SINOPSE
A democracia é o regime através do qual o próprio povo governa; tal qual o ideal grego antigo, o governo do povo, para o povo e pelo povo. Com a evolução dos povos e o aumento do colégio eleitoral surgiu a necessidade da democracia representativa, isto é, os cidadãos elegem representantes que governarão consoante a vontade popular, como se o próprio povo estivesse governando. Entretanto, em que pese a inserção do regime como princípio fundamental na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 1º), em vista dos problemas estruturais suportados por nossa sociedade atual, não é exatamente assim que funciona o Estado Brasileiro. Na realidade, o que deveria ser, consoante o modelo democrático, a representação política, vem se delineando em representação de interesses.
Palavras-chave: democracia, política, educação, cultura, governo, povo, poder, realidade.
INTRODUÇÃO
Com o presente estudo pretendemos abordar a questão da democracia na realidade atual do Estado Brasileiro.
Com efeito, pretendemos propor ao leitor uma reflexão acerca da efetividade da democracia brasileira, contrapondo-a à nossa realidade política, social, cultural, educacional, estrutural etc., bem como a abordagem da formação da consciência política dos cidadãos e como isso influencia na escolha dos governantes e na realização de uma democracia real.
A democracia é um sistema de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com o povo, seja direta ou indiretamente[1].
O embrião do modelo democrático de hoje ocorreu na Grécia, em Atenas, com Péricles, líder do partido democrático por trinta anos e responsável pela introdução da maioria das instituições democráticas, consagrando-se como a maior personalidade política do século V a. C.[2]
Portanto, nossa pesquisa possui por cerne demonstrar se a democracia, tal qual esculpida na Constituição da República Federativa do Brasil, é a que de fato é aplicada, atendendo aos anseios do que a sociedade espera de um Estado Democrático e, se não o é, por que motivos essa realidade não é reflexo do regime de governo adotado.
Justifica-se o presente estudo, pela tentativa de despertar a reflexão do leitor e, sendo voltado para a sociedade brasileira, procuramos ampliar o esclarecimento desta acerca do sistema democrático vigente e a realidade do Brasil, a fim de aumentar a consciência política.
DESENVOLVIMENTO
O regime democrático consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil possui por pilares, a efetivação da vontade das maiorias, a proteção dos direitos individuais e fundamentais e a proteção também das minorias.
O nosso regime se coaduna com a forma de Estado adotada, isto é, República (o Estado é uma coisa pública) e Democracia (governo do povo) – o povo governa a coisa pública.
Entre os direitos humanos fundamentais, que qualquer governo democrático deve proteger, estão a liberdade de expressão, a liberdade de religião e de crença, julgamento justo e igual proteção legal, liberdade de se organizar, denunciar, discordar e participar plenamente na vida pública da sua sociedade.
Este é o modelo que impera na Constituição Brasileira, como se depreende do artigo 1º, parágrafo único, que diz: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
No entanto, não é o que se verifica na realidade, pois, em que pese tratar-se de uma democracia representativa, isto é, o Estado é governado por representantes eleitos pelo povo, entendemos que a vontade do povo, por vezes, pode estar maculada por patologias sociais.
Fatores como a baixa escolaridade, a escassez do acesso à informação de qualidade, a baixa renda de uma parcela significativa da sociedade que tolhe os indivíduos de adquirirem literatura e cultura, e até mesmo a ausência de disciplinas que proporcionem uma consciência política na formação escolar básica do indivíduo, não permitem que o voto, instrumento do exercício da cidadania para efetivar a democracia, seja direcionado para aquele candidato que melhor atenderia aos anseios sociais.
Por vezes, como fruto da observação e acompanhamento da política nacional, chegamos a concluir que não é de interesse dos governantes e de todos aqueles que se dedicam à vida política, alternando-se na candidatura e exercício de cargos políticos, que se invista numa educação de base que objetive construir e desenvolver a consciência política do cidadão. Isto porque, estando ciente aquele do que é, ou pelo menos do que deveria ser um regime democrático, não exercitaria sua cidadania votando nos candidatos que nos são apresentados.
A sociedade, em sua parcela considerável, desprovida de informação e formação social e política, investirá seu voto naquele candidato que durante a campanha lhe promete emprego, distribui cesta básica e apertos de mão.
O cidadão, membro de uma sociedade sem consciência política, se renderá então aquele que lhe proporcionou um benefício imediato, ficando, destarte, descaracterizado o escopo da democracia consagrada na nossa Constituição.
