Autor: Ítalo da C. Braga Santos[1]
Edgard da Costa Freitas Neto[2]
RESUMO:
Tramita no Senado Federal, em fase final, o projeto do novo Código Civil que implementa no ordenamento jurídico pátrio o incidente de resolução de demandas repetitivas. O incidente busca resolver os conflitos de massa padronizando as decisões judiciais. No presente trabalho foi abordado como funciona o modelo alemão do qual os juristas brasileiros se inspiraram e como ele está disposto no projeto apresentado pelo Senado Federal, e alterado pela Câmara dos Deputados. Será feita uma análise das imperfeições do modelo brasileiro, bem como será abordada a possível redução principiológica do texto constitucional. Por fim, será indicadas propostas para compatibilização do incidente com o texto constitucional.
Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Decisão-modelo. Efetividade Processual.
ABSTRACT:
Pending in the Senate, in its final phase, the project of the new Civil Procedures Code will implement model cases proceedings in brazilian law. The proceeding aims to resolve mass conflitcts with standardizing judgments. In the present paper we show how does work the german system in which brazilian jurists looked for inspiration and how it is designed in the Bill project proposed in the Senate and after the amendments in the House of Representatives. An analysis of the shortcomings of the Brazilian model will be made and will be discussed the possibile offense of the constitutional text. Finally, proposals will be made in order to make the proposed proceeding compatible with the Constitution.
KEYWORD: Model Cases Proceedings. Decision model. Procedural effectiveness.
Sumário: 1 Introdução. 2 A origem e os fundamentos do incidente de resolução de demandas repetitivas: o surgimento do Musterverfahren na Alemanha e a necessidade de introduzir o incidente de resolução de demandas repetitivas no ordenamento brasileiro. 3 O modelo brasileiro: as imperfeições do incidente de resolução de demandas repetitivas. 4 Análise acerca da redução principiológica do texto constitucional por conta da norma objeto do projeto de lei do senado nº166/2010. 5 Propostas para compatibilização com o texto constitucional. 6 Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O novo Código de Processo Civil projetado foi apresentado ao Presidente do Senado no dia 08/06/2010 (PLS nº166/2010), bem como foi instituída uma comissão no Senado para que apresentassem emendas ao projeto. Depois de algumas mudanças no texto, o projeto foi enviado a Câmara dos Deputados sob o número de Projeto Lei (PL) nº8.046/2010.
Após seis meses de discussões no plenário da Câmera dos Deputados, no dia 26/03/2014 foi concluída a votação com a aprovação do texto final. Atualmente o texto esta no Senado que dará o formato final ao novo Código. O sistema aposta, dentre outras coisas, na criação do incidente de resolução de demandas repetitivas como meio de tornar mais célere e isonômica, em tese, a prestação jurisdicional.
Originalmente previsto nos artigos 895 a 906, Livro IV, Título VII do Projeto Original[3], o projeto incorpora ao nosso ordenamento jurídico o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, também denominado de “incidente de coletivização de demandas” importado do Direito Alemão[4].
O incidente tem por objetivo julgar um conjunto de demandas que giram em torno de uma mesma questão de direito, ou seja, um litígio que possa gerar uma considerável multiplicação de processos, o qual será apreciado pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, e se envolver matéria constitucional ou infraconstitucional, competira também ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça.
Sempre que houver uma demanda com potencial de se multiplicar, o juiz vai suscitar o tribunal e este vai decidir a tese jurídica que os juízes de todo o estado ou região vão aplicar no caso concreto, naturalmente exercendo seu papel de analisar provas e demais atos processuais. (DANTAS, 2010)
Em resumo, ao ser instaurado, o incidente suspenderá o curso de todas as ações que tenham a mesma questão de direito; quando julgado, criará um tese aplicável em todos os casos que julgam-se idênticos, presentes e vindouros.
Acredita-se que assim se podem resolver vários problemas de uma vez, destacando-se aqui a celeridade, inexistente atualmente, a falta de efetividade do processo e a falta de uniformização das jurisprudências.
Assim, o presente artigo tem como objetivo investigar o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no anteprojeto do novo Código de Processo Civil apresentado ao Senado Federal, verificando-se como está sua previsão no projeto.
Esse novo instituto será estudado tendo como premissas, a sua origem no Direito Alemão, seus fundamentos, bem como sua introdução no ordenamento jurídico pátrio.
Dentro dessa perspectiva, será feito ainda uma análise acerca da redução principiológica do texto constitucional por conta da norma objeto do projeto de Lei do Senado nº166/2010, destacando-se os princípios constitucionais e processuais da efetividade, celeridade e acesso à justiça.
Feita a análise e o estudo dos princípios citados, será realizado ainda considerações acerca da efetividade processual e qualidade das decisões, bem como se o incidente de resolução de demandas repetitivas vai propiciar um processo jurisdicional justo e democrático.
