RESUMO:
As astreintes, importante instrumento coercitivo utilizado para dar maior efetividade aos provimentos judiciais, vem sofrendo com uma prática que tem se tornado comum nos tribunais, que é a redução ex tunc de seu valor, em qualquer situação, independente dos motivos que ensejaram o não cumprimento da ordem judicial, apenas, sob o fundamento de respeito aos princípios da razoabilidade e da vedação ao enriquecimento sem causa, em detrimento de outro princípio, tão relevante quanto, que é o princípio da dignidade da justiça.
PALAVRAS-CHAVE: Astreintes. Redução. Princípios. Razoabilidade. Enriquecimento sem causa. Dignidade da justiça.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda de maneira sucinta o instituto das astreintes, em seus diversos aspectos, tais como: características gerais, conceito, natureza jurídica, possibilidade de redução dos valores arbitrados com eficácia retroativa e suas implicações para o sistema democrático.
No curso do trabalho, busca-se analisar de maneira mais profícua, uma prática que tem se tornado comum no dia-a-dia forense, que é a redução do valor da multa pelo juiz, muitas vezes de ofício, mesmo em casos em que há o descumprimento injustificado de uma ordem judicial, com o fito de evitar o enriquecimento indevido do credor, e em respeito ao princípio da razoabilidade, apesar de a situação ferir de morte outro princípio tão importante quanto os supracitados, que é o princípio da dignidade da justiça.
Portanto, a prática forense de minoração das astreintes evidencia uma situação clara de colisão entre princípios igualmente importantes, que deve ser melhor refletida com o objetivo de sopesar, em cada caso concreto, o que mais se coaduna com o Estado Democrático de Direito e coma à Dignidade da Justiça.
O instituto das astreintes também conhecido como multa coercitiva, foi incorporado ao Código de Processo Civil Brasileiro pela Lei 8.952/94, estando expressamente previsto no art. 461, § § 4º, 5º e 6º.
As astreintes sendo meio coercitivo por excelência, traduz-se em uma ameaça, um temor psicológico destinado a impelir o réu a adimplir uma ordem judicial, que imponha o cumprimento de uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, com o escopo de garantir a efetividade da tutela judicial concedida e o respeito ao Estado Democrático de Direito.
Insta salientar que, em que pese existir divergências doutrinárias, prevalece o entendimento de que o manejo das astreintes é uma maneira de coerção ou constrangimento que visa proteger a autoridade do comando imposto na decisão judicial, obrigando o devedor recalcitrante a prestar determinada obrigação, a cumprir uma norma, sob pena de pagamento de uma prestação pecuniária. Assim, as astreintes funcionam como multa acessória à obrigação principal, independe de perdas e danos, não possuindo caráter indenizatório e não devendo ser limitada ao valor da obrigação principal.
No que atine a natureza jurídica das astreintes, alguns juristas, como por exemplo, Guilherme Rizzo Amaral, entende que a adoção das astreintes é um modo de zelar pela própria dignidade da justiça, como entidade sociopolítica, utilizando-se de todos os meios legais e civilizados para fazer cumprir o julgamento, sem violentar a pessoa humana.
Já Luiz Guilherme Marinoni, entende que a multa é um meio processual de coerção indireta, com natureza puramente coercitiva, não tendo finalidade sancionatória, apesar de assumir uma roupagem sancionatória no momento do inadimplemento, porém tal alteração não seria suficiente para alterar sua natureza, pois seria meramente acidental em relação a sua verdadeira função.
Cumpre informar, que as astreintes poderão ser fixadas pelo juiz na antecipação de tutela ou na sentença, independente de pedido do autor e tem sua incidência a partir de descumprimento da ordem judicial que impôs ao réu o cumprimento de alguma obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, ou seja, situações em que se deva proteger a dignidade da ordem judicial.
Nesse sentido, calha trazer à baila o entendimento de Nelson Nery Júnior sobre o tema:
A multa diária deve ser imposta de ofício ou a requerimento da parte e seu valor deve ser expressivamente alto, uma vez que possui natureza inibitória, ressaltando que o juiz não deve ficar com receio de fixar o valor em quantia alta, pensando no pagamento. O objetivo das astreintes não é o de obrigar o réu a pagar o valor da multa, mas compeli-lo a cumprir a obrigação na forma específica. A multa é apenas inibitória. Deve ser alta para que o devedor desista de seu intento de não cumprir a obrigação específica. Vale dizer, o devedor deve sentir ser preferível cumprir a obrigação na forma específica a pagar o alto valor da multa fixada pelo juiz.[3]
Destarte, cumpre registrar que, para que a multa seja um meio eficaz de coação, se faz necessário a observância de alguns critérios no arbitramento de seu valor, tais como: capacidade econômica do demandado e o proveito econômico que este teria com a não submissão a ordem judicial.
