Resumo
A aplicação do dolo eventual aos homicídios de trânsito tem gerado discussões acaloradas nos meios midiáticos, nas ruas e nos tribunais. Por meio desta pesquisa, busca-se demonstrar como o instituto do dolo eventual vem sendo aplicado de forma desmedida, em dissonância com a Teoria Geral do Delito, e quais as causas e efeitos disso. Tem-se como objetivo, também, analisar a referida situação à luz da doutrina geral do crime, ou seja, das construções dogmático-penais, bem como a legislação vigente e de como a jurisprudência vem tratando esses casos. Por fim, apresentam-se algumas medidas legislativas passíveis de amenizarem a insegurança jurídica causada pela imprevisibilidade nos julgamentos acerca desses delitos, seus acertos e equívocos frente à proporção do problema em nossa sociedade. O método utilizado é a pesquisa bibliográfica, analisando-se, dentre outras, as obras clássicas que contêm as bases sólidas da teoria geral do delito, tanto na doutrina nacional como na estrangeira.
Palavras-chave: Homicídio de Trânsito. Dolo eventual. Culpa consciente. Culpa temerária.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo verificar a situação dos juízos proferidos hodiernamente acerca do crime de homicídio quando perpetrado no trânsito e por condutor em estado de ebriedade.
Para tanto, busca-se, no primeiro momento, demonstrar, por meio de pesquisa bibliográfica, todo o esforço doutrinário (de anos) no sentido de distinguir os institutos penais do dolo eventual e da culpa consciente, que há muito têm causado polêmica e decisões desiguais em casos semelhantes.
Versaremos sobre a embriaguez ao volante, não como crime autônomo, mas como meio de aferição que tem sido para a constatação do dolo eventual, mormente no delito em testilha. O objetivo central é demonstrar que tal postura não condiz com os pilares da doutrina geral do crime, nem com o sistema penal vigente, que tem a responsabilidade penal como subjetiva (devendo dolo ou culpa serem demonstrados no curso de um processo penal, jamais presumidos).
Ato contínuo, trataremos acerca da dogmática jurídico-penal, seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro, e sua importância enquanto Ciência do Direito Penal, razão pela qual não deve ser desprezada pelos operadores do Direito.
Cônscios de que toda distorção operada nesses institutos em apreço (dolo e culpa) tem uma ou mais causas, abordaremos sobre elas, bem como os efeitos que produzem no cenário jurídico-penal hodierno. A difusão [midiática] do medo, a criação de uma sociedade de riscos, do ambiente de insegurança que gera o clamor social como grande fomentador do expansionismo penal, da ideia de que “quanto mais leis, maior eficácia”, e do punitivismo vingativo desinente dos ideais de aplicação máxima do Direito Penal ou movimento Law of Order. [1]
Ressaltaremos os efeitos penais da aplicação do dolo eventual ao crime de homicídio praticado no trânsito.
Adiante, examinaremos as medidas legislativas que vêm sendo adotadas no sentido de minimizar a polêmica e abrir caminho para uma futura solução para o impasse, haja vista que o homicídio culposo prevê uma pena hoje considerada branda, enquanto que, ao contrário, o homicídio doloso possui pena muito rigorosa para tais casos, sendo ambas as previsões desproporcionais do ponto de vista doutrinário.
Por fim, não menos relevante, apresentaremos, a título exemplificativo, alguns julgados recentes sobre os casos em epígrafe, buscando discorrer sobre as decisões dos magistrados e ministros de forma crítica e construtiva, sempre tendo como esteio a doutrina penal e a busca pela segurança jurídica nas decisões. Não olvidemos o postulado de que “[…] os cidadãos devem saber o que precisam fazer para serem culpados, e o que precisam evitar para serem inocentes” (BECCARIA, 1764, p. 158).
1 DISTINÇÃO TEÓRICA ENTRE DOLO E CULPA
Via de regra, o homicídio causado por condutor de veículo se dá na forma culposa, tendo como tipificação o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro(Lei Nº 9.507/95), com pena de detenção de dois a quatro anos, mais a sanção administrativa.
Em breve definição, Damásio E. De Jesus (2008, p. 73) afirma que o homicídio culposo de trânsito “é a morte de um homem provocada culposamente por outro na direção de veículo automotor.”
Contudo, há casos em que o homicídio de trânsito poderá ser entendido como doloso (art. 121, caput, do CP), por meio do chamado dolo eventual, instituto criado pela reforma penal de 1984 (Lei Nº 7.209/84) e inserido no artigo 18, inciso I, do Código Penal, mais precisamente, com a expressão “[…] ou assumiu o risco de produzi-lo”, consoante veremos. Em tais casos, a conduta será punível com pena de reclusão de seis a vinte anos, ou seja, nos moldes do homicídio executado com dolo direto.
Desse modo, temos como exceção à regra antes mencionada o homicídio de trânsito na forma dolosa. Eis, portanto, a questão: Como distinguir tais modalidades no crime em comento? A resposta não é simples, e é praticamente na tentativa de buscá-la que reside toda a polêmica envolvendo o assunto, conforme abordaremos alhures.
Importante destacar que, como neste artigo nos restringimos à análise do delito de homicídio perpetrado no trânsito por motorista embriagado, a modalidade de culpa que se manifesta em tais casos é a consciente, na qual o agente, ao ingerir bebida alcoólica, é capaz de prever o resultado lesivo, mas não o aceita, pois acredita honestamente que com suas habilidades conseguirá evitá-lo (CAPEZ, 2010, p. 234).
No cotejo entre os dois institutos (dolo eventual x culpa consciente), percebe-se que a distinção é de difícil análise, e, portanto, geradora de polêmica, incertezas jurídicas e, mormente, insegurança. Sobre tal dificuldade, temos o magistério de Welzel (1976, p. 100):
Delimitar el dolo eventual de la culpa consciente es uno de los problemas más dificiles y discutidos del Derecho Penal. La razón de esta dificuldad esta em que el querer es fenómeno anímico originário-último, que no puede ser reducido a otros processos anímicos – ni emocionales, ni intelectuales – y que por elle solo puede ser circunscrito pero no propriamente definido.