Por fim, a partir dessas observações, pretende-se prosseguir para apresentar propostas para compatibilização do incidente com o texto constitucional, para tentar aproximar à realidade da tutela coletiva brasileira.
Quanto à metodologia o trabalho fez-se a opção pela revisão de literatura e pelo método dedutivo, pois parte de princípios e regramentos constitucionais que contribuem de forma significativa para a compreensão de questões pontuais sobre o referido incidente e inclusive, questões sobre a efetividade deste instituto e a sua eficácia no processo brasileiro.
2 A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS: O SURGIMENTO DO MUSTERVERFAHREN NA ALEMANHA E A NECESSIDADE DE INTRODUZIR O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO.
O uso do direito comparado é um mecanismo importante para compreendermos o nosso próprio sistema jurídico. Considerando que a comissão responsável pelo anteprojeto do novo código de Processo Civil afirmou que a inspiração do novo incidente surgiu no modelo alemão, iremos analisá-lo.
A referida inspiração está expressa na exposição de motivos do anteprojeto:
Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta. (BRASIL, 2010).
Fazendo um breve apanhado histórico do surgimento do incidente, a empresa Deutsche Telekom[5], ao lançar suas ações na Bolsa de Frankfurt (período entre 1999 e 2000), emitiu um prospecto omitindo diversas informações importantes ocasionando um elevado declínio em seu valor nominal, prejudicando diversos investidores.
Em decorrência desse fato foram ajuizadas, entre agosto de 2001 e 2003, treze mil ações perante o tribunal de Frankfurt, onde os lesados buscaram reparar os prejuízos sofridos. Tal situação ocasionou a paralisação total da seção de direito comercial daquele tribunal.
Devido a esse fato, dois recursos constitucionais foram interpostos por investidores diretamente no Tribunal Constitucional Alemão, ambos alegando violação a razoável duração do processo. O Tribunal, ao julgar os recursos, alegou que a demora era tolerável, porém trouxe a luz a possibilidade da utilização do processo modelo.
Assim, em 2005 foi criado pelo legislador alemão o Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz (KapMug), que tinha como objetivo resolver (de forma vinculante) uma questão controversa originada em causas paralelas através de uma decisão modelo remetida ao Tribunal de Apelação[6].
Sobre o procedimento Alemão, Antonio do Passo Cabral afirma que:
Assim, não é difícil identificar o objeto do incidente coletivo: no Musterverfahrem decidem-se apenas alguns pontos litigiosos (Streitpunkte) expressamente indicados pelo requerente (apontado concretamente) e fixados pelo juízo, fazendo com que a decisão tomada em relação a estas questões atinja vários litígios individuais. Pode-se dizer, portanto, que o mérito da cognição no incidente compreende elementos fáticos ou questões prévias (Vorfragen) de uma relação jurídica ou de fundamentos da pretensão individual. (CABRAL, 2011, p. 248, 249).
Em suma, o modelo Alemão se posiciona sobre questões de fato ou de direito comuns às causas repetitivas. Deve ser provocado por uma das partes e esta deverá indicar o ponto principal em que deseja um pronunciamento coletivo, bem como as provas que deseja produzir.
Acaso a ação proposta já estiver apta para julgamento ou se, quando se verificar que o processo pode ser demasiadamente prolongado de forma indevida com a instauração do incidente, esse não será admitido. Sendo acolhido, deverá ser dada ampla publicidade ao incidente, por meio de cadastro eletrônico gratuito, ficando disponível na internet a qualquer cidadão.
Com o cadastro, o incidente ficará disponível por quatro meses, devendo ocorrer nesse período no mínimo 10 pedidos relativos à mesma questão, sob pena de não ser admitido. Em sendo admitido, serão escolhidos dois “líderes” entre os autores e réus das ações, que serão os interlocutores diretos com a Corte.
Em sendo julgado, a decisão será divulgada nos jornais, sendo suspensos todos os processos que versarem sobre idêntica questão. Terminado o incidente, a tese adotada deve ser aplicada em todos os processos que estavam suspensos aguardando a decisão.
O direito brasileiro enfrenta atualmente, é notório, o desafio de conciliar o fenômeno da litigiosidade de massa com a celeridade dos julgamentos, e a autonomia do juiz com o stare decisis fornecido pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Atento a esse problema, o legislador introduziu um instituto completamente desconhecido do ordenamento jurídico pátrio: o incidente de resolução de demandas repetitivas, que como já mencionado anteriormente, fora importado do ordenamento jurídico alemão.
Mudanças na sociedade e no Estado atingem a ciência jurídica, e isso é inevitável. As ações de massa precisam ser resolvidas como tal, e o legislador, acreditando que o CPC de 1973 não era apto e nem adequado para produzir os efeitos esperados para ações repetitivas, introduziu o incidente.
Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos mortos” (= períodos em que nada acontece no processo). (BRASIL, 2010).
Conforme a exposição de motivos do CPC projetado, o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no projeto será admissível quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco de coexistência de decisões conflitantes (BRASIL, 2010).
