RESUMO
A postura inerte do Poder Judiciário não satisfaz os anseios de um Estado Constitucional de Direito, entretanto, ainda existe resistência para admitir a intervenção judicial nas decisões ditas discricionárias da Administração Pública. O assunto ganha mais relevância quando o que está em pauta é a omissão estatal no âmbito da efetivação dos direitos fundamentais. Em decorrência disso, o presente estudo objetiva apresentar os fundamentos jurídicos legitimadores da atuação judicial, bem como, a necessidade da reconstrução do regime jurídico administrativo, desenvolvendo o tema com base doutrinária e jurisprudencial. Por fim, pretende estabelecer os limites para a atuação judicial a fim de evitar uma judicialização excessiva.
Palavras –chaves: Constitucionalismo - Direitos Fundamentais - Omissão Estatal - Discricionariedade Administrativa.
ABSTRACT
The inert attitude of the judiciary does not satisfy the yearnings of a Constitutional Rule of Law, however, there is still resistance to admit the judicial intervention in “discretionary decisions” of the Public Administration. The issue gains more importance when what is at stake is the state failure within the realization of fundamental rights. As a result, this study aims to present the legitimating legal bases of the judicial action, as well as the need for reconstruction of the administrative legal framework, developing the theme with doctrinal and jurisprudential bases. Finally, we want to establish the limits for the judicial action in order to avoid excessive judicialization.
Key words: Constitutionalism - Fundamental rights - State failure - Administrative discretion.
SUMÁRIO
1 Introdução. 2 O constitucionalismo. 2.1 – Os direitos fundamentais e os direitos humanos. 3 O papel do Poder Judiciário. 3.1 – A legitimidade do Poder Judiciário. 4 A origem crítica do regime jurídico administrativo. 5 A construção de um novo paradigma. 6 O controle judicial da discricionariedade administrativa. 7 Recurso Extraordinário n° 592.581. 8 Os limites da atuação judicial. 9 Conclusão. 10 Referências bibliográficas.
1 Introdução
A doutrina tradicional do Direito Administrativo que defende a premissa do caráter absoluto da impossibilidade do controle judicial na atuação discricionária da Administração Pública precisa ser revista e desconstituída a fim de impedir a invocação do princípio da separação dos poderes para perpetuar a omissão estatal referente aos deveres impostos ao Estado pela Constituição da República Federativa do Brasil.
Isto porque, o cenário brasileiro nos apresenta uma Administração Pública omissa nos seus deveres constitucionais e, por conseguinte, a ineficácia dos direitos fundamentais garantidos na decisão democrática adotada pelo povo e expressada na Constituição. Diante disso, o sujeito de direito recorre ao Poder Judiciário para salvaguardar seus direitos, mas encontra empecilho na impossibilidade do controle judicial da discricionariedade administrativa.
Observa-se que a doutrina brasileira ainda resiste em superar a prevalência absoluta dos postulados do Direito Administrativo, mas a jurisprudência avança e encontra diversas críticas dos doutrinadores e daqueles que temem em ser controlados.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que o Poder Judiciário pode impor obrigação de fazer à Administração Pública quando esta se mostra omissa. Embora no caso concreto, a Corte tenha considerado a aplicabilidade imediata da norma constitucional para afastar a alegação de invasão ao mérito administrativo, a decisão é importante para ampliar o controle judicial.
Dentre os autores que propõem uma reconstrução da doutrina do Direito Administrativo estão Dirley Cunha e Gustavo Binenbojm.
Destaca-se que o objetivo do presente artigo é propor a reformulação da doutrina administrativa para impulsionar a concretização dos direitos fundamentais sem abolir a atuação discricionária e possibilitando o controle judicial.
Outrossim, almeja traçar o contorno da atuação judicial cuja legitimação deve se restringir ao texto constitucional, caso contrário, seria incontroverso, pois possibilitar a atuação desregrada pelo Poder Judiciário seria, conforme linguagem popular, trocar seis por meia dúzia, transferindo o abuso de poder de um aparato estatal para outro.
Dessa forma, a indispensável releitura da doutrina do Direito Administrativo com a subsequente desmitificação da intocável atuação discricionária girará em torno do constitucionalismo moderno e no regime democrático da Estado de Direito vigente, os quais não admitem a inércia do Poder Judiciário diante da omissão estatal.
2 O Constitucionalismo
O constitucionalismo não é uma ideia recente e, desde os primórdios, fundamenta-se no postulado da limitação do poder absoluto, através de meios e instituições necessárias para limitar e controlar o poder político.
Embora existam vários movimentos constitucionais – com suas peculiaridades decorrentes de suas raízes temporais, espaciais e culturais, dependendo do Estado soberano os quais estejam vinculados –, José Canotilho, jurista lusitano, recorta a noção básica de vários daqueles para formular o seguinte conceito:
Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos.(CANOTILHO, 1996, p.51, .grifo do autor).