Parece nos que ao contrário do que propõe a democracia (governo do povo), nós experimentamos, em verdade, a oligarquia[3], pois a nossa opção de candidatos não raro é formada pelo mesmo leque de políticos. Os nomes são os mesmos. Variam apenas os cargos políticos a que se candidatam. E o resultado disto já sabemos: ainda que por vezes com a imagem pública maculada por escândalos anteriores, serão eleitos.
A solução que vislumbramos para que o regime democrático seja de fato implementado é a formação e desenvolvimento da consciência política de nossa sociedade, evidenciando que se deve eleger, não aquele candidato que lhe promove um benefício imediato, mas aquele que se mostrar mais adequado num universo de requisitos necessários para o exercício da governança em nome de todos.
A questão que surge é ‘se o político não é o espelho do povo eleitor?’ (FALCÃO, 2004, p. 45)
Se o eleitorado não é exigente nas suas escolhas, permitindo-se trocar seu voto pela obtenção de uma vantagem ou benefício (ou, por vezes, por mera promessa destas), o político se sente à vontade para agir consoante seu planejamento e interesses pessoais. Não há cobrança e fiscalização por parte do eleitorado em relação aqueles que colocaram no poder.
“Não existe país com governo corrupto e população honesta e vice-versa”. Está faltando, além da crítica à falta de ética em Brasília e das grandes empreiteiras, que nós consigamos pensar na microfísica do poder, ou seja, na falta de ética na escola, nas famílias e nas empresas. O atual momento político vivido pelo Brasil é a oportunidade de se exercitar a postura ética tão cobrada de governos e empresas. (Leandro Karnal, professor e historiador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Furar a fila, estacionar na vaga de idoso ou portador de necessidades especiais sem sê-lo, não devolver troco dado a maior, são exemplos de condutas cotidianas que espelham a nossa sociedade. Há sempre alguém querendo levar vantagem sobre outro. Essa cultura precisa ser afastada. É necessário que as pessoas entendam que devem agir com ética e cobrem, legitimamente, a mesma postura dos governantes.
Do contrário, o político eleito, então governante, sente-se livre, desobrigado de perseguir os interesses da nação, apenas sendo limitado pelos imperativos legais, mas não os morais.
Como muito bem assevera Joaquim Falcão (Ibidem, p. 45), “não se nasce democrata de carteirinha”. Ser democrata é tarefa de socialização política, de aculturação. Infelizmente, disciplinas sobre cidadania e democracia não integram os currículos escolares. Em nossas escolas não se ensina, como em outros países, a democracia, o governo, a responsabilidade do eleitor. Vimos sim, no cenário atual a aprovação automática, a suspensão das aulas nas escolas próximas às comunidades em guerra e a desvalorização do educador.
Nesse ponto, vale observar o antagonismo existente entre a obrigatoriedade do voto e a apatia política do eleitor brasileiro.[4]
Infelizmente, diante da nossa realidade, a democracia representativa reduziu a participação do eleitorado apenas a “colocar o voto na urna”. O que percebemos é o aumento do número daqueles que votam por interesses pessoais e a diminuição do voto de quem realmente possui uma opinião política.
Existem dois aspectos cruciais para tanto: além da carência cultural democrática, acesso à informação e, por conseguinte, ignorância, já comentados alhures, há também a obrigatoriedade do voto como forma de desincumbência de um dever cívico. Desobrigado, o eleitor não se sente mais responsável pelo resultado do eleito quando no poder (que por sua vez não cumpre o que foi prometido na campanha, repise-se, por falta de fiscalização e cobrança do eleitorado).
Ao contrário, o voto não poderia ser um dever sancionável, mas um direito deferido constitucionalmente aquele que queira verdadeiramente exercer sua cidadania (art. 14, parágrafo 1º, da Constituição de República Federativa do Brasil)[5] e que desta forma escolherá conscientemente seus governantes.
Por outro lado, se nenhum dos candidatos que discursam diariamente na televisão dos brasileiros no período que antecede as eleições atende aos anseios deste ou daquele eleitor, não pode ser ele obrigado a depositar seu voto na urna, ainda que branco ou nulo, não estará ele exercendo sua cidadania, tampouco cumprindo um dever cívico e, pior ainda, estará contribuindo para uma escolha desastrosa.
É necessário recuperar a dignidade política, e já que é difícil começar pelos nossos políticos que já se acomodaram no poder, pode-se começar pela sociedade civil, pelo eleitorado, tornando-o consciente. Entretanto, o que parece uma solução plausível e fácil num primeiro momento, esbarra na seguinte indagação: mas quem pode fazer isso (a conscientização do eleitorado) se não é este o interesse do nosso corpo de políticos acomodados? O prestigiado autor diversas vezes citado neste artigo por sua propriedade no tema, Joaquim Falcão (Ibidem, p. 63), defende a importância do Terceiro Setor nesse sentido, assim entendido o conjunto de iniciativas da sociedade civil (aí incluídas a ação social das empresas, o trabalho voluntário, as fundações, as ONGs e demais organizações sociais), voltadas à produção de bens públicos, como por exemplo, a conscientização para os direitos da cidadania, a prevenção de doenças, artes, cultura e meio ambiente. Assim, no caso sob análise, que é o que nos interessa, o Terceiro Setor possui imensa utilidade, que é a consolidação e expansão da cidadania democrática (Ibidem, p. 51).