Cabe destacar nesse ponto, que a introdução do referido incidente no projeto do CPC tem nítida preocupação com a multiplicação de processos nos tribunais, que é justamente um dos grandes entraves do Judiciário atualmente.
Enquanto diversas demandas sequer chegam ao conhecimento do Poder Judiciário, outras chegam em verdadeiros lotes, assoberbando de trabalho os cartórios, dificultando assim, uma prestação jurisdicional efetiva e célere. Tal situação torna os recursos materiais e humanos insuficientes.
Segundo o CNJ, em que pese os Juízes proferirem mais decisões, a quantidade de processos novos que chegam todos os anos ao judiciário impede a redução do acervo das ações judiciais.
Segundo a referida pesquisa
[...] embora os juízes tenham dado decisão sobre 17,8 milhões de ações ao longo de 2013, a quantidade de processos que passaram a tramitar no ano passado foi ainda maior, aproximadamente 19,4 milhões.
Os dados estão no Relatório dos Resultados da Chamada Meta 1, compromisso assumido pelo Judiciário de julgar, em 2013, mais processos que a quantidade de ações apresentadas à Justiça no ano. De acordo com o levantamento conduzido pelo Departamento de Gestão Estratégica (DGE/CNJ), a Meta 1 não foi atingida em 2013. Com isso, o número de novas demandas da sociedade à Justiça superou em 1,684 milhão de processos a capacidade de os juízes darem a primeira decisão judicial sobre as ações. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014).
Na mesma pesquisa realizada, a alternativa apontada pelo CNJ para tentar racionalizar o problema da quantidade de processos nos fóruns e tribunais espalhados pelo país foi justamente a identificação das demandas repetitivas, pois ainda segundo o CNJ, a Justiça foi feita para dar respostas individuais a demandas individuais, mas precisamos de soluções de massa para problemas de massa (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014).
Além da preocupação com a quantidade de processos, o projeto busca harmonizar o problema da razoável duração do processo, conciliando celeridade e segurança jurídica. O novel código projetado prevê, no artigo 939 que o incidente terá preferência na tramitação, dando assim, preferência aos processos que causam entraves na justa prestação jurisdicional.
3 O MODELO BRASILEIRO: AS IMPERFEIÇÕES DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS.
Inicialmente se faz necessário destacar os artigos que regulam o incidente no projeto depois das alterações feitas na Câmera dos Deputados:
Art. 930. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes.
§ 1º O pedido de instauração do incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal:
I – pelo juiz ou relator, por ofício;
II – pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição.
§ 2º O ofício ou a petição a que se refere o § 1º será instruído com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente.
§ 3º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e poderá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.
Art. 931.A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça.
Parágrafo único. Os tribunais promoverão a formação e atualização de banco eletrônico de dados específicos sobre questões de direito submetidas ao incidente, comunicando, imediatamente, ao Conselho Nacional de Justiça, para inclusão no cadastro.
Art. 932. Após a distribuição, o relator poderá requisitar informações ao órgão em cujo juízo tem curso o processo originário, que as prestará em quinze dias; findo esse prazo improrrogável, será solicitada data para admissão do incidente, intimando-se o Ministério Público.
Art. 933. O juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competirão ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial.
§ 1º Na admissibilidade, o tribunal considerará a presença dos requisitos do art. 930 e a conveniência de se adotar decisão paradigmática.
§ 2º Rejeitado o incidente, o curso dos processos será retomado; admitido, o tribunal julgará a questão de direito, lavrando-se o acórdão, cujo teor será observado pelos demais juízes e órgãos fracionários situados no âmbito de sua competência, na forma deste Capítulo.
Art. 934. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdição.
Parágrafo único. Durante a suspensão poderão ser concedidas medidas de urgência no juízo de origem.
Art. 935. O Relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de quinze dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida; em seguida, no mesmo prazo, manifestar-se-á o Ministério Público.
Art. 936. Concluídas as diligências, o relator pedirá dia para o julgamento do incidente.
§ 1º Feita a exposição do incidente pelo relator, o presidente dará a palavra, sucessivamente, ao autor e ao réu do processo originário, e ao Ministério Público, pelo prazo de trinta minutos, para sustentar suas razões.
§ 2º Em seguida, os demais interessados poderão se manifestar no prazo de trinta minutos, divididos entre todos, sendo exigida inscrição com quarenta e oito horas de antecedência.
Art. 937. As partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria Pública, visando à garantia da segurança jurídica, poderão requerer ao tribunal competente para conhecer de eventual recurso extraordinário ou especial a suspensão de todos os processos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente.
Parágrafo único. Aquele que for parte em processo em curso no qual se discuta a mesma questão jurídica que deu causa ao incidente é legitimado, independentemente dos limites da competência territorial, para requerer a providência prevista no caput.
Art. 938. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal.