Para a doutrina majoritária, o Brasil adotou como critério de aferição do dolo eventual a denominada teoria do consentimento ou da assunção, o que significa, em linhas gerais, que além do conhecimento ou previsão de que o resultado possa ocorrer (elemento cognitivo), o agente deve, também, aprovar a conduta, em seu interior, isto é, no sentido de aceitar, conformar-se ou assumir o risco da produção desse resultado (elemento volitivo) (TAVARES, 2002, p. 339-341).
Nesta concepção teórica, Hans-Heinrich Jescheck (1981, p. 324) assevera que a configuração do dolo eventual “[...] exige que el autor debe haber 'aprobado' el resultado, que 'lo haya aceptado con sua aprobación' o que, finalmente, también hubiera actuado en caso de 'conocimiento seguro de el mismo”.
Da própria leitura do referido artigo 18, inciso I, do Código Penal, se infere a adoção da sobredita teoria.
No entanto, a jurisprudência brasileira é vacilante no que tange à distinção do dolo eventual da culpa consciente nos crimes de trânsito, sendo que, por vezes se adota a teoria do consentimento (posição majoritária), noutras a teoria da indiferença, e ainda, uma terceira corrente que adota a teoria da probabilidade (TAVARES, op. Cit., p. 344-345), o que gera incertezas quanto à aplicação dos institutos penais e, por conseguinte, insegurança jurídica.
Obviamente, os defensores do reconhecimento do dolo eventual aplicam a estes casos a teoria da probabilidade, na qual basta que o agente tenha como provável a produção do resultado lesivo e, mesmo assim, continue agindo (TAVARES, op. Cit., p. 336). A crítica doutrinária, neste ponto, opera no sentido de que “o conhecimento do perigo qualificado constitui somente indício de que o agente tenha assumido o risco da produção do resultado e não propriamente um critério identificador do dolo” (ibid.). No mais, ao que parece, reconhecer o dolo eventual com supedâneo na mera probabilidade, beira à responsabilidade penal objetiva, que deve ser evitada no ordenamento pátrio, face ao princípio da responsabilidade penal subjetiva, inclusive adotado pelo Código Penal em seu artigo 18 (GOMES, 2009, p. 35).
Retomando a distinção, podemos dizer que no dolo eventual há certa tolerância do agente em relação à produção do resultado, sendo ele indiferente quanto a tal consequência. Por outro lado, na culpa consciente, “[...] o agente não tolera o resultado, não o quer, não assume o risco nem é indiferente quanto à ocorrência do fato danoso” (CALLEGARI, 2009, p. 109). Nesses casos, por mais que o agente consiga prever a lesão ao bem jurídico, confia sinceramente na evitabilidade do resultado (JESUS, 2012, p. 343).
Um clássico exemplo que diferencia bem os institutos aqui versados é introduzido na doutrina por Claus Roxin (1997, p. 423-424), in verbis:
K y J querían robar a M. Decidieron estrangularlo con una correa de cuero hasta que perdiera el conocimiento y sustraerle entonces sus pertenencias. Como se percataron de que el estrangulamiento podría conducir en determinadas circunstancias a la muerte de M, que preferían evitar, resolvieron golpearle con un saco de arena en la cabeza y hacerle perder la conciencia de ese modo. Durante la ejecución del hecho reventó el saco de arena y se produjo una pelea con M. Entonces K y J recurrieron a la correa de cuero que habían llevado por si acaso. Hicieron un lazo en torno al cuello de M y tiraron de ambos extremos hasta que aquél dejó de moverse. Acto seguido se apoderaron de las pertenencias de M. A continuación les sugirieron dudas sobre si M estaría aun vivo y realizaron intentos de reanimación, que resultaron inútiles. ¿Existe aquí una muerte doloso- eventual y por tanto un asesinato o sólo un homicidio imprudente?
No exemplo supra, em primeiro momento, os agentes confiam na evitação do resultado representado como possível, o que afasta a característica da conformação/aceitação. Já no segundo momento, com a retomada do plano original (estrangular a vítima com o cinto de couro para deixa-la inconsciente e subtrair seus pertences), fica demonstrada a alteração emocional, passando os agentes a “aceitarem” o risco de produzir o resultado lesivo (SANTOS, 2000, p. 72).
Na lição de Jescheck (1981, p. 269), “[...] dolo eventual significa que el autor considera seriamente como posible la realización del tipo legal y si conforma con ella.”
O que não se pode admitir é que o dolo eventual figure como estágio avançado da culpa, por ausência de uma pena mais elevada prevista em lei para tais casos. Em outras palavras, dolo e culpa são institutos distintos que em momento algum se fundem. Afinal, o dolo eventual tem efeito equiparado ao dolo direto, razão pela qual, “[…] no dolo eventual deve haver um grau de intensidade no tocante ao processo de produção do resultado que tenha carga equivalente àquela que se desenvolve com o dolo direto.” (TAVARES, op. Cit., p. 347). Como leciona Fernando Diáz Palos, não se pode olvidar que dolo eventual “es dolo antes que eventual” (1953, p. 97).
2 A EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E A APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL
Curial tecermos alguns comentários sobre a embriaguez ao volante, uma vez que a proposta neste artigo é a análise do dolo eventual aplicado ao delito de homicídio de trânsito justamente por conta da ebriedade do agente delitivo.
Sabemos que, além da embriaguez, há outros aspectos que costumam servir de motivação para a aplicação do dolo eventual pelos julgadores, como por exemplo: uso de celular ao volante, participação em “racha”, excesso de velocidade, entre outros. Não obstante, repita-se, trataremos tão somente da embriaguez como causa ensejadora do dolo eventual no homicídio de trânsito, sob pena de demasiada extensão do presente artigo. Dada a justificativa, seguimos com a exposição.