Numa linguagem mais didática, Renata Fiuza (2016, p.13) ensina que “o constitucionalismo é o movimento social, jurídico e político que tem como principal característica a limitação do exercício do poder do Estado por meio do texto constitucional, com o objetivo de preservar os direitos fundamentais do povo”.
Advirta-se que a existência do constitucionalismo nem sempre se condicionou à existência de constituição escrita, contudo, primado pela segurança jurídica, o constitucionalismo moderno comporta a constituição moderna. Nas palavras de Canotilho, in verbis:
Por constituição moderna entende a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia[1]; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torna-lo um poder limitado e moderado. (CANOTILHO, 1996, p. 52, grifo do autor)
O constitucionalismo moderno atribuiu sentido jurídico à Constituição, na medida em que se apresenta na condição de norma superior, destinando-se a ser fundamento de validade que só pode ser alterada por procedimento especial e solene previsto no seu bojo.
Mas isto se mostrou insuficiente para garantir a efetividade da dignidade da pessoa humana, por isso, após a Primeira Guerra Mundial, os Estados inseriram direitos de cunho econômico e social nas suas Cartas Políticas, marcando a transição de um Estado liberal e passivo para um Estado social e intervencionista (CUNHA, 2016, p.34). Tal período é conhecido pela doutrina com neoconstitucionalismo, no qual o Estado passa a ter deveres consubstanciados em ações.
A referida mudança de concepção está intimamente ligada ao crescimento da importância dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos de cada Estado e em escala internacional.
2.1 - Os direitos fundamentais e os direitos humanos
Como dito anteriormente, a influência da Primeira Guerra Mundial ensejou o surgimento do neoconstitucionalismo, marcado pela imposição de deveres de atuação para os órgãos de direção política, a exemplo, alguns deveres estatais presentes na Constituição Brasileira: erradicar a pobreza e a marginalização (art. 3°, III); incentivar o desenvolvimento científico (art. 218); preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais (art. 225,1).
Neste ínterim, desenvolveu-se a cultura jurídica pós- positivista no plano filosófico, ensejando o destaque dos princípios da dignidade da pessoa humana e a mudança de paradigma apresentada em três aspectos: a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento novos horizontes na interpretação constitucional (BARROSO, 2010).
Após a Segunda Guerra Mundial houve a internacionalização dos direitos humanos, promovendo a relativização da soberania estatal em prol da prevalência da pessoa humana, possibilitando a intromissão nos Estados para a defesa dos aludidos direitos.
Observa-se que as duas Grandes Guerras do século XX influenciaram na releitura da soberania e na compreensão do sujeito de direito no âmbito internacional, caracterizando a chamada virada kantiana.
A virada kantiana marca a ascensão do pós- positivismo e baseia-se no postulado de Immanuel Kant de que cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, ou seja, a razão de ser do Estado é a defesa do indivíduo.
Neste ponto chama-se a atenção entre a sutil diferença entre os direitos fundamentais e os direitos humanos, uma vez que ambos fundamentam-se na dignidade da pessoa humana no plano axiológico. Assim, a diferença reside no plano de positivação no qual os direitos estão consagrados, se previstos no plano internacional, referem-se aos direitos humanos; se previstos plano nacional, no caso brasileiro, na Constituição Federal, referem-se aos direitos fundamentais.
Vejamos o que ensina Nathalia Masson (2015, p.190) acerca do tema:
Nada obstante, majoritariamente a doutrina identifica uma diferença entre os termos referente ao plano em que os direitos são consagrados: enquanto os direitos humanos são identificáveis tão somente no plano contrafactual (abstrato), desprovidos de qualquer normatividade, os direitos fundamentais são os direitos humanos já submetidos a um procedimento de positivação, detentores, pois, das exigências de cumprimento (sanção), como toda e qualquer outra norma jurídica.
A referida diferenciação é importante porquanto o Estado brasileiro reconhece e se submete às duas espécies de direitos, o que implica na possibilidade de intervenção externa diante da violação de direitos humanos.
Prova disso é o leasing case conhecido como Ximenes Lopes versus Brasil, primeira condenação brasileira perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse caso prático, o portador de doença mental Damião Ximenes Lopes foi assassinado cruelmente na Casa de Repouso Guararape, localizado no estado do Ceará. Em face da procrastinação do Poder Judiciário Brasileiro punir os envolvidos, os familiares de Ximenes recorreram à Corte, a qual reconheceu a violação do direito à vida, à integridade pessoal e às garantias processuais e impôs diversas obrigações ao Estado brasileiro. Segundo André de Carvalho Ramos (2014),
O caso mostra que o Brasil pode ser condenado por ato de ente federativo ou por ato do Poder Judiciário, não sendo aceitas alegações como “respeito ao federalismo” ou “respeito à separação de poderes” (grifo do autor)
No plano interno, na medida em que a percepção jurídica apresenta a Constituição enquanto norma superior de obediência às demais normas do ordenamento jurídico, os valores norteadores do Estado Brasileiro estão previstos na nossa Carta Magna para impor a estrutura de proteção dos direitos fundamentais.
