, o novo código de processo civil visa uma maior efetividade para o jurisdicionado, garantindo o acesso à justiça e o direito de recorrer, combatendo visivelmente a jurisprudência defensiva e apostando na desburocratização do instrumento, o que contrasta com a busca pela celeridade processual.

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  • Acesso à Justiça
  • Novo Sistema Recursal

Referências

Grau, eros roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. Ed. São paulo: malheiros, 2005, p.114.

Faria, márcio carvalho. A jurisprudência defensiva dos tribunais superiores e a ratificação necessária (?) De alguns recursos excepcionais, in revista de processo, v. 167. São paulo: rt, 2009, p. 250-269.

Mancuso, rodolfo de carmargo. A realidade judiciária brasileira e os tribunais da federação – stf e stj: inevitabilidade de elementos de contenção dos recursos a ele dirigidos. In processo e constituição: estudos em homenagem ao professor josé carlos barbosa moreira. Luiz fux, nelson nery jr. E teresa arruda alvim wambier (coordenadores). São paulo: revista dos tribunais, 2006.

Moreira, josé carlos barbosa moreira. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. Revista da ajuris, vol. 32, n. 100, dezembro, 2005

Tavares, andré ramos. Curso de direito constitucional. 8. Ed. São

Paulo: saraiva.

Watanabe, kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In:

Grinover, a. P. (org.). Participação e processo. São paulo: editora

Revista dos tribunais, 1998.

[1] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In:

GRINOVER, A. P. (Org.). Participação e processo. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1998.

[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. Restrições Ilegítimas ao Conhecimento dos Recursos. Revista da AJURIS, Vol. 32, n. 100, Dezembro, 2005

[3] http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp

[4] http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ

[5] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.114.

[6] http://www.valor.com.br/legislacao/1125690/entrevista-teresa-arruda-alvim-wambier


Marcela Carvalho

Bacharel em Direito - Brasília, DF


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