A embriaguez ao volante encontra previsão legal no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – Lei 9.503/97. Tal legislação impôs um marco limitador entre a embriaguez resultante em punição administrativa (multa) e àquela que culminará em sanção penal. Nesse âmbito, Luiz Flávio Gomes (2010, p. 1.101) explica que “[...] embriagado é o motorista que, na condução de veículo automotor, estiver com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, na exata dicção da atual redação do artigo 306do CTB.”
Concernente à questão probatória, desde 2012 são admitidos como meios de prova, além dos exames de alcoolemia e clínico, vídeos, perícias, testemunhas, e outros meios probatórios permitidos em direito, exegese do § 2º do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Em relação ao concurso da embriaguez com o homicídio, tem sido mais frequente nos tribunais brasileiros a aplicação do princípio da consunção, respondendo o condutor embriagado tão somente pelo delito de homicídio culposo perpetrado no trânsito (art. 302 do CTB), face à absorção do crime de perigo (embriaguez ao volante) pelo crime de dano (homicídio de trânsito) (CALLEGARI, 2009b, p. 53-54).
Relevante frisar, também, que com o advento da Lei 11.705/98 (ao trazer nova regulamentação aos dispositivos do CTB) o injusto em questão deixou de ser causa majorante do crime de homicídio culposo de trânsito, tendo em vista a revogação do inciso V do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Com isto, a aludida conduta ficou com pena mais branda, situação que deveras incomoda ainda mais a sociedade, conforme veremos adiante.
No tocante às teorias do dolo eventual, repise-se, a jurisprudência pátria tem adotado a do consentimento ou assunção do risco, não bastando, assim, que o agente conheça (preveja) o risco de dirigir embriagado, mas também, se fazendo necessário que aceite, conforme-se, ou assuma o risco do resultado, elementos subjetivos que devem de alguma forma ser demonstrados (TAVARES, op. Cit., p. 339).
Em suma, a embriaguez ao volante (resultante em homicídio no trânsito), de per si, não tem o condão de ensejar o dolo eventual, visto que, nesses casos, o agente não se embriaga com a finalidade de delinquir, ou seja, não se trata de uma embriaguez preordenada (CAPEZ, 2010, p. 338-342).
3 A IMPOSSIBILIDADE DE FLEXIBILIZAÇÃO DAS CATEGORIAS DA DOUTRINA GERAL DO CRIME
3.1 O DESPREZO PELA DOGMÁTICA PENAL
De início, importante desfazermos a confusão que geralmente paira sobre este assunto, visto que muitos criticam a dogmática jurídica como se fosse sinônimo de “dogma”, de aceitação das regras sem discussão, como se fossem regras absolutas, imutáveis. Para tanto, citamos a lição de Miguel Reale (2001, p. 305):
O emprego do termo "Dogmático Jurídica" tem a sua explicação no seguinte fato: para nós, juristas, o Código Civil ou o Código Penal são posições normativas das quais temos de partir para nossa atividade prática. O civilista não pode ignorar, por exemplo, o art. 1.216 do Código Civil, mas deve tomar essa e outras normas como asserções, a partir das quais seu trabalho se processa [...]”
Em outros termos, não se está a defender uma ciência penal estática, mas sim a observação aos conceitos solidificados que alicerçam o Direito Penal vigente e limitam a técnica da hermenêutica jurídica e o arbítrio dos julgadores. Deve haver parâmetros bem delineados, para não nos perdermos em subjetivismos e para que a dogmática cumpra sua função de oferecer a aplicação de um direito previsível e seguro (MAGARIÑOS, 2000, p. 80).
Quanto à função, deve existir intrínseca relação entre a elaboração legislativa e o pensamento dogmático, para que haja maior segurança jurídica na criação das leis, pois estas últimas são previamente justificadas no âmbito dogmático-penal (MAGARIÑOS, op. Cit., p. 81).
A dogmática jurídico-penal ganha maior relevo quando nos deparamos com a aplicação de um “Direito Penal Emergencial”, mais voltado à defesa do sistema econômico do que ao combate dos problemas sociais gerados, em parte, por este mesmo sistema (MAGARIÑOS, ibid.).
A finalidade essencial da dogmática penal é tornar o direito penal eficiente no sentido de assegurar a paz social, com a proteção de bens jurídicos relevantes, bem como, dar aos agentes delitivos uma resposta penal pautada em critérios de justiça, evitando-se, com isto, qualquer arbitrariedade (YACOBUCCI, 2000, p. 104-105).
Para Jescheck (1981, p. 58), “a dogmática penal, como ponte entre a lei e a prática, serve a uma aplicação do Direito Penal igualitária e em constante renovação, contribuindo assim para um alto grau de justiça.”
No entanto, cuidado! O termo “constante renovação”, utilizado pelo autor ora referido, não pode ser confundido com subjetividade, com a construção de um sistema aberto às arbitrariedades, às distorções do pensamento dogmático-penal. Nessa senda, Hegel (1990, p. 9) nos alerta sobre o perigo da subjetividade. Para ele, o direito e a realidade jurídica decorrem do pensamento, de forma racional e determinada. Já no sentimento é onde se esconde a subjetividade e o caminho para o arbítrio. Na mesma obra, Hegel assevera que o direito é a razão em cada coisa, não permitindo a degeneração do subjetivo em particularismos.
Os limites semânticos da dogmática não podem dar azo ao arbítrio do intérprete, ou seja, permitir que este reformule e flexibilize, a seu bel prazer ou mesmo atendendo a clamores, as categorias da teoria geral do delito (STRECK, 2014).
Vimos, anteriormente, que dolo e culpa não se confundem, não podendo aquele ser o ápice desta, isto é, pretendendo-se punir com maior rigor determinados crimes, deve o legislador prever isto, e não o julgador o fazer por meio de distorções teóricas.