Conforme será sustentado mais adiante, as normas constitucionais preveem mecanismos processuais para que o sujeito de direito possa garantir a efetividade dos direitos fundamentais por intermédio da jurisdição.
Em face desse contexto, assevera-se que a Administração Pública, enquanto destinatária de mandamentos constitucionais, incluindo deveres comissivos que são violados diante de uma omissão, deve pautar sua conduta na matriz de proteção dos direitos fundamentais, em obediência ao plano de positivação interno.
Por isso, é perfeitamente aceitável a intervenção jurisdicional quando o Estado encontra-se inadimplente nas suas obrigações constitucionais.
Além disso, sendo o Estado signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos, organismos internacionais podem relativizar a soberania nacional para garantir a concretização dos direitos humanos.
Conclui-se que, com o intuito de manter a soberania na sua integralidade, distante de interferências externas, é preferível a atuação de um poder legitimado por normas constitucionais para a defesa dos direitos fundamentais do que ser complacente com a omissão estatal e sujeitar-se à imposições internacionais.
3 O papel do Poder Judiciário
O título II da Constituição Federal, no qual se encontra o notório artigo 5° da Constituição Federal, é intitulado como “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” e elenca um rol de direitos e, essencialmente, mecanismos judiciais para a sua defesa.
Isto porque, seria inútil a expressa garantia dos direitos fundamentais na Carta Magna se não houvessem mecanismos que o cidadão pudesse manejar em caso de violação por parte do Estado. É importante lembrar que o constitucionalismo aspira primordialmente a limitação do exercício do poder estatal para garantir a preservação dos direitos fundamentais.
O comando legal inscrito no inciso XXXV, do art. 5° estabelece que a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e não comporta exceções.
Em decorrência disso, o legislador constituinte adotou a inafastabilidade da jurisdição e trouxe no seu bojo ações próprias para a defesa dos direitos fundamentais em face do abuso estatal, quais sejam, habeas corpus, mandado de segurança, mandando de injunção e habeas data. Além de prever a ação popular para garantir a participação popular na defesa do patrimônio público em sentido amplo e do meio ambiente, bens essencialmente coletivos.
Além disso, a Constituição Federal atribui a controle da constitucionalidade das leis e atos normativos ao Poder Judiciário, permitindo o afastamento da eficácia de normas que colidam com seus postulados.
Extrai-se das considerações acima que o legislador constituinte preocupou-se em garantir a efetividade das normas constitucionais e incumbiu o Poder Judiciário como guardião da Constituição. Neste sentido, destaca-se entendimento do renomado autor Luis Roberto Barroso acerca do tema:
O papel do Poder Judiciário, em um Estado constitucional democrático, é o de interpretar a Constituição e as leis, resguardando direitos e assegurando o respeito ao ordenamento jurídico. Em muitas situações, caberá a juízes e tribunais o papel de construção do sentido das normas jurídicas, notadamente quando esteja em questão a aplicação de conceitos jurídicos indeterminados e de princípios. Em inúmeros outros casos, será necessário efetuar a ponderação entre direitos fundamentais e princípios constitucionais que entram em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre normas ou fazer escolhas fundamentadas.
O espaço para a atuação judicial diante das omissões administrativas e legislativas é inequívoco, uma vez que o controle judicial assegura a sobrevivência da democracia, garantindo o cumprimento da decisão política expressa na Constituição Federal.
Luis Roberto Barroso realizou um estudo acerca da intervenção judicial nas ações que visam o fornecimento de medicamentos no artigo intitulado como “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”. Embora o referido artigo trate preponderantemente do direito à saúde, os ensinamentos do ilustre autor são pertinentes à intervenção do judicial na defesa dos direitos fundamentais em sua generalidade.
O autor ensina que a Doutrina da Efetividade[2] atribuiu força normativa às normas constitucionais, dotando-as de aplicabilidade direta e imediata. Isto representa um avanço para a ordem jurídica brasileira, uma vez que a referida doutrina visa, nas palavras de Barroso (2009):
superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento.