Parágrafo único. Se houver recurso e a matéria for apreciada, em seu mérito, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal ou pela corte especial do Superior Tribunal de Justiça, que, respectivamente, terão competência para decidir recurso extraordinário ou especial originário do incidente, a tese jurídica firmada será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem em todo o território nacional.
Art. 939. O incidente será julgado no prazo de seis meses e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus.
§ 1º Superado o prazo previsto no caput, cessa a eficácia suspensiva do incidente, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário.
§ 2º O disposto no § 1º aplica-se, no que couber, à hipótese do art. 937.
Art. 940. O recurso especial ou extraordinário interposto por qualquer das partes, pelo Ministério Público ou por terceiro interessado será dotado de efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida.
Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput, interpostos os recursos, os autos serão remetidos ao tribunal competente, independentemente da realização de juízo de admissibilidade na origem.
Art. 941. Não observada a tese adotada pela decisão proferida no incidente, caberá reclamação para o tribunal competente.
Parágrafo único. O processamento e julgamento da reclamação observará o Capítulo VIII, deste Livro. (BRASIL, 2010).
As razões que levaram a criação dos artigos supracitados estão esculpidas na exposição de motivos do código projetado, vejamos:
Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.
O incidente de resolução de demandas repetitivas é admissível quando identificada, em primeiro grau, controvérsia com potencial de gerar multiplicação expressiva de demandas e o correlato risco da coexistência de decisões conflitantes.
É instaurado perante o Tribunal local, por iniciativa do juiz, do MP, das partes, da Defensoria Pública ou pelo próprio Relator. O juízo de admissibilidade e de mérito caberão ao tribunal pleno ou ao órgão especial, onde houver, e a extensão da eficácia da decisão acerca da tese jurídica limita-se à área de competência territorial do tribunal, salvo decisão em contrário do STF ou dos Tribunais superiores, pleiteada pelas partes, interessados, MP ou Defensoria Pública. Há a possibilidade de intervenção de amici curiae.
O incidente deve ser julgado no prazo de seis meses, tendo preferência sobre os demais feitos, salvo os que envolvam réu preso ou pedido de habeas corpus.
O recurso especial e o recurso extraordinário, eventualmente interpostos da decisão do incidente, têm efeito suspensivo e se considera presumida a repercussão geral, de questão constitucional eventualmente discutida.
Enfim, não observada a tese firmada, caberá reclamação ao tribunal competente. (BRASIL, 2010).
O modelo brasileiro ainda está longe de atender as expectativas do jurisdicionado e da justiça, pois ao que parece, o legislador (e o judiciário) de forma velada, ao introduzirem o incidente, somente se preocuparam com a quantidade de processos a serem resolvidos, sem observar a qualidade das decisões.
Em que pese o modelo brasileiro ter como referência o modelo alemão, ambos possuem diferenças essenciais que serão demonstradas logo abaixo.
O artigo 930 do Projeto estipula dois requisitos objetivos necessários para que o incidente seja admitido: identificação de controvérsia fundada em mesma questão de direito com potencialidade de gerar demandas repetitivas e a possibilidade de decisões conflitantes que causem grave insegurança jurídica.
Ou seja, não será admitido que o Tribunal se pronuncie sobre matéria de fato, diferentemente do modelo alemão que é possível o pronunciamento tanto sobre questões de fato, quanto questões de direito.
Nesse ponto se faz necessário realizar uma crítica, pois o novo Projeto ao aplicar o incidente dessa maneira desassocia o direito de sua realidade social, ou seja, ocorre uma dissociação do direito e dos fatos. Lênio Streck explica que:
No plano da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas, e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes, em “suplicante” e “suplicado”, expressões estas que, convenhamos, deveriam envergonhar (sobremodo) a todos nós. Mutatis mutandis , isso significa dizer que os conflitos sociais não entram nos fóruns e nos tribunais graças às barreiras criadas pelo discurso (censor) produzido pela dogmática jurídica dominante. Pode-se afirmar, desse modo, que ocorre uma espécie de “coisificação” (objetificação) das relações jurídicas. (STRECK, 2010, p.96).
Como bem salientado por Lenio Streck, não há como dissociar fato e direito, tal tentativa é somente uma ficção jurídica. Pode ser afirmado, porém, que determinada questão é predominantemente de fato ou predominantemente de direito, mas nunca somente de direito.
Além de tais critérios objetivos, tem um requisito subjetivo, previsto no §1º do artigo 933, qual seja, a “conveniência de se adotar decisão paradigmática”. Tal critério subjetivo, além de ser altamente criticável, amplia a discricionariedade do juiz deixando ao seu bel prazer entender sobre a conveniência de se adotar a decisão paradigma.
Assim, tem-se duas situações: a não regulamentação do que venha a ser idêntica questão a ser tratada no incidente e a questão da subjetividade que, mesmo sendo preenchido os critérios do artigo 930, pode o Tribunal entender não ser conveniente adotar a decisão paradigma, tornando ineficaz o incidente.