Não é o caso de defender a conduta do agente que dirige embriagado e causa morte no trânsito, mas sim, a aplicação adequada do direito, sem arbítrios, sem desigualdades. Sabemos, mais do que nunca, que, nesses casos, a população clama por uma maior repressão, por uma resposta mais efetiva e eficaz do aparato repressor estatal, sendo a punição a título de culpa considerada branda demais. Entretanto, não se pode dar margem ao expansionismo penal, aplicando o dolo onde existe culpa, por meio do famigerado dolo eventual.
Na prática, tem-se visto, cada vez mais, o emprego do discurso raso da assunção do risco, como forma de colocar o dolo eventual ao lado da culpa, e com total desprezo à dogmática penal sobre a qual tecemos comentários acima. Acerca da “assunção do risco”, discorrem Zaffaroni e Pierangelli (2013, p. 48) que “[…] não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade” [...], o que, teoricamente, se amolda à culpa consciente. Em outros dizeres, o agente pode optar por uma conduta arriscada e com isto ser imprudente, o que representa uma das modalidades do crime culposo.
De acordo com Greco (2009, p. 210-213):
Imagine o exemplo daquele que, durante a comemoração de suas bodas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para a sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia a seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava”.
Importante, repise-se, tomarmos com clareza tais definições, uma vez que se expande no Brasil a aplicação distorcida do dolo eventual como panaceia, sobretudo naqueles casos em que a punição a título de culpa não se mostra satisfatória – é o caso do homicídio de trânsito sobre o qual versamos.
3.2 O CLAMOR SOCIAL E A TENDÊNCIA À EXASPERAÇÃO DA RESPOSTA PENAL
Como já aludido, presenciamos uma forte tendência ao expansionismo penal, impulsionada por diversos fatores, dentre estes a complexidade da vida social e o surgimento de novos bens jurídicos a serem tutelados e, com isto, novos riscos. Neste contexto moderno, surge o que Bauman (2010, p. 74) denomina de “ambiente de insegurança”. Para ele (op. Cit., p. 74-76), os receios são difundidos rapidamente no meio social, fortalecendo a ideia de sociedade de risco ou sociedade de insegurança, fazendo com que o medo “[…] seja explorado política e comercialmente […]” e, assim, “[…] os políticos e os vendedores de bens de consumo acabam transformando este aspecto em um mercado lucrativo.”
Para Navarro (2005, p. 4), a difusão do medo e da insegurança em relação aos delitos, pode ser descrito como:
[...] la percepción que tiene cada ciudadano de sus próprias probabilidades de ser víctima de un delito, aunque también se puede entender como la simple aprensión de sufrir un delito, si atendemos tan solo al aspecto emocional y no a lo juicios racionales de esse ciudadano. De hecho, la carga emotiva suele permanecer, pués, segundo numerosos estúdios empíricos, el miedo al delito no se relaciona com las posibilidades reales de ser víctima, esto es, no responde a causas objetivas y externas.
Juntamente com essa sensação de demasiado receio, intensamente difundida pela mídia, surge na sociedade o que Luiz Flávio Gomes (2012) chama de “sentimento populista e vingativo”, que, segundo ele, “[…] toma conta tanto do mundo ocidental civilizado (países centrais) como dos países periféricos[...]”, e no qual “[…] a dor e o sofrimento daquele que deve (do criminoso devedor) serviria como equivalente ao desprazer causado pela promessa não cumprida (pela violação da norma).”
Não só o sentimento vingativo exsurge, mas também o clamor por medidas prementes, contemplando-se a denominada “cultura da emergência”, gerando a criação de legislações emergenciais e pouco criteriosas (CEPEDA, 2007, p. 31). A isto também se denomina “direito penal simbólico.” (SANTORO FILHO, 2002).
A ideologia da “defesa social” vem sendo amplamente aceita, e se manifesta em ações meramente paliativas por parte do Estado, como a criação de leis em demasia, sem rigor técnico, sem eficiência, mas com a missão de transmitirem uma falsa sensação de tranquilidade, de controle, quando na verdade o que ocorre é a omissão estatal na elaboração de políticas de prevenção ao crime (MENDOZA BUERGO, 2001, p. 32). É neste cenário, de tendência extremista, que, consoante magistério de Díez Ripollés (2007, p. 137), “[...] se considera razonable uma certa flexibilización de los requisitos de la causalidade o de la culpabilidade [...].”
Toda essa deturpação, representada pelo expansionismo penal, acaba por distorcer teorias consagradas pela dogmática penal. Exemplo disso é a “[…] construção do dolo sobre a base do simples conhecimento (teoria do conhecimento, a qual veremos alhures), que lhe permite abarcar campos antes considerados próprios da negligência.” (ZAFFARONI, 2011, p. 14). Tudo isto para dar uma resposta célere à população. Os efeitos disso abordaremos a seguir.
3.3 OS EFEITOS DO RECONHECIMENTO DO DOLO EVENTUAL NO HOMICÍDIO DE TRÂNSITO PERPETRADO POR MOTORISTA ALCOOLIZADO
O delito de homicídio de trânsito na modalidade culposa tem como sanção punitiva privativa de liberdade a detenção de dois a quatro anos, cumulada com a pena restritiva de direitos, qual seja, “a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor” (art. 302, CTB) (NUCCI, 2008, p. 1.111).
Ocorre que, quando interpretado como injusto doloso, o crime de homicídio perpetrado no trânsito passa a encontrar adequação típica no artigo 121 do Código Penal, recebendo, portanto, o tratamento jurídico dispensado ao delito de homicídio simples doloso, com penas de seis a vinte anos de reclusão.
Neste novo contexto, dois efeitos passam a representar imenso prejuízo ao agente delitivo, quais sejam: a possibilidade de pronúncia ao Tribunal do Júri e de ergástulo preventivo, institutos respectivamente elencados no artigo 5º, XXXVIII, alínea d, da Constituição Federal, e artigo 313 do Código de Processo Penal (TASSE, 2008, p. 33).