Percebe-se que existe uma nítida preocupação com a omissão estatal e um dos caminhos para superar o problema é atribuir imperatividade às normas constitucionais, nas quais se extraem direitos subjetivos que podem ser reclamados diretamente por via judicial, a exemplo do requerimento para imputar a obrigação de fazer consistente no fornecimento de determinado medicamentos aos entes federativos, uma vez que o direito à saúde é dever do Estado e a norma assecuratória do direito à saúde possui eficácia direta e imediata, independendo de lei ou ato administrativo posterior.
Neste sentido converge o entendimento do Supremo Tribunal Federal, legitimando a intervenção judicial diante da omissão estatal. Vejamos a ementa e os principais trechos do acórdão[3] que manteve decisão do 1° grau no sentido de obrigar o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de Ensino Infantil próximas de sua residência o do endereço de trabalho de seus responsáveis:
E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS “ASTREINTES” CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS – EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS” - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO “JURA NOVIT CURIA” - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL.
(...)
Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
(...)
É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos (grifo nosso).
Percebe-se que a Suprema Corte encontra legitimidade constitucional da intervenção do Poder Judiciário na omissão estatal injustificável e referentes a normas constitucionais que tutelam direitos fundamentais, assumindo, dessa forma, o seu papel previsto na Lei Maior. Outrossim, considera que não há transgressão ao postulado da separação dos poderes, mas sim, proteção dos direitos fundamentais. Assim, entende de maneira acertada, interpretando as normas constitucionais em favor do sujeito de direitos, e não, sob a potestade do Estado enquanto pessoa jurídica.
3.1 - A legitimidade do Poder Judiciário
Embora prevaleça o posicionamento do controle restrito do Poder Judiciário sobre o comportamento da Administração Pública, a possibilidade da atuação judicial ampla enseja debates calorosos entre doutrinadores brasileiros e muito se discute acerca da sua legitimidade.
Tal possibilidade não deveria ocasionar tanto espanto numa ordem jurídica que admite o controle da constitucionalidade das leis e atos normativos e atribui força normativa às súmulas vinculantes, contudo, a irresignação ocorre por causa da cultura enraizada de que os atos discricionários da Administração Pública são intangíveis.
Antes de prosseguir é importante destacar a diferença entre o constitucionalismo e a democracia, destacando que o primeiro consiste na limitação do poder e na preservação da supremacia da Constituição, visando primordialmente o respeito aos direitos fundamentais e o segundo garante a soberania popular e o governo da maioria.
Dentre os argumentos contrários à intervenção judicial levanta-se a questão da ausência de legitimidade democrática, uma vez que os magistrados não são eleitos pelo povo, mas, como regra geral, são determinados por critérios técnicos.
Acerca da democracia, é necessário destacar que a Constituição Federal consiste numa decisão política e sua supremacia confere validade às demais normas do ordenamento jurídico pátrio, além disso, é fruto de um processo legislativo realizado por um poder constituído democraticamente. Por conseguinte, a atuação judicial, em observância aos contornos constitucionais, não transgride a democracia, ao contrário, cumpre a mais importante decisão democrática brasileira.
No Estado Brasileiro, a legitimação do Poder Judiciário provém do constitucionalismo e não contraria a democracia porque a intervenção judicial objetiva o cumprimento dos preceitos constitucionais.
Neste ponto, Barroso chama a atenção para uma possível tensão entre o constitucionalismo e a democracia, caracterizada quando a maioria política vulnera direitos fundamentais. Quando isso ocorre, defende o autor, cabe ao Judiciário intervir. Vejamos:
Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria política vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no Estado constitucional democrático que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas – isto é, o Legislativo e o Executivo –, impondo ou invalidando ações administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocamente, para preservar um direito fundamental previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma lei existente.
Exemplo dessa situação é o caso concreto julgado no RE 592581, no qual o Parquet ajuizou uma ação requerendo a reforma de um estabelecimento prisional que submetia os presos condições subumanas. Ora, a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal asseguram à integridade física e moral dos presos e, ao mesmo tempo, a cultura brasileira consiste na premissa de que “bandido bom é bandido morto”. Em decorrência disso, os candidatos aos cargos políticos dificilmente lembrarão, e nem o corpo eleito deseja, dos interesses da população carcerária.
Entretanto, os detentos não deixam de ser sujeitos de direito por causa da possível transgressão que cometeram e o Poder Judiciário, como ocorreu no caso concreto supramencionado, deve agir para assegurar seus direitos.
4 A origem crítica do regime jurídico administrativo
O primeiro passo para realizar a mudança de um paradigma é entender a essência do objeto em tela e reavaliá-lo sob a ótica da atual realidade, no caso da Direito Administrativo, é necessário analisar a sua gênese e desconstituir a noção garantista do seu regime jurídico.