Existe um equivoco muito grande nesse raciocínio, como bem adverte o professor Lenio Streck em artigo publicado no ConJur:
É que, nesse ponto, o projeto comete um pecado hermenêutico. Vou tentar ir mais a fundo. Faltou, sim — e temos de ter coragem para dizer isto, com todas as letras — um hermeneutic turn no projeto. Nele, há uma falácia semântica ou uma crença na plenipotenciariedade dos conceitos, como se fosse possível a uma lei — e agora, especialmente a uma Súmula ou a uma ementa jurisprudencial — prever todas as hipóteses de aplicação de forma antecipada. Ou seja, para os autores do projeto, os conceitos podem abranger todas as hipóteses de aplicação... No fundo, o projeto faz um mix: ao mesmo tempo que aposta na construção de conceitos com pretensão de “norma geral” (ah, o velho positivismo), aposta também no protagonismo decorrente do livre convencimento. (STRECK, 2013).
Outro ponto criticável do incidente e que poderá gerar diversas dúvidas é com relação ao §2º do artigo 933. Segundo esse parágrafo, uma vez decidida a questão de direito o teor do acórdão será vinculante para os demais juízes e órgãos fracionários do Tribunal.
Reforçando essa ideia, o artigo 938 ao dizer que “a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica versão de direito”. Assim surge a seguinte questão: qual é o limite da vinculação do julgado? O projeto não deixa claro se a tese criada se aplicará somente aos casos pendentes (que ficaram suspensos devido a admissibilidade da questão no Tribunal) ou se será aplicado a todos os casos, incluído futuras demandas ajuizadas depois da decisão.
O esclarecimento desse ponto, seja pela doutrina ou pelo legislador, é muito importante, uma vez que essa segunda hipótese aproxima-se de uma verdadeira súmula vinculante e devido a competência estabelecida pela CF, nem Tribunal Estadual, nem TRF, possuem competência para prolatar decisão com eficácia vinculante a órgãos que não do seu próprio tribunal[7].
Ressalte-se que a primeira hipótese se amolda melhor a literalidade do artigo 903, até porque como os possíveis futuros demandantes não estão em juízo (e poderão nunca estar) não podem ser atingidos pela eficácia da decisão, uma vez que seus direitos não foram levados à causa.
O modelo tedesco, prevê a suspensão de todos os processos em que a decisão dependa de um pronunciamento do Procedimento-Modelo, porém se a ação estiver apta para o julgamento, não poderá ser suspensa, privilegiando-se a celeridade.
Não é admitido requerimento para instauração de Procedimento-Modelo quando a causa estiver pronta para julgamento, quando puder prolongar ou postergar indevidamente o processo, quando o meio de prova requerido for inadequado, quando as alegações não se justifiquem dentro dos objetivos do procedimento, ou ainda quando um ponto controvertido não aparentar necessidade de ser declarado com eficácia coletiva. (CABRAL, 2011, p. 250).
Diferente é o modelo brasileiro que prevê a suspensão de todos os processos em primeiro e segundo grau de jurisdição, não se atentando para as causas maduras para julgamento ou que possam ser prolongadas indevidamente, conforme se depreende da leitura do artigo 934.
A não observância desse preceito viola o princípio da celeridade, causando danos ao jurisdicionado uma vez que, sua causa que antes estava apta para julgamento, agora ficará suspensa por seis meses podendo lhe causar sérios prejuízos.
O projeto é omisso com relação ao direito da parte de se manifestar no sentido de não querer ter sua ação julgada pelo incidente. Não lhe é oportunizado o direito de demonstrar a particularidade de seu caso. O jurisdicionado não tem nem mesmo a opção de não querer que sua causa seja escolhida como processo paradigma.
A parte, no modelo brasileiro, que tinha entrado com sua ação individual, tendo sua demanda escolhida como paradigma será representante de uma demanda coletiva, na qual não tem nenhum interesse.
Diferentemente é o modelo alemão, onde cabe a parte suscitar não somente a instauração do incidente, bem como o ponto no qual deseja um pronunciamento.
Um importante ponto em que houve omissão do legislador foi no que concerne a distribuição das custas processuais. Simplesmente não há qualquer regulamentação no anteprojeto, diferente do modelo alemão adotado com modelo que nesse aspecto foi elogiado devido à forma diferenciada de distribuição do ônus.
No Musterverfahren,a divisão dos custos é mais justa. Com efeito, na decisão que suspende os processos que dependem do incidente coletivo, é prestada informação as partes da repartição das despesas. De acordo com os §§ 8 e 17 da KapMuG, os custos do incidente são proporcionalmente computados como despesas do processo de origem, devendo as cotas-parte serem calculadas comparando a grandeza das pretensões individuais com o total das exigências paralelas das partes e intervenientes. Há ainda a previsão de repartição de custos de acordo com o êxito e a participação efetiva (adesão inclusive) de partes e intervenientes no procedimento recursal. (§19 da KapMuG). (CABRAL, 2011, p. 258).