No mais, é reconhecido por parte da jurisprudência que a aplicação do dolo eventual, salvo exceções, fere o princípio da especialidade, haja vista que a legislação de trânsito (especial) prevalece sobre o diploma penal (geral) (RSE 20070111242232-DF).
Dessa forma, outra consequência que se pode apontar é o desprezo a um princípio consagrado no Direito, que é o princípio da especialidade, pelo qual a norma especial deve prevalecer sobre a geral. Utilizando de analogia, Fernando Capez (op. Cit., 2010) diferencia a norma especial da geral, afirmando que “[...] é como se tivéssemos duas caixas praticamente iguais, em que uma se diferenciasse da outra em razão de um laço, uma fita ou qualquer outro detalhe que a tornasse especial. Entre uma e outra, o fato se enquadra naquela que tem o algo a mais.”
Nota-se, portanto, que com o reconhecimento do dolo eventual nos homicídios de trânsito, passa-se a uma pena de dois a quatro anos de detenção a uma pena de reclusão de seis a vinte anos, equiparando-se o causador àquele que age com dolo direto, o que deveras, ao nosso sentir, soa desproporcional.
4 MEDIDAS LEGISLATIVAS ADOTADAS
4.1 A LEI N. 12.971/14 E A TENTATIVA DE QUALIFICAÇÃO DA PENA DO HOMICÍDIO DE TRÂNSITO
Com o advento da legislação supracitada algumas modificações foram feitas no sentido de agravar a punição aos condutores de veículos automotores que sob influência de álcool causarem mortes no trânsito (DE BEM, 2014). Dentre tais modificações, a mais significativa do ponto de vista do presente trabalho foi a inserção do parágrafo segundo ao artigo 302 do CTB, com a seguinte redação:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos (grifo nosso), e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
§ 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:
Penas - reclusão, de dois a quatro anos (grifo nosso), e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Com isto, criou-se uma circunstância qualificadora para o delito de homicídio culposo na direção de veículo automotor, cuja incidência se dará quando tal fato decorrer da embriaguez do motorista. Como se percebe na leitura do dispositivo acima, não houve aumento na quantidade da pena, mas sim uma alteração de sua qualidade, isto é, de detenção para reclusão.
Disso se depreende que, com a nova redação a regra geral de que o homicídio de trânsito é culposo foi reforçada pelo legislador, tendo como exceção o dolo eventual (SILVA, 2014, p. 16).
Não obstante, por mais que a intenção do legislador ao elaborar a novel legislação seja clara no sentido de dar melhor adequação típica ao delito perpetrado nas condições em testilha, não faltam críticas por parte da doutrina. A principal delas, diz respeito à pena cominada na qualificadora (§ 2º), que foi mantida na mesma quantidade prevista no caput do artigo 302 do CTB, alterando-se tão somente a qualidade, conforme já mencionado. De acordo com Greco (2014), tal modificação “[...] na prática não fará qualquer diferença significativa.” Segundo ele (op. Cit.):
Assim, o que seria para ser um homicídio culposo qualificado, em virtude do maior grau de reprovação do comportamento praticado pelo agente, nas situações previstas pelo § 2º, somente teve o condão de ratificar as hipóteses como sendo as de um crime culposo, com as mesmas penas para ele anteriormente previstas, afastando-se, consequentemente, o raciocínio correspondente ao delito de homicídio com dolo eventual. […] E mais. Todos aqueles que foram condenados em situações similares, onde a Justiça, no afã de impor-lhes penalidades mais severas, entendeu a hipótese como sendo a de um homicídio praticado com dolo eventual, utilizando-se, equivocadamente, da expressão assumiu o risco de produzir o resultado; terão direito à revisão criminal, adaptando suas condenações às disposições contidas no mencionado § 2º.
Em que pese a problemática dos efeitos (pena), a questão do concurso entre os crimes de embriaguez ao volante e homicídio culposo no trânsito, assim como a questão da culpa consciente e do dolo eventual, parecem melhor esclarecidas nesta novel legislação. O que falta, ainda, é a previsão de uma pena mais severa para o condutor embriagado, sem que para isto ocorram distorções hermenêuticas dos elementos construídos pela dogmática penal (SILVA, op. Cit., p. 16).
Apesar da tentativa de melhora, o aludido § 2 º foi revogado recentemente pelo artigo 6 º da Lei Nº 13.281/16, ainda em período de vacância, conforme delineado no art. 7 º, inciso II, da mesma legislação. Com isto, as discussões neste âmbito retornam ainda mais intensas, visto que a tentativa de qualificar o homicídio de trânsito restou inexitosa, possivelmente pela má elaboração legislativa.
4.2 O PROJETO DE LEI N. 236/12 E A FIGURA DA CULPA TEMERÁRIA: MAIS UMA PROMESSA
A inserção da culpa gravíssima ou culpa temerária na legislação nacional é uma das propostas apresentadas pela comissão de juristas constituída pelo Senado visando à reforma do Código Penal. A referida comissão foi formada no mês de outubro do ano de 2011, tendo como justificação, principalmente:
Em contraste com uma dinâmica social cada dia mais veloz, globalizada e tecnológica, nosso atual Código Penal é oriundo do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com revisão de sua parte geral pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, o que revela um notável grau de atraso e falta de sintonia com as exigências contemporâneas de segurança e proteção da população. Com efeito, se de um lado o Direito comumente anda a reboque da evolução social, de outro o legislador deve sempre estar atento para a necessidade de atualização dos preceitos normativos, sob pena de se gerar injustiça e falta de efetividade das normas, o que se torna dramático na seara penal, que trata da proteção dos maiores bens jurídicos do ser humano: a vida e a liberdade […] (requerimento do Senado Nº 756 de 2011)
Acerca da questão do homicídio culposo praticado no trânsito, a comissão apresentou, no anteprojeto de reforma do Código Penal, o conceito de culpa temerária, nos termos seguintes:
[…] se todo homicídio culposo nasce do descuido, existem situações nas quais o desvalor deste descuido é acendrado, indicativo de uma suscetibilidade à produção de tão terrível efeito. Se, conforme a própria Comissão propõe, não há dolo eventual sem assunção indiferente do risco de produzir a morte, cuidava-se de criar figura intermediária, lindeira tanto da culpa comum, quanto da intenção indireta. Daí a culpa gravíssima, capaz de oferecer sanção penal mais intensa para os casos nos quais, sem querer e sem assumir o risco, o resultado fatal advém de excepcional temeridade.