As Escolas de Direito ensinam tradicionalmente que o regime jurídico da Administração Pública é constituído por dois pilares, a supremacia do interesse público sobre o interesse privado e a indisponibilidade do interesse público. O primeiro fundamenta a atribuição de prerrogativas à Administração Pública, possibilitando a realização do interesse público, e o segundo impõe limitações à atuação estatal para salvaguardar os direitos dos administrados.
Diante de tal ensinamento, extraímos uma noção garantística em prol do cidadão, sendo a atribuição de regras de privilégios à Administração Pública – a exemplo da discricionariedade administrativa- a melhor opção para atender a consecução do interesse público.
Considerando a doutrina de Maria Sylvia di Pietro (2001, p.2), alguns autores afirmam que o Direito Administrativo é produto exclusivo da Revolução Francesa. Em face da importância do direito francês na doutrina do Direito Administrativo Brasileiro, destacando-se o surgimento deste ramo do Direito no ordenamento jurídico francês.
Na Idade Média, contemporânea das monarquias absolutas, todo o poder pertencia ao soberano e a sua vontade era lei, assim, o rei detinha um direito ilimitado para administrar e não podia ser submetido ao Tribunal porque seus atos estavam acima do ordenamento jurídico.
Com o advento do Estado de Direito, no qual a atuação estatal serve aos direitos individuais, surge o Direito Administrativo, fruto da Revolução Francesa e estruturado sobre os princípios da legalidade e da separação de poderes.
Esta é a versão tradicional do surgimento do Direito Administrativo, a subordinação do poder à lei e a consequente preservação dos direitos individuais perante a atuação estatal porque o Poder Executivo opera dentro dos limites traçados pelo Legislativo, sob vigilância do Judiciário.
Por outro lado, autores modernos defendem que a supramencionada doutrina trata-se de uma reprodução acrítica e constitui uma ilusão garantística da gênese.
Filia-se a este entendimento o doutrinador Gustavo Binenbojm, o qual sustenta que o surgimento do Direito Administrativo representa uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime. Vejamos:
O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Conseil d’ État em França, que tornaram viáveis soluções diversas das que resultariam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ativista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Parlamento. A conhecida origem pretoriana do direito administrativo, como construção jurisprudencial do Conselho de Estado derrogatória do direito comum, traz em si uma contradição: a criação de um direito especial da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de uma decisão autovinculativa do próprio Executivo.
Observa-se que as regras diferenciadas que disciplinam a atuação estatal não foram produto da vontade da lei, mas sim, uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob a proposta do Conseil d’ Etat.
Faz-se acreditar que as categorias jurídicas do Direito Administrativo surgiram sem resquícios do Antigo Regime (vontade do soberano) e como a melhor alternativa para alcançar o interesse público. Não é por acaso que o princípio da supremacia do interesse público é o primeiro assunto a ser ensinado para possibilitar a compreensão do matéria.
Neste sentido, ressalta-se que no Estado Constitucional de Direito a concretização dos direitos individuais consiste no alcance do interesse público. Assim, Binenbojm alerta para uma contradição partindo da conceituação de interesse público criada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2003), autor que defende o princípio da supremacia do interesse público. Vejamos:
Nesse sentido, apresenta a noção de interesse público como uma projeção de interesses individuais e privados em plano coletivo, ou seja, um interesse comum a todos os indivíduos, e que representa o ideal de bem-estar e segurança almejado pelo grupo social.
Diante deste conceito unitário, no qual o interesse público e o interesse privado estão intimamente ligados, a prevalência absoluta do interesse público sobre o interesse privado, sendo que um é dimensão do outro, é um tanto paradoxal. Além disso, não se estabelece qual é a justa medida que impede que um elimine o outro.
5 A construção de um novo paradigma
A verdade é que o Estado se vale do princípio supramencionado e da sua atuação discricionária para se eximir dos seus deveres constitucionais, a exemplo da realização da saúde, da educação e do seu dever de garantir o respeito à integridade física e moral dos presos.
Não podemos olvidar que o papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito consiste em garantir a concretização dos direitos instituídos pela carta política.
É inegável a necessidade da atuação discricionária da Administração na realização do bem comum, isto porque, o legislador não pode prever todas as situações que o ocorrerão no caso concreto. Então, admitir a somente a prática de atos vinculados seria engessar a atuação estatal. Assim, a solução é o controle para que tal atuação não se torne um Cavalo de Tróia[4].
Ocorre que, por vezes, essa margem de escolha pode camuflar o atendimento de interesses pessoais e/ou os interesses do Estado enquanto pessoa jurídica, o que não coaduna com a vigente ordem constitucional que reconhece a centralidade da dignidade da pessoa humana.
Por isso, diante do caso concreto no qual confronta-se o interesse público e o interesse individual, o administrador e, se preciso, o julgador, deverá valer-se do princípio da ponderação para buscar ao máximo a concretização dos direitos.