No CPC projetado não existe qualquer referência sobre o assunto, tal omissão poderá acarretar receio de alguma das partes suscitar a instauração do incidente ou até mesmo que ele seja suscitado de ofício, pois perante o princípio da causalidade, havendo derrota, teriam de arcar com todas as custas do incidente.
4 ANÁLISE ACERCA DA REDUÇÃO PRINCIPIOLÓGICA DO TEXTO CONSTITUCIONAL POR CONTA DA NORMA OBJETO DO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº166/2010.
Fica claro, na exposição de motivos do Código Processual projetado, a preocupação dos juristas integrantes da comissão com a celeridade do processo e sua uniformização jurisprudencial.
Essa preocupação com a efetivação da celeridade no processo não é problema de exclusividade do direito brasileiro, nas palavras de Humberto Teodoro Junior, in verbis:
“Ao findar o século XX, nem mesmo as nações mais ricas e civilizadas da Europa se mostram contentes com a qualidade da prestação jurisdicional de seu aparelhamento judiciário. A crítica, em todos os quadrantes, é a mesma: lentidão da resposta da justiça, que quase sempre a torna inadequada para realizar a composição justa da controvérsia. Mesmo saindo vitoriosa no pleito judicial, a parte se sente, em grande número de vezes, injustiçada, porque justiça tardia não é justiça e, sim, denegação de justiça.”. (THEODORO JUNIOR, 2005, p. 68).
Esquece, porém, os juristas e legisladores brasileiros que a celeridade - ausente nos dias atuais no judiciário - não é um valor que deve ser perseguido em detrimento de um processo justo e eficaz. O professor Barbosa Moreira em comentários ao futuro da justiça expos o seguinte pensamento:
“Para muita gente, na matéria, a rapidez constitui o valor por excelência, quiçá o único. Seria fácil invocar aqui um rol de citações de autores famosos, apostados em estigmatizar a morosidade processual. Não deixam de ter razão, sem que isso implique – nem mesmo, quero crer, no pensamento desses próprios autores – hierarquização rígida que não reconheça como imprescindível, aqui e ali, ceder o passo a outros valores. Se uma justiça lenta demais é decerto uma justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente uma justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço” (MOREIRA, 2001, p. 232).
Ou seja, a celeridade ela deve ser buscada, porém, a despeito de ser primordial, a sua busca não deve ocorrer de maneira incessante e absoluta. Ademais, não é somente mudando o código processual antigo que a celeridade se efetivará.
Faz-se necessário mudar também, o pensamento dos servidores, magistrados, advogados e demais auxiliares e operadores da justiça, para conscientizá-los de que o processo deve servir a sociedade como um instrumento de pacificação de conflitos.
Ou seja, não basta ser célere, tem que ser uma preocupação com qualidade das decisões e mais, preocupar-se com o jurisdicionado, pois “o sistema processual é tão burocrático que não se nota mais a presença de seres humanos nas ações.” (BOAVENTURA, 2002).
Diante das considerações feitas acima pode-se afirmar que a justiça não diz respeito somente ao direito material que se almeja na demanda, mas também aos meios postos a disposição do jurisdicionado, com capacidade para coibir a indevida utilização da máquina judiciária, em prol da efetividade.
A palavra efetividade tem diversos sentidos. Para Barbosa Moreira, são cinco os itens caracterizadores da efetividade:
a) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos (e outras posições jurídicas de vantagem) contemplados no ordenamento, quer resultem de expressa previsão normativa, quer se possam inferir do sistema;
b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em princípio, sejam quais forem os supostos titulares dos direitos (e das outras posições jurídicas de vantagem) de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o circulo dos eventuais sujeitos;
c) impende assegurar posições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, afim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade;
d) em toda a extensão da possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento;
e) cumpre que se possa atingir semelhante resultado com o mínimo de dispêndio de tempo e energia. (MOREIRA, 1997, p. 18).
O sistema processual civil deve proporcionar a sociedade, não só o reconhecimento mais também a realização dos direito, pois o processo é o instrumento idôneo para adequada realização de direitos. Tornando-se ineficiente, o sistema processual jamais terá real efetividade.
Querer que o processo seja efetivo é querer que desempenhe com eficiência o papel que lhe compete na economia do ordenamento jurídico. Visto que esse papel é instrumental em relação ao direito substantivo, também se costuma falar da instrumentalidade do processo. Uma noção conecta-se com a outra e por assim dizer a implica. Qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra a que se ordena; em outras palavras, na medida em que seja efetivo. Vale dizer: será efetivo o processo que constitua instrumento eficiente de realização do direito material. (MOREIRA, 2002, p. 181).
Logo, a aludida efetividade processual deve ser entendida não como um sinônimo de celeridade e rapidez e sim como implementação dos direitos fundamentais na construção do provimento final para os jurisdicionados.
O atual texto do Projeto, também peca quando o assunto é acesso à justiça. Atualmente, o conceito de acesso à justiça ganhou novos contornos, incluindo a promoção a cidadania, educação jurídica e utilização de mecanismos alternativos de solução de controvérsias.