CONCLUSÃO
A democracia atual está intimamente ligada ao mercado político. São acordos bilaterais segundo os quais a prestação dos eleitores é o voto, e dos eleitos, uma vantagem ou a isenção de uma desvantagem (BOBBIO, 1994, p. 156).
Enquanto o eleitor não se sentir responsável pelo seu voto, isto é, pela conduta política daquele que colocou no poder, não se consolida plenamente a democracia, tal qual esculpida na Carta Magna.
Desta forma, o aculturamento e consciência democrática e de cidadania deve ser desenvolvida e trabalhada no eleitorado, para que assim seja restaurada a relação representante-representado, político-eleitor, verdadeiros pilares da nossa democracia representativa. O fato de um Estado ser formalmente democrático (por ser este o regime consagrado na sua Constituição), não o transforma num Estado de cidadãos participantes.
Enfim, o conteúdo mínimo do Estado Democrático não encolheu (efetivação da vontade das maiorias, proteção dos direitos individuais e fundamentais e a proteção também das minorias, o pluripartidarismo etc.), todavia, a realidade democrática atual aponta para a falta de realização e efetivação desses pilares, consubstanciada na ausência da consciência democrática e falta de responsabilidade política dos cidadãos.
Portanto, o que vislumbramos como uma possível solução, é a busca pela postura ética e desenvolvimento da consciência política e responsabilidade do eleitorado em fiscalizar aquele a quem outorga poderes, num ato não obrigatório, mas facultativo do exercício da cidadania consciente e responsável – o voto.
[1] A democracia direta, assim entendida aquela que proporciona a participação direta do povo nas decisões do poder, tornou-se inviável pela amplitude do colégio eleitoral no mundo atual (DALLARI, 1998, p. 153); por outro lado, na democracia representativa o povo expressa sua vontade através da eleição de representantes que tomam decisões em nome daqueles que os elegeram, como ocorre no nosso sistema.
[2] Péricles é referenciado freqüentemente como o fundador da democracia em Atenas. Entretanto, os estudos críticos recentes moldaram a dúvida sobre isto e descreveram a formação da democracia como um processo lento.
[3] Oligarquia é o governo de poucos, do mesmo partido ou classe. Enfim, pessoas que defendem os mesmos interesses e detêm o poder voltando-o para a realização daqueles (interesses).
[4] Norberto Bobbio (1994, p. 45), utiliza a expressão “apatia política” para explicar o fenômeno que vem acontecendo na Itália, país de democracia consolidada e voto facultativo, mas que, a cada eleição, registra menor número de eleitores que prestam sua participação na vida política do país. O autor prossegue afirmando que “são pessoas desinteressadas daquilo que acontece no palácio”, isto é, com as decisões políticas tomadas.
[5] O ato de não votar é reprovável do ponto de vista da participação cívica, entretanto, não deixa de exprimir uma opção política do eleitor na medida que não formou convicção e certeza acerca daquele candidato que quer eleger para representá-lo. O voto obrigatório apenas faz alcançar um grande número de votos, mas compromete a qualidade destes. Nos países democráticos mais desenvolvidos como, por exemplo, Portugal, Noruega, Suíça e Estados Unidos, o voto é considerado um direito e não uma obrigação, o que em nada vem comprometendo a democracia destes países. A obrigatoriedade do voto, a nosso ver, não colabora com a democracia, mas é fonte de um voto irresponsável, irrefletido e oportunista. Devemos ter sempre em mente que a democracia só é realizável com a liberdade de escolha, e forçar uma escolha inconsciente não concebemos ser o melhor caminho para consolidar na prática a forma democrática consagrada na Constituição. Por outro lado, a obrigatoriedade do voto colabora para a prática de atos eleitorais reprováveis como o abuso de poder econômico dos candidatos, pois, o eleitor que não possui candidato se torna muito mais vulnerável às influências daqueles. A escolha compulsória, no nosso sistema, é contraditória e põe por terra o direito de liberdade, pois, se uma escolha é obrigatória, deixa de ser livre e torna-se maculada pela ausência de reflexão e consciência política, sem o que a verdadeira democracia não se realiza.