Em tempos em que se fala em ativismo judicial, em tempos em que políticos alvos de investigação criminal chamam a atuação judicial de “Ditadura da Justiça”, é salutar definir o papel do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito e a sua legitimação na decisão democrática adotada pelo povo e expressada na Constituição.
6 O controle judicial da discricionariedade administrativa
Como dito anteriormente, a cultura pós positivista ensejou o desenvolvimento de novos horizontes na interpretação constitucional e isso ganha grande relevância na reconstrução do Direito Administrativo, sobretudo, por tratar-se um ramo do direito brasileiro que não possui compilação num único diploma legal, ocasionando a recorrente utilização dos princípios no caso concreto.
Percebe-se que a utilização dos princípios amplia a atuação do gestor, pois dá margem de valoração para o intérprete alcançar o valor almejado na norma. Aliás, essa é também a razão de existir da própria discricionariedade,
Destaca-se que, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p.32), a discrição “é a mais completa prova de que a lei sempre impõe o comportamento ótimo”.
O autor defende que a discrição existe para cumprir a finalidade legal que, muitas vezes, não seria alcançada com uma atuação vinculada, na medida em que seria incapaz considerar as peculiaridades do caso concreto.
Assim, em apertada síntese, o autor utiliza o exemplo de uma norma hipotética que determinasse o direito a internamento gratuito a pessoas enfermas que ganhassem apenas um salário mínimo. No caso concreto, poderíamos ter uma pessoa que ganhasse um salário mínimo e meio, mas que fosse casado, tivesse 12 filhos e ainda sustentasse a sogra. Certamente a referida pessoa necessita do internamento gratuito, mas com certeza teria seu pedido indeferido por não atender os requisitos legais. Neste caso concreto, a lei não alcançaria a sua finalidade em amparar pessoa necessitada.
Por causa disso, a discrição é indispensável para a concretização dos mandamentos constitucionais, mas deve ser controlada para evitar o abuso de poder.
Dirley Cunha (2016, p.48) defende a ruptura da tradicional resistência de submeter o ato discricionário ao controle judicial, considerando que a liberdade da Administração Pública é demarcada pelo próprio direito, podendo o julgador analisar as razões de conveniência oportunidade sob a luz dos princípios da moralidade e razoabilidade. Por outro lado, o Poder Judiciário pode impor obrigações que concretizem os mandamentos constitucionais, por exemplo, destinação específica no orçamento para reforma de um presidio, mas não pode estabelecer como será o modus operandi da Administração Pública.
7 Recurso Extraordinário n° 592.581
Na medida em que a discussão acerca da possibilidade do controle da discricionariedade nos casos de omissão estatal está em voga, a análise do Recurso Extraordinário n° 592.581 torna-se obrigatória visto que o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Poder Judiciário pode determinar obrigação de fazer consistente na execução de obras em estabelecimentos prisionais para garantir a efetivação dos direitos fundamentais dos custodiados.
Neste ponto, os fundamentos que sustentaram as teses apresentadas, tanto a favor, quanto contra a intervenção judicial, são extremamente significativos para o desenvolvimento do tema, isto porque, o STF reconheceu a existência de repercussão geral[5] da matéria, o que implica na relevância das teses fixadas na decisão, uma vez que servirão de base para a orientação dos diversos juízes e tribunais do país em casos análogos.
Em face da precariedade das condições a que estavam submetidos os detentos do Albergue Estadual de Uruguaiana, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPE/RS) ajuizou Ação Civil Pública em face do estado do Rio Grande do Sul, requerendo reformas no estabelecimento prisional aptas a adequá-lo ao preceito constitucional expresso no art, 5°, XLIX da Constituição Federal, qual seja: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
Na sentença, considerando o relatório da inspeção realizado pelo Conselho Penitenciário, o juiz de Direito acolheu o pedido do Parquet e determinou a reforma do estabelecimento prisional nos seguintes termos:
“(...) realizar, no prazo de 06 (seis) meses, obras de reforma geral no Albergue Estadual de Uruguaiana, de modo a adequá-lo aos requisitos básicos da habitalidade e salubridade dos estabelecimentos penais, quais sejam: a) conserto dos telhados onde há infiltração e umidade; b) instalação de forro sob o telhado em todos os dormitórios; c) conserto de janelas e substituição de vidros quebrados; d) conserto das instalações hidrossanitárias, especialmente de canos com vazamentos, e dos esgotos abertos no pátio; e) adequação das instalações elétricas, especialmente dos fios e tomadas aparentes; f) revestimento das áreas molhadas (paredes dos banheiros, etc.) de maneira que fiquem lisos, laváveis e impermeáveis”[6].