De acordo com MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH:
A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individuais e socialmente justos. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p.8).
Assim, compreende-se que o acesso a justiça, deve ser entendido como uma garantia para a obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva para todos os interassados.
Nesses termos, o incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro, está na contramão do que se entende por acesso a justiça. No capítulo intitulado “DA IMPROCEDÊNCIA LIMINAR DO PEDIDO”, o novo projeto traz a seguinte regra no inciso III do artigo 307:
Art. 307. O juiz julgará liminarmente improcedente o pedido que se fundamente em matéria exclusivamente de direito, independentemente da citação do réu, se este:
III – contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
Como se vê, o IRDR cria a tese, aplica a casos já existentes no judiciário (que nem sequer podem as partes interessadas comprovar que a “tese” criada não se aplica em seu “caso concreto”) e também nos vindouros, contraria-se, assim, o principio constitucional do acesso à justiça.
Sendo um dos mais fundamentais dos direitos humanos, por sua função de assegurador dos demais direitos e mecanismo de reivindicação, o acesso à justiça não pode ser mitigado para desafogar o judiciário em detrimento de um processo justo e acessível a todos.
5 PROPOSTAS PARA COMPATIBILIZAÇÃO COM O TEXTO CONSTITUCIONAL.
O incidente de resolução de demandas repetitivas não deve se tornar uma mera tentativa desastrosa de se buscar a eficácia e a celeridade do processo. O anseio de se ter uma prestação jurisdicional eficaz e célere não pode deixar de observar direitos fundamentais, com atenção especial para aqueles que estimulam a participação no processo.
Não é possível coadunar a efetividade do processo somente com a celeridade temporal, pois isso acarretaria na limitação, ou pior, na eliminação do debate entre as partes no processo.
Um dos principais problemas do projeto é a falta de posicionamento sobre a questão de fato, pois o incidente somente se debruça sobre a questão de direito. Sendo interligados na atividade de cognição judicial, fato e direito não podem ser cindidos, pois poderia apontar para um artificialismo das decisões.
No cenário atual do projeto, sendo julgado o incidente a tese jurídica será aplicada a todos os processos suspensos (e vindouros), e caso não haja recurso, serão extintos com, ou sem resolução do mérito conforme o caso.
Seria interessante uma alteração no projeto no sentido de que – após feito o julgamento da matéria de direito pelo órgão superior e formado o entendimento em sede de resolução de demandas repetitivas – os processos suspensos retornassem seu curso e fossem apreciadas as matérias de fatos pelo juízo a quo, (caso o processo esteja suspenso esteja tramitando lá), em sendo necessário um posicionamento sobre o fato.
A análise da matéria de fato é importante até mesmo para ser analisado p. ex. a incidência de danos morais, que é matéria de fato. Assim, evita-se uma potencial separação entre fato e direito, ambos necessários no Juízo cognitivo, gerando uma decisão mais concatenada com a realidade.
Outro problema do projeto é a imposição da decisão modelo aos processos suspensos em que nenhum momento foi oportunizado o debate. Assim, o que se almeja é a criação de um modelo vinculado aos direitos fundamentais, assegurando as partes uma ampla discussão, que lhes são constitucionalmente assegurados.
Em vias de implementação do incidente, o que se espera é que todos os indivíduos que tiverem seus processos suspensos tenham a oportunidade de realizar sua manifestação no processo piloto, pois assim a decisão modelo terá a participação dos cidadãos por ele afetados.
Ademais, no modelo brasileiro, pode-se questionar se o processo que irá representar a controvérsia estará devidamente instruído, bem como se as partes atuaram com boa-fé e zelo, demonstrando com clareza aos magistrados o fato ao qual recairá a controvérsia.
Assim como o Musterverfahren, o incidente brasileiro poderia observar a fase em que se tramita o processo, antes de determinar a suspensão do processo. Poderia o texto do projeto, p. ex., impor algumas regras para suspensão, pois em alguns casos, o principio da duração razoável do processo será suprimido.
Tal situação é um contrassenso, pois o que era para ser trazer celeridade (uma das principais preocupações ao se elaborar o projeto) poderá torna-se uma grande injustiça, prolongando indevidamente o processo.
Ante a total omissão do projeto, poderia também o legislador, criar regras de distribuição das custas processuais, de maneira equânime, onde cada parta arcaria com as custas na proporção de suas atuações, evitando-se assim injustiças.
Um exemplo que poderia ser citado é no final do incidente, onde as partes vencidas que nem sequer deram origem ao incidente fossem condenadas ao pagamento das custas. Imagine-se que a maioria dessas partes tenham conseguido em sua demanda individual a assistência judiciária gratuita e a menor parte não teve essa benesse.