Consoante o magistério de Selma Pereira de Santana (2005, p. 68), para que se aplique a culpa temerária ou gravíssima, “[…] se tem de alcançar, ainda, a prova autônoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal.”
Claus Roxin (1997, p. 1.025) também reconhece a existência da temeridade, ao prelecionar que “si por consiguiente se puede establecer incluso entre el dolo y la imprudencia una relación gradual, está claro que también dentro de la imprudencia se pueden distinguir formas más fuertes y más débiles.” O mesmo autor entende ser evidente que se trata de uma “imprudencia substancialmente elevada” e deixa a cargo da jurisprudência a tarefa de determinar quando a culpa pode ser considerada grave (ibid.). Preleciona que:
Ello puede suceder cuando el sujeto, por grave descuido, no advierte que realiza el tipo, pero también quando el mismo, con una frívola falta de consideración, no tiene en cuenta la possibilidad claramente advertida de realización del tipo. Sucede también quando el sujeto infringe un deber que se há de tomar especialmente en serio (ibid.).
Para Santana (op. Cit., p. 68), nosso direito pátrio ainda trata do assunto com desinteresse, em desarmonia com países como Portugal, Alemanha, Itália e Espanha, que inclusive inseriram a culpa gravíssima em seus diplomas penais.
Ao que nos parece, a possibilidade de agravamento das penas por meio do reconhecimento da culpa temerária, além de ser uma medida mais ajustada à dogmática penal, é solução menos gravosa e mais proporcional que o reconhecimento de dolo eventual, visto que este último implica nos efeitos anteriormente destacados (aplicação das sanções e procedimentos atinentes ao homicídio doloso).
Demais disso, não significa elidir definitivamente a possibilidade do injusto doloso de trânsito, pois no caso concreto, quando houver demonstrativos objetivos da existência do dolo eventual, este deverá ser reconhecido. Luiz Flávio Gomes, por exemplo, sugere uma pena de quatro a oito anos de reclusão se demonstrada a embriaguez do condutor, ou a participação deste nos chamados “rachas” (competições automobilísticas irregulares) (GOMES, 2014).
Vejamos as alterações sugeridas pela comissão de juristas implantada pelo Senado (Projeto de Lei Nº 236/2012):
Art. 18/CP – Diz-se o crime:
I– Doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiu o risco de realizá-lo, consentindo ou aceitando de modo indiferente o resultado;
II– Culposo, quando o agente, em razão da inobservância dos deveres de cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizou o fato típico;
Culpa gravíssima:
Parágrafo único. Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional imprudência. (grifos nossos)
Note-se, pois, que a redação proposta esclarece que o dolo eventual ocorre quando o agente assume o risco de realizar o fato típico, com o beneplácito ou com a indiferença quanto ao resultado. O anteprojeto também insere a culpa temerária no artigo 121 do Código Penal, com a seguinte redação:
Art. 121/CP – Matar alguém:
(…)
Culpa gravíssima:
§ 5º Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado morte, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional temeridade, a pena será de quatro a oito anos de prisão.
§ 6º Inclui-se entre as hipóteses do parágrafo anterior a causação da morte na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, ou mediante participação em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente.
Dessa forma, se o agente não quis o resultado (morte), nem assumiu o risco de produzi-lo, mas por outro lado atuou com excepcional temeridade, sofrerá pena de prisão de quatro a oito anos.
Além disso, o parágrafo sexto apresenta como hipóteses de culpa gravíssima a causação de morte na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou drogas, ou em participação em “racha”.
Impende salientar, ainda, que a culpa temerária, conforme anteprojeto, não terá aplicação adstrita aos casos do artigo 121 do CP, mas também aos casos em que houver temeridade excessiva, como consta na própria redação, que “a culpa temerária pode ser aplicada noutras situações nas quais se vai muito além do ordinário, em matéria de descuido”.
A inclusão da culpa gravíssima em nosso ordenamento jurídico-penal talvez seja o caminho para mantermos “uma ideia de Direito Penal como um conjunto de normas motivadoras e não um instrumento de imputação aleatória de resultados.” (BOTTINI, 2011) Em prol da segurança jurídica “não devemos abrir mão dos aspectos subjetivos, que embora sutis e de difícil revelação, são a garantia de uma dogmática mais humana.” (ibid.)
Jorge de Figueiredo Dias (2007, P. 376) também entende que a temeridade funciona como meio termo entre a culpa (manifestada por negligência, imprudência e/ou imperícia) e o dolo, ratificando a premissa de Roxin (mencionada alhures).