Inconformado com a decisão, o estado do Rio Grande do Sul interpôs recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS). Instado a se manifestar, o Tribunal reconheceu a precariedade das condições do estabelecimento prisional e a ofensa ao preceito constitucional, afirmando que a dificuldade se encontra na técnica de efetivação dos direitos fundamentais. Neste passo, considerou que as normas referentes à integridade dos presidiários possuem natureza programática e apenas traçam linhas gerais, não possuindo caráter impositivo.
Ao lado disso, destacou que a concretização dos direitos contidos em normas programáticas depende dos recursos materiais financeiros (reserva do possível) e da disposição do administrador, vez que se trata de exercício da discricionariedade. Por conseguinte, a confirmação da decisão de piso implicaria na indevida invasão em seara reservada à Administração.
Recebido o recurso extraordinário e reconhecida a repercussão geral da matéria, uma vez que a matéria tratada extrapola os limites subjetivos do processo, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowskim, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram, de forma unânime, pela cassação do acórdão combatido.
Em apertada síntese, a tese de repercussão geral fixada defendeu a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no caso sub judice, na medida em que a Constituição assegura a inafastabilidade da jurisdição como garantia da efetivação dos direitos, os quais possuem aplicabilidade imediata. Além disso, recordou a sujeição da República Federativa do Brasil às normas internacionais de direitos humanos e, por conseguinte, a sua sujeição as sanções pertinentes. Por tais fundamentos, a reserva do possível e o postulado da separação dos poderes não podem ser invocados a fim de impedir a atuação judicial.
Por fim, destaca-se a parte dispositiva do voto do relator, o qual foi confirmado pelos demais ministros:
Ante o exposto e o mais que consta dos autos, sobretudo tendo em conta o princípio da inafastabilidade da jurisdição, dou provimento ao recurso extraordinário para cassar o acórdão recorrido, a fim de que se mantenha a decisão proferida pelo juízo de primeiro grau. A tese de repercussão geral que proponho seja afirmada por esta Suprema Corte é a seguinte: “É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes”.
Feitas tais considerações, passemos a exposição dos pontos mais importantes levantamos na decisão supracitada.
De plano observa-se que a decisão da Suprema Corte está em harmonia com os postulados do constitucionalismo e com a política internacional de proteção aos direitos humanos, sendo incontestável a influência externa quando se trata da referida matéria.
A tese defendida pelo Parquet e acolhida pelo Supremo é de que os direitos fundamentais tem aplicabilidade imediata e, por isso, questões orçamentárias não devem ser alegadas.
Nesse ponto, é importante ressaltar que embora seja uma tese agradável de ler, devemos ser práticos para alcançar a efetividade. Assim, a alegação de questões orçamentárias não devem ser descartadas de forma absoluta porque não adiante obter um título judicial executivo se não tem patrimônio para satisfazê-lo.
E nesse sentido, a Procuradoria da República opinou no sentido de que a cláusula da reserva do possível apenas é aplicada em decorrência de um justo motivo objetivamente aferido, devendo ser prontamente afastada quando sua adoção implique a violação do núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Por fim, observa-se que o Supremo não ousou em falar sobre controle da discricionariedade administrativa para a concretização das normas constitucionais, preferindo defender somente a aplicação imediata das normas disciplinadoras de direitos fundamentais. Poderia ir além, mas já foi um avanço.
Seria uma anomalia o Poder Judiciário optar por se manter inerte diante de uma situação onde o próprio Réu alega a violação dos direitos fundamentais, seria inaceitável o Poder Judiciário se calar diante do sofrimento de uma parcela da população que sequer tem representação política.
O Supremo Tribunal Federal avançou e os juristas brasileiros, a cada dia, sentirão a necessidade de reconstruir o regime jurídico administrativo.
8 Os limites da atuação judicial
Em face dos postulados do constitucionalismo, do pós–positivismo e da crescente política internacional de proteção aos direitos humanos, conclui-se que a possibilidade de intervenção do Poder Judicial não pode ser afastada, mas deve ser analisada com cautela para evitar excessos.
Atualmente, muito se fala em ativismo judicial e os seus malefícios decorrente do atraso da atuação estatal em relação aos nossos fundamentos do Estado Constitucional de Direito no qual estamos inseridos.
Os direitos humanos são marcados por sua historicidade, na medida que surgiram e evoluíram de forma gradativa em decorrência de lutas no decorrer do processo histórico. Noutro momento, ressaltamos a influência dos males das duas Grandes Guerras para mudança de paradigma dos Estados, os quais passaram a privilegiar a dignidade da pessoa humana.
Ocorre que a regime jurídico administrativo não acompanhou tal evolução e insiste em manter uma política de privilégios ao Estado, aquele que sempre se revelou algoz no processo histórico.