Assim, a multa deverá ser arbitrada de maneira razoável, proporcional ao conteúdo da demanda, não podendo ser em valor ínfimo, insuficiente a pressionar o demandado ao adimplemento da ordem judicial, nem tão pouco em valor excessivo, que torne, já de início, a obrigação impossível de ser cumprida.
Nesse sentido, Alexandre Câmara, outrossim, afirma que:
A multa deve ser fixada em valor suficiente para pressionar psicologicamente o devedor a cumprir a decisão judicial. Afirmou-se em respeitável sede doutrinária que ‘seu valor deverá ser exorbitante, desproporcional ao conteúdo econômico da causa, mas adequado à pessoa do executado. O valor da multa não guarda relação com o conteúdo econômico do direito posto em causa’. Realmente, o valor da multa terá de ser fixado em função da capacidade econômica do devedor, de forma a ser capaz de constrangê-lo psicologicamente. Multas excessivamente baixas são ineficazes, assim como as excessivamente altas. Não me parece adequado, porém, dizer que a multa deve ser exorbitante. A multa deve ser ‘pesada’ o suficiente para assustar, constranger, sem, contudo deixar de observar o princípio da razoabilidade. Quero dizer com isso que a multa deve ser alta o suficiente para constranger psicologicamente o devedor, mas não pode ir um centavo além do necessário para que tal pressão aconteça.[4]
Destarte, repise-se o valor da multa deve ser fixado levando em consideração a capacidade econômica do devedor, devendo ser pesada o suficiente para assustar, de forma a ser capaz de constrangê-lo psicologicamente, dentro do razoável para cada caso concreto.
No mesmo sentido, adverte o mestre Guilherme Marinoni, em seu livro Tutela Inibitória, que para que a multa possa constituir uma autêntica forma de pressão sobre a vontade do réu, é indispensável que ela seja fixada com base em critérios que lhe permitam atingir seu fim, que é garantir a efetividade da tutela jurisdiciona, devendo ser fixada em montante que seja suficiente para fazer o réu ver que é melhor cumprir do que desconsiderar a ordem do juiz.
Outro ponto que cumpre salientar, é que para a jurisprudência dominante as astreintes não sofrem o efeito da coisa julgada, já que não abrange o conflito de direito material, o litígio em si, podendo, ser alterada a qualquer tempo, o que tem gerado alguns inconvenientes a dignidade da justiça, senão vejamos:
Tornou-se comum na prática forense a modificação retroativa do quantum ou da periodicidade das astreintes, ou seja, o judiciário vem reduzindo os valores fixados a título de astreintes, mesmo que descumprida a ordem judicial sem justificativa de impedimento, em que pese não haver na legislação limites para a fixação das astreintes, tudo em respeito ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, motivado pela finalidade de evitar o enriquecimento indevido do credor.
Destarte, com a finalidade de assegurar o principio da razoabilidade e de evitar o enriquecimento sem causa do credor, os tribunais têm decidido no sentido e aproximar os valores da astreintes do valor da obrigação principal, utilizando-se para tanto, como regra, critério objetivo do valor da causa. Porém, cumpre salientar, que este é um critério falho, pois sinaliza no sentido de que os valores as astreintes devem ser reduzidos em qualquer caso que aparentemente se torne excessivo e desarrazoado.
Nesta esteira, o ministro Luis Felipe Salomão proferiu decisão terminativa no REsp 1.284.683-BA, publicado DJ em 04.09.12, deixando assente que a execução da multa cominatória deve observar como teto máximo o valor da obrigação principal, ao dizer o seguinte:
Esta Corte entende que, em regra, tanto para se atender ao princípio da proporcionalidade quanto para se evitar o enriquecimento ilícito, o teto do valor fixado a título de astreintes não deve ultrapassar o valor do bem da obrigação principal.