5 A JURISPRUDÊNCIA MAIS RECENTE SOBRE O TEMA
Colacionaremos alguns casos mais recentes, envolvendo o tema em comento, e teceremos alguns comentários sobre tais decisões, tudo à luz do que foi exposto neste artigo. Iniciamos, destarte, por um caso julgado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, in verbis:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PROCEDIMENTO DO JÚRI. DOLO EVENTUAL E HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. DECISÃO DE PRONÚNCIA PARCIALMENTE MANTIDA. TENTATIVAS DE HOMICÍDIO DESCLASSIFICADAS. 1. DOLO EVENTUAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA. Não há impropriedade jurídica ao imputar-se o dolo eventual ao agente que, supostamente, excede a imprudência admissível ao agir do homem médio na condução de veículos automotores e causa danos à integridade física de terceiros. Excepcionalidades concretas que, se acolhidas pelos populares como verídicas, autorizam o deslocamento das figuras típicas de crimes culposos, previstos no Código de Trânsito, para dolosos, previstos no Código Penal [...].[2]
Com a devida vênia, o que se percebe, neste primeiro julgado, é que o relator sequer possui elementos suficientes que demonstrem o dolo eventual perante a teoria do consentimento ou da assunção, afirmando “suposta excedência à imprudência admissível” que, se aferível pelo corpo de jurados, autorizariam o reconhecimento de injusto tipicamente culposo como se doloso fosse. Ora, primeiro há de se reparar que não existe “imprudência admissível”, pois toda imprudência incidirá como culpa e culminará nas penalidades desta. Em segundo lugar, malgrado o princípio da soberania do veredicto do Júri, não cabe aos jurados tais contorcionismos teóricos, isto é, simplesmente pelo fato do júri popular aceitar como dolosa a conduta não significa que assim seja de acordo com todos os preceitos que aqui explanamos. Em verdade, o agente delitivo nem deveria estar sendo julgado pelo Conselho de Sentença do Júri Popular.
Dolo eventual é mais do que mera excedência à imprudência, é mais do que assumir o risco, como destaca Luís Regis Prado (2014, p. 406), para o qual no dolo eventual o agente deve prestar anuência, consentir, concordar com a efetivação do resultado, preferindo o risco de sua produção do que a renúncia à ação.
Na praxe forense muitos julgadores deixam de lado a verificação teórica aprofundada, fazendo uma análise perfunctória que não examina todos os fundamentos nos quais se sustentam suas decisões (BUSATO, 2014, p. 61). Percebe-se uma restrição ao chamado fato de “assumir o risco”, olvidando-se os elementos volitivos, repetindo-se a famosa e não satisfatória “fórmula de Frank”[3] Interessante lembrar que Tavares (op. Cit., p. 344-345) critica a fórmula ora mencionada, afirmando que a mesma decorre de critérios subjetivos (internos do agente), que não podem ser avaliados objetivamente pelo direito penal.
Vejamos outro julgado:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TENTATIVAS DE HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. PRONÚNCIA. IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA. Comprovada a materialidade, bem como presentes suficientes indícios da autoria do fato, imperativa a pronúncia do acusado. Eventual dúvida acerca do seu agir deverá ser dirimida pelo Conselho de Sentença, uma vez que, nesta fase do judicium accusationis, não se faz necessária prova inequívoca da autoria, mas mero juízo de admissibilidade da acusação. O fato de estar dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, atingindo o veículo em que se encontravam as vítimas, que trafegavam pela via preferencial, aliado à dúvida acerca de ter ou não o réu assumido o risco de produzir o resultado, constituem elementos suficientes para encaminhar o acusado a julgamento perante o Conselho de Sentença, constitucionalmente eleito para a apreciação dos crimes dolosos contra a vida. Desclassificação para outro delito diverso dos dolosos contra a vida. Inviável neste momento processual, na medida em que não restou demonstrada estreme de dúvidas a ausência do animus necandi no agir do réu. Recurso improvido, por maioria.[4]
In casu, observamos novamente a carência de análise mais detalhada dos institutos da teoria geral do delito. O julgador, no sobredito recurso, além de manter a pronúncia do réu, ou seja, o juízo de admissibilidade para julgamento pelo Júri, comete também o equívoco de aduzir que não foi demonstrada a ausência de ânimus necandi. Ora, o aludido termo latino significa “intenção de matar”, isto é, consciência e vontade de ceifar a vida de outrem, o que sequer ocorre no próprio dolo eventual, tampouco nos injustos culposos.
Disso se extrai a falta de critérios analíticos e a repetição de frases já saturadas em nosso sistema jurisprudencial, como verdadeiros “padrões” de julgamento, o que nos leva a crer na constatação extraída do artigo de Lênio Streck (2012) de que “[…] os juízes primeiro decidem, depois buscam o fundamento[...]”
A polêmica do dolo eventual chegou novamente à Corte Maior. No dia 21 de julho do ano em curso, em julgamento acerca do Habeas Corpus Nº 121.624, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria dos votos, pela manutenção da pronúncia do réu ao Tribunal do Júri por crime de homicídio de trânsito com embriaguez e excesso de velocidade.
Vejamos o resumo publicado no sítio de internet do Excelso Pretório[5]:
1ª Turma nega desclassificação de homicídio doloso para culposo em caso de embriaguez ao volante
Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão nesta terça-feira (21), indeferiu o Habeas Corpus (HC) 121654, impetrado por G. H. O. B. Contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que manteve seu julgamento pelo Tribunal do Júri de Belo Horizonte (MG) em decorrência de acidente de trânsito com morte. Denunciado por homicídio simples (artigo 121 do Código Penal), ele pretendia desclassificar a acusação para homicídio culposo na direção de veículo automotor (artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro). De acordo com os autos, o acusado foi pronunciado (decisão que submete o réu a júri popular) por homicídio pelo Juízo do II Tribunal do Júri de Belo Horizonte (MG) por ter provocado acidente de trânsito com vítima fatal quando, “em estado de embriaguez”, conduzia seu veículo pela contramão, com excesso de velocidade, na avenida Raja Gabaglia. Em julgamento de recurso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) cassou a decisão e determinou a remessa do processo ao juízo comum de primeiro grau por entender que deveria ser aplicada ao caso a lei especial – o CTB. O STJ, acolhendo recurso do Ministério Público estadual, concluiu pela competência do Tribunal do Júri, sob o argumento de que a pronúncia representou apenas juízo de admissibilidade da acusação, limitando-se ao exame da ocorrência do fato delituoso e dos respectivos indícios de autoria. Segundo a decisão do STJ, a indicação pelo juízo de crime doloso contra a vida, circunstanciado pela embriaguez ao volante, pela condução do veículo na contramão, somados ao excesso de velocidade, assentam a competência do júri popular para examinar, com base em fatos e provas, se o acusado agiu com dolo eventual ou culpa consciente. O relator do processo, ministro Marco Aurélio, que havia concedido liminar para suspender o acórdão do STJ até o julgamento final do habeas corpus, votou pela concessão do pedido. Em seu entendimento, como o CTB prevê o homicídio culposo na direção de veículo automotor e, segundo o TJ-MG, não ficou configurado o dolo eventual, o caso deveria ser julgado pela Justiça comum de primeiro grau. Ele foi acompanhado pelo ministro Luiz Fux. A divergência foi aberta pelo ministro Edson Fachin, que entendeu não ser o caso de desclassificação da pronúncia, pois a embriaguez ao volante, a velocidade excessiva e a condução do veículo na contramão, no momento da colisão com o outro veículo, são indicativos de crime doloso contra a vida, o que demanda exame pelo conselho de jurados. O ministro salientou que a manutenção da competência do Tribunal do Júri não representa juízo de valor sobre o caso, mas apenas que deve ser do júri popular a decisão sobre se houve dolo ou culpa. Votaram no mesmo sentido os ministros Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, formando assim a corrente majoritária pelo indeferimento do HC e a revogação da liminar (grifos nossos).