Em face da postura por vezes omissiva do ente estatal, o Poder Judiciário é instado a intervir e muitas vezes beira ao excesso porque querem afastar a sua atuação ao invés de aceitar a necessidade da intervenção judicial e estabelecer limites[7] para isso.
Não podemos olvidar que a Constituição estabelece deveres à Administração Pública, em regra a destinação dos recursos públicos e a efetivação material dos mandamentos constitucionais, o que demanda um planejamento por parte do ente estatal. Disso decorre que a intervenção demasiada do Poder Judiciário pode ocasionar a desorganização da Administração Pública.
Nesse sentido, alerta Barroso ao tratar da efetivação do direito à saúde:
O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.
Outrossim, o autor adverte que a ânsia de tutelar os direitos fundamentais de uns, pode comprometer recursos públicos para a implementação de políticas públicas que poderiam beneficiar grande parte da população.
Assim, recorda-se que a atuação judicial é legitimada por decisão fundamentada, o que configura o mais importante mecanismo constitucional de controle do exercício da jurisdição.
Ao lado disso, a Carta Maior ordena a observância do devido processo legal com exercício da ampla defesa e do contraditório, o que é fundamental para garantir que a atuação judicial somente ocorrerá diante da omissão injustificada da Administração, a qual terá o ônus de comprovar a sua impossibilidade em promover, naquele momento, tal direito. Nesse ponto, destaca-se, mais uma vez, que a aplicação da reserva do possível só deve ser admitida com a comprovação de um justo motivo.
Além disso, o Poder Judiciário deve sempre atuar com base em previsão anterior, seja da Constituição, seja de lei infraconstitucional, a exemplo do Recurso Extraordinário n°592581, os ministros efetivaram disposições da Carta Magna e da Lei de Execução Penal, bem como, diante uma provocação, respeitando o princípio da inércia da jurisdição.
Por todo exposto, conclui-se que atuação judicial sobre os atos tradicionalmente discricionários da Administração Pública para efetivar direitos fundamentais deve ocorrer diante de uma omissão injustificada e com base em previsão legal anterior, devendo a atuação judicial sempre respeitar o devido processo legal, a inércia da jurisdição e a fundamentação da decisão.
9 Conclusão
O constitucionalismo, o pós – positivismo e a política internacional de proteção ao direitos humanos passaram a destacar a atuação estatal em prol da concretização da dignidade da pessoa humana.
Em decorrência disso, as constituições modernas estabelecem deveres comissivos direcionados ao Estado para efetivar direitos fundamentais, por isso, a sua omissão representa violação ao direito tutelado.
Diante dessa violação, o Poder Judiciário deve atuar e interferir na atuação da Administração Pública a fim de cumprir o seu dever constitucional, qual seja, garantir a efetivação dos mandamentos constitucionais, assegurando, dessa forma, a preservação da democracia, na medida em que efetiva a mais importante decisão política do nosso ordenamento pátrio.
Mas a intervenção do Poder Judiciário encontra resistência na doutrina e na jurisprudência por causa da tradicional proibição de análise do mérito administrativo, o que é incompatível com os atuais postulados da ordem jurídica brasileira, cujo centro está no indivíduo, e não, no ente estatal. Observa-se, portanto, que o regime jurídico administrativo não acompanhou a evolução constitucional e demanda a construção de um novo paradigma.
Nesse contexto, a aplicação dos princípios consagrados na Constituição Federal devem auxiliar ao gestor e/ou ao magistrado a escolher qual direito deve preponderar no caso concreto, afastando a natureza absoluta da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Destaca-se que o Estado brasileiro é adepto da política internacional de direitos humanos, o que possibilita a intervenção de organismo externos para salvaguardar os direitos humanos aqui violados. Por isso, a atuação da jurisdição brasileira diante da omissão estatal visa proteger a soberania integral do Estado brasileiro.
O Recurso Extraordinário n° 592.581 merece destaque porquanto o Supremo Tribunal Federal reconheceu a sua repercussão geral e decidiu que o Poder Judiciário pode imputar obrigação de fazer à Administração Pública para efetivar direitos fundamentais, o que representa um avanço para o tema tratado neste artigo.
Embora indispensável, a atuação judicial diante da omissão estatal deve ser contida e encontra limites no próprio texto constitucional, a exemplo da decisão fundamentada e da observância do devido processo legal, o que possibilita a Administração comprovar que não houve omissão injustificada para legitimar a atuação judicial.
Por fim, para que o Poder Judiciário atue sem beirar ao ativismo excessivo é necessário um novo regime jurídico administrativo, no qual as garantias sejam voltadas para o indivíduo, reconhecendo o papel do Poder Judiciário e, a partir disso, estabelecer parâmetros para a sua atuação.
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