Já o STJ, no AgRg no AREsp 180.249/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 06.09.12, DJe 12.09.12., assim decidiu:
Deve haver um controle quando o valor da multa diária, acumulada, atinge quantia exagerada. Se o destinatário da ordem não a cumpre em tempo oportuno ou retarda o seu cumprimento, causando, assim, a acumulação diária do valor da dívida originalmente arbitrada, nem por isso se deve permitir a execução do valor acumulado sem qualquer limite. A exigência da multa fica adstrita aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, no sentido de que se deve adequá-la ou torná-la compatível com a obrigação.
No mesmo diapasão é o entendimento que se extrai do acordão assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. OBRIGAÇÃO DE FAZER. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL. EXCESSO. REDUÇÃO.
A multa pelo descumprimento de decisão judicial não pode ensejar o enriquecimento sem causa da parte a quem favorece, como no caso, devendo ser reduzida a patamares razoáveis (REsp 793491-RN, rel. Min. César Asfor Rocha, 4ª. Turma, DJ de 06.11.06).
Porém, mister aclarar, que na prática, o que de fato existe é a necessidade de se verificar em cada caso concreto, se o que gerou o valor excessivo das astreintes não foi justamente o comportamento desarrazoado do réu renitente, que optou por não cumprir o mandamento judicial e arcar com a consequente sanção, em prejuízo do direito do autor. Assim, em casos como esses, será que dá pra nortear decisões judiciais pelo principio da razoabilidade, quando a situação fática para a qual se busca razoabilidade em seu provimento final, é, exatamente consequência de um comportamento desarrazoado do réu?
Nesse sentido, calha trazer o pronunciamento da Ministra Nancy Andrighi, a seguir transcrito:
Mesmo diante de multas elevadas, há de se rejeitar a pretensão de redução se o único obstáculo ao cumprimento de determinação judicial para a qual havia incidência de multa diária foi o descaso do devedor, haja vista que a análise sobre o excesso ou não da multa não deve ser feita na perspectiva de quem, olhando para fatos já consolidados no tempo agora que a prestação foi finalmente cumprida procura razoabilidade quando, na raiz do problema, existe justamente um comportamento desarrazoado de uma das partes (AgRg no REsp 1.026.191/RS, minha relatoria, DJe de 23/11/2009)
Outrossim, será que se pode pensar na existência de enriquecimento sem causa, quando o art. 884 do Código Civil ao vedar o enriquecimento sem causa dispõe que” aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”, ou seja, o enriquecimento sem justa causa opera-se à custa de outrem. Assim, mais uma vez, será que o comportamento recalcitrante do réu, a desobediência injustificada a uma ordem judicial, não seria justa causa, a legitimar o pagamento do montante das astreintes, independente de proporcionalidade ou não com o valor da obrigação principal, diferente do que vem sendo decidido por alguns tribunais?
Nesse sentido, oportuno trazer à baila a decisão prolatada pelo Des. Carlos Alberto Etcheverry, nos autos da Apelação Cível nº 70015760382:
(...) O valor da multa não deixa margem a dúvida – foi fixado em valor certo, a data para cumprimento da obrigação foi claramente definida e o descumprimento é incontroverso. É suficiente, portanto, fazer o cálculo pertinente, determinado pelos elementos referidos acima, para determinar o valor da execução.
Que este valor se mostre vultoso - a devedora deixou transcorrer, segundo consta na petição inicial, cento e noventa e nove dias desde a data em que deveria ter cumprido o julgado -, é juridicamente irrelevante, pois a omissão da apelada não pode constituir coisa diversa da expressão de sua vontade, livre de qualquer constrangimento. Se assim quis, por que haverá o juiz de querer diferentemente, tanto mais que dispõe a instituição financeira demandada de responder confortavelmente, como é notório, pelo cumprimento da obrigação? (grifo nosso)
De igual forma, posiciona-se Demócrito Reinaldo Filho, ao salientar que:
É importante deixar claro que a limitação do valor da multa, quando exigida diante do descumprimento de ordem judicial, não deve ser tomada como princípio absoluto, mas depender do exame das circunstâncias do caso concreto. Se o único obstáculo ao cumprimento da decisão judicial é a resistência ou descaso da parte condenada, que age com completa ausência de boa-fé e de forma maliciosa, o valor acumulado da multa não deve ser reduzido ou limitado. A limitação ou adequação do valor da multa acumulada deve ser reconhecida somente como uma potencialidade do sistema ou faculdade do julgador1, sob pena de destituí-la de sua função intimidatória.(Grifo nosso)
1- Sempre levando em consideração o comportamento do devedor (condenado), sua condição econômica, grau de resistência, vantagens obtidas com o atraso e demais circunstâncias.