Como será feito esse rateio? Isentaria as partes que tivessem a assistência judiciária gratuita a seu favor onerando os demais? Ou aqueles, mesmo com a assistência gratuita deferida arcariam com as custas? Pode-se solicita a assistência judiciária gratuita no incidente?
Veja como a regulamentação desse ponto de maneira isonômica é de suma importância, uma vez que caso não regulamentado as partes simplesmente poderão se desinteressar pelo instituto, tornando-o letra morta.
O CPC projetado, não prevê nenhum mecanismo que permita as partes demonstrarem a inaplicabilidade da decisão-modelo em seu caso concreto. Esse é um dos pontos mais preocupantes no projeto, e nele não se encontra resposta alguma.
A inexistência de previsão legal viola gravemente o principio do contraditório, pois este, aparentemente foi simplesmente “esquecido” pela ânsia de um processo célere a qualquer custo. Em verdade, fica patente ao nosso ver, que o intuito do incidente é exterminar processos a qualquer custo.
Deveria existir uma previsão legal no projeto em que, após proferida a decisão paradigmática, fosse dado ao jurisdicionado a oportunidade de se manifestar no juízo onde tramita o processo piloto, podendo a parte demonstrar a inaplicabilidade do julgamento ao seu caso. Tal possibilidade daria liberdade para um contraditório mais participativo entre os indivíduos envolvidos no processo.
Pois, dentro dessa perspectiva observa-se que o senhor absoluto do direito é o próprio titular dele, sendo de sua exclusiva faculdade se submeter a decisão ou propor, ou não, uma ação visando a tutela do seu direito.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A introdução do incidente de resolução de demandas repetitivas no ordenamento jurídico brasileiro foi um grande passo para resolução de conflitos individuais massificados, principalmente devido à falta de capacidade de nossos gestores políticos de governar e da ineficiência do poder público em gerir a sociedade civil.
Por certo, os incidentes de coletivização e técnicas processuais correlatas não podem ser erigidas à condição de panaceia para as mazelas do Poder Judiciário. Mas, coadunam-se as mesmas com certa tendência de fortalecimento da jurisdição de índole coletiva. (KOZIKOSKI, 2013, p.315).
Porém entendemos que, o referido incidente deve ser analisado com cautela já que, o fato deste instituto produzir de maneira desmedida decisões em massa, não necessariamente tornará o processo mais eficaz e célere.
Muito pelo contrário, ele será um fator de precarização da qualidade da prestação jurisdicional por somente resolver demandas de massa sem se preocupar com a qualidade e eficácia do processo, ocasionado diversos impactos na prestação jurisdicional.
Devido a sua disposição no projeto, o mecanismo deve ser visto com cautela para que seja utilizado para tutelar direitos e não para se “livrar de processos”, principalmente por causa da imposição da “decisão-modelo” aos processos ditos repetitivos, no qual o debate não fora realizado de forma oportuna.
Deve-se construir um espaço de discussão privilegiado que viabilize o contraditório necessário para o amadurecimento das teses jurídicas, principalmente as surgidas no procedimento de resolução de demandas repetitivas.
Como explicitado no trabalho, o instituto carece de algumas reformas para ser compatível com o nossa ordem constitucional, pois é necessário que se encontre um equilíbrio para que se possa coadunar celeridade e segurança jurídica, bem como para assegurar, na relação processual, direito fundamentais.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduando em Direito pela Faculdade da Cidade do Salvador. E-mail: [email protected]. Sobre o orientador, informar titulação e instituição vinculada.
[2] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Especialista em Direito pela Escola de Magistrados da Bahia. Professor na Faculdade da Cidade do Salvador.
[3] Atualmente com a redação final dada pela Câmera dos Deputados, o incidente encontra-se previsto no Capítulo VII do PL 8.046/2010, nos artigos 930 ao 941.
[4] No direito alemão a figura se chama Musterverfahren e gera decisão que serve de modelo (Muster) para a resolução de uma quantidade expressiva de processos no qual as partes estejam na mesma situação.
[5] A Deutsche Telekom AG é a maior companhia de telecomunicações da Alemanha e da União Europeia.
[6] Sobre o histórico detalhado do Kapitalanleger-Musterverfahrensgesetz, ROSSONI, Igor Bimkowski “O ‘incidente de resolução de demandas repetitivas’ e a introdução do group litigation no direito brasileiro: avanço ou retrocesso?” Disponível em < http://www.tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/50-artigos-dez-2010/7360-o-incidente-de-resolucao-de-demandas-repetitivas-e-a-introducao-do-group-litigation-no-direito-brasileiro-avanco-ou-retrocesso> Acesso em 30 de Jan de 2014.
[7] Um questão interessante que poderá ocorrer, caso seja atribuído efeito vinculante do teor do acórdão aos juízes de primeiro grau e órgãos do tribunal, é a questão da (in)constitucionalidade da referida vinculação. Como a súmula vinculante foi instituída por meio de uma emenda a Carta Maior, caso seja prevalecido esse entendimento, será necessário uma nova alteração da CF para dar validade a esse preceito.