Percebe-se, novamente, a velha e corriqueira fórmula “embriaguez + excesso de velocidade = dolo eventual.”, o que, a bem da verdade, pode preencher o elemento cognitivo (o agente prevê o resultado), conforme vimos anteriormente, mas não satisfaz o elemento volitivo (aceitação do resultado), sob o prisma da teoria adotada pelo diploma penal – teoria do consentimento.
Gize-se, ademais, não ser a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal se manifesta neste sentido, o que podemos confirmar no julgado seguinte:
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO. REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I - O órgão constitucionalmente competente para julgar os crimes contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus, decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte está assentada no sentido de que o pleito de desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do habeas corpus por demandar aprofundado exame do conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III – Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa, qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na condução de veículo sob a influência de álcool somente poderia ser considerado doloso se comprovado que a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia, e, ainda, por estar sob influência do álcool (grifo nosso), circunstância apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Habeas Corpus denegado. (grifou-se).[6]
Neste último, cita-se a decisão do Tribunal do Júri pela condenação do réu por prática de homicídio doloso, cujo dolo eventual foi presumido pelo mero fato do motorista/agente encontrar-se ébrio. Não é raro encontrarmos decisões como esta nos tribunais do país, fazendo-se a presunção do dolo pelo fato do agente estar sob influência de álcool, como se essa embriaguez fosse preordenada. A injustiça, nesses casos, é flagrante, assim como a insegurança jurídica que é gerada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, constatamos que a distinção entre dolo eventual e culpa consciente segue sendo uma tarefa que representa imensa dificuldade no cenário jurídico-penal, e que, no crime de homicídio na condução de veículo automotor tem reflexos gravosos, pois pode culminar no julgamento do agente pelo Tribunal do Júri, com possível condenação a título de homicídio doloso e, consequentemente, com sanções desproporcionais do ponto de vista dogmático-penal.
Vimos que o reconhecimento do dolo eventual, no mais das vezes, decorre de interpretações equivocadas, ora por desconhecimento técnico, ora por pressão social e tendência à expansão do Direito Penal, passando este a ser utilizado como instrumento de controle, e não mais como um conjunto de regras de limitação da atuação punitiva do Estado. E o pior é que este clamor público por segurança decorre da difusão exacerbada de notícias criminais, que se prestam a alimentar o mercado midiático às custas da sensação de medo gerada na população.
Dessa forma, garantias e regras consagradas pela dogmática penal passam a ser inobservadas, desrespeitadas, buscando-se formas mais severas de combate à criminalidade. Com isto, interpretações distorcidas, como presumir o dolo no homicídio de trânsito pelo fato do condutor estar embriagado ou pelo excesso de velocidade, têm se tornado situações comuns nos tribunais nacionais.
Como já exposto, a mídia, a difusão do sentimento de medo e o populismo vingativo, colaboram com esta tendência expansionista e contrária à essência do Direito Penal, pois acredita-se, popularmente, que somente com punições severas e aplicação do Direito Penal Máximo será possível inibir a criminalidade.
Foi possível constatar, também, que a Lei Nº 12.971/14, embora não tenha apresentado considerável inovação no sentido de agravar a pena, criou uma circunstância qualificadora para o delito de homicídio de trânsito quando perpetrado por condutor “sob influência de álcool ou outra substância psicoativa.” (art. 302, § 2º, do CTB) Desse modo, buscou-se reforçar a proteção ao conceito doutrinário de que os crimes de trânsito, em regra, são culposos, e a exceção (dolo eventual) deve ser objetivamente demonstrada.
Todavia, muito recentemente, o artigo 6º da Lei Nº 13.281/16 veio revogar o § 2º suprarreferido, o que produzirá seus efeitos assim que terminado o período de vacância da novel legislação (publicada em 05/05/2016, com vacatio legisde 180 dias, conforme art. 7º, II).
Verificamos, além disso, que o anteprojeto do novo Código Penal traz a figura da culpa temerária ou gravíssima, que há muito vem sendo estudada pela doutrina penal estrangeira, inclusive inserida em legislações de alguns países, e que representa um meio termo entre a culpa e o dolo. Esta talvez seja a solução mais viável para que se agrave a sanção daquele que dirige embriagado e causa a morte de outrem, sem que se despreze as garantias penais e as próprias regras dogmáticas.
Concluímos, com efeito, que não devem ser desrespeitadas as regras básicas do ordenamento jurídico, sobretudo no que tange à imputação delitiva, impedindo com isto uma situação de insegurança jurídica no cenário do Direito Penal brasileiro, com algumas decisões injustas, até mesmo teratológicas.