No mesmo sentido, a ministra Nancy Andrighi, relatora no REsp 1135824, de 21.09.2009, assim asseverou:
Este recurso especial é rico em argumentos para demonstrar o exagero da multa, mas é pobre em justificativas quanto aos motivos da resistência do banco em cumprir a. ordem judicial. Em situações como essa, reduzir a astreinte sinalizaria às partes que as multas fixadas não são sérias, mas apenas figuras que não necessariamente se tornariam realidade. A procrastinação sempre poderia acontecer, sob a crença de que, caso o valor da multa se torne elevado, o inadimplente a poderá reduzir, no futuro, contando com a complacência do Poder Judiciário.
No mais, outro ponto relevante a ser repensado é onde fica o princípio da dignidade da justiça, quando frontalmente colide com o principio da razoabilidade e da proibição do enriquecimento sem causa, nas situações em que o réu não cumpre a ordem judicial, não justifica impossibilidade de cumprimento, torna o valor da multa consequentemente excessivo e desproporcional ao valor da obrigação principal, e mesmo assim as astreintes tem seu valor reduzido, muitas vezes de oficio pelo juiz a quo.
Destarte, verifica-se que claramente há um conflito de princípios, que na busca de uma solução justa e adequada ao sistema democrático de direito, perfilha-se dos ensinamentos do mestre Humberto Ávila, que nos prestigia com o ensinamento de que existindo colisão entre princípios, a solução não deve se resolver com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre o outro, como vem ocorrendo na prática forense, mas sim com a ponderação dos princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinada circunstância concreta, recebe a prevalência.
Humberto Ávila prossegue advertindo que os princípios possuem apenas uma dimensão de peso, e não determinam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regaras. Assim, no caso concreto, a ponderação dos princípios conflitantes é resolvida mediante a criação de regras de prevalência, norteada pelo princípio que tiver maior peso, que prevalecerá sobre outro princípio, em cada caso concreto, em função de determinadas circunstâncias, a serem sopesadas.
Assim, havendo conflito de princípios, in causa o da dignidade da justiça, razoabilidade e vedação ao enriquecimento sem causa, dever-se-á ponderar em cada circunstância, se seria mais justo prevalecer a dignidade da justiça, ou a razoabilidade e a vedação ao enriquecimento sem causa, quando em verdade, o próprio comportamento desarrazoado do réu deu causa a exigência de uma multa, cujo efeito, a principio era meramente coercitivo, como muito bem salienta o mestre Humberto Ávila.
Ante o exposto, conclui-se que se a multa foi arbitrada dentro de patamares razoáveis e proporcionais ao caso concreto, de acordo com a capacidade econômica do réu, e este de maneira injustificada descumpre mandamento judicial, permanece recalcitrante quanto ao seu dever de fazer, não fazer ou entregar coisa, não há vedação ao enriquecimento sem causa que justifique redução da multa coercitiva, com efeitos ex tunc.
Deveras, a prioridade do ordenamento jurídico brasileiro deve ser, sempre, garantir e manter a autoridade das decisões judiciais, preservar a efetividade do processo, assegurando à dignidade da justiça e a manutenção do Estado Democrático de Direito, vez que é o Estado o principal constrangido diante do descumprimento de uma ordem judicial.
Nesse diapasão, é relevante ressaltar que foi com o fito de priorizar a efetividade do processo, de garantir e manter a autoridade das decisões judiciais, que o legislador brasileiro fez referência expressa no art.14, V, Paragrafo único do Código de Processo Civil, ao dever das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, sob pena de constituir ato atentatório ao exercício da jurisdição, sujeito a pena de multa, a ser arbitrada de acordo com a gravidade da conduta, já que o descumprimento de uma ordem judicial além de atingir o direto da parte constitui ofensa ao provimento judicial.
Por fim, repise-se, como as astreintes também tem a função de assegurar a confiabilidade da atividade jurisdicional, contribuindo para o fortalecimento de Estado Democrático e Social de Direito, esta finalidade é que deve ser priorizada em havendo conflito de princípios.