Há 10 anos tramitava pelo Congresso a chamada Lei do Superendividamento que é um marco legal para resgatar consumidores que se viam em situação de endividamento extremo. Normalmente com o nome sujo - inscrito em serviços de proteção ao crédito, como SPC e SERASA - tais consumidores estão excluídos do mercado de crédito.
É sabido que os bancos não têm a melhor postura ética ao oferecer crédito aos seus clientes. Os obscuros contratos de adesão fazem com que o consumidor, ora por desconhecer as leis, ora por extrema necessidade, assuma obrigações abusivas, tornando suas dívidas impagáveis.
Da mesma forma que as empresas hoje contam com uma Lei de falência, os consumidores - salvo as devidas proporções - terão um instituto semelhante.
Veja as principais mudanças que a Lei agora permite ao consumidor:
Aspectos práticos
Desistir do empréstimo
A Lei que alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso permite que o consumidor cancele o empréstimo contratado em 7 (sete) dias sem a necessidade de apresentar qualquer justificativa. As instituições financeiras deverão suprir formulários físicos e eletrônicos para que o consumidor informe a devolução de parcelas recebidas e eventuais juros.
Limite do consignado
Apesar de manter o limite de 30% do salário como margem consignável para o pagamento de parcelas do empréstimo, agora há um limite de 5% do salário líquido para pagamento de dívidas do cartão de crédito. Caso a regra não seja cumprida, é possível solicitar na justiça a revisão do contrato e o juiz poderá conceder: aumento do prazo de pagamento sem acréscimo da dívida; redução de encargos e substituição de garantias.
Ofertas enganosas
A partir da vigência da Lei ficará proibido a veiculação de propaganda/publicidade com expressões enganosas, como: "taxa zero" ou "sem juros".
Também será proibido informar que a contratação do empréstimo se dará sem a consulta a órgãos de proteção de crédito ou sem avaliação financeira.
A venda casada continua proibida, ou seja, não é possível vincular o empréstimo a contratação de qualquer outro produto ou serviço, mas a nova Lei vai além e fica proibido o assédio ao consumidor para que adquira outros serviços ou produtos, dando especial atenção ao grupo mais vulneráveis, como idosos e analfabetos.
A desistência de ações na justiça também não poderá ser requerida pelos credores em renegociação de dívida, assim como depósitos judiciais ou pagamento de honorários advocatícios.
Renegociação/Repactuação
A renegociação é similar a que ocorre na Lei de Falencias, ou seja, a pedido do consumidor, o juiz poderá reunir todos os credores para que seja apresentado pelo consumidor um plano de pagamento em um prazo de 5 anos para a quitação das dívidas com a manutenção das garantias oferecidas.
O novo conceito, chamado de mínimo existencial, diz que haverá um regulamento que definirá quanto da renda do consumidor poderá ser afetada para quitação das dívidas. Isso ocorrerá para impedir que o consumidor tenha que contrair mais dívidas para pagar as que constam em seu plano de pagamento.
Credores que faltarem a audiência terão suas dívidas suspensas sem possibilidade de cobranças de juros por atraso. Em caso de ausência do credor durante a audiência, este não receberá prioridade na quitação da dívida.
O plano de pagamento poderá ser revisto em 2 anos, desde que quitadas as obrigações do plano homologado em juízo no período.
Bens como carro, financiamentos imobiliários, os contratos de crédito rural e dívidas feitas sem a intenção de realizar o pagamento não poderão participar da repactuação das dívidas.
Plano judicial compulsório
Caso o credor não compareça à audiência ou se recuse a aceitar o acordo oferecido pelo consumidor, este poderá requerer ao juiz que determine um plano judicial compulsório de pagamento, sujeito ao mesmo mínimo existencial previsto em regulamento.
Nesse caso, um administrador nomeado pelo juiz terá 30 dias para apresentar um plano de pagamento das dívidas com aumento do prazo de pagamento e descontos em juros.
Aos credores, será garantido o pagamento da dívida original acrescida da inflação do período além do prazo de 5 anos para a quitação total da dívida a contar do término do prazo do plano de pagamento apresentado pelo consumidor. Esse valor deverá começar ser pago em até 180 dias a contar da decisão judicial e depois em parcelas mensais sucessivas.
Negociação Extrajudicial
Será possível a negociação extrajudicial com órgãos de proteção ao crédito e Procons, no entanto, será facultativo, ou seja, tais órgãos poderão ou não oferecer o serviço ao consumidor.
Além de garantir o mínimo existencial, como no processo judicial, no acordo o consumidor deverá se comprometer a não fazer novas dívidas e deverá constar a data em que o nome sairá dos cadastros de proteção ao crédito.
Transparência
No momento da contratação do crédito, o consumidor deverá ser informado claramente sobre:
custo efetivo total
a taxa mensal efetiva de juros
os encargos por atraso
o total de prestações
A possibilidade da antecipação do pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos.
a soma total a pagar, com e sem financiamento.
A falta de transparência pode acarretar em redução de juros e aumento do prazo de pagamento - que levará em conta a capacidade de pagamento do consumidor, sem prejuízo de ações por danos morais.
Aspectos Jurídicos
O Princípio da Proteção Simplificada do Luxo
A Lei do Superendividamento não é aplicável a compra de produtos de luxo. Isso porque o direito brasileiro se inspira no conceito de “paradigma da essencialidade”, da Professora Teresa Negreiros. Ou seja, apesar de proteger os interesses daqueles que estão acima do homem médio, tal proteção não encontra o mesmo prestígio que é dado ao homem médio.
A proteção do luxo é portanto garantida de forma simplificada, ou seja, os direitos supérfluos, embora tutelados, não devem receber a mesma intensidade de preocupação como sucede com os direitos essenciais.
Tal determinação está expressa na Lei conforme abaixo:
'Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 3º O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.'
A Proteção do Mínimo Existencial
A definição de “mínimo existencial” surgiu na Alemanha, em 1954,que determinou que o Estado deveria dar auxílio material ao indivíduo carente e que isso seria um direito subjetivo unindo a dignidade da pessoa humana à liberdade material e o estado social.
No Brasil, a noção de mínimo existencial foi usada pela primeira vez ADPF 45 de 2004, de relatoria do Ministro Celso de Mello. A medida discutia a constitucionalidade do veto presidencial na fixação das diretrizes de elaboração da LOA de 2004, entretanto deu-se a prejudicialidade da ação por perda do objeto.
O mínimo existencial é o conjunto dos direitos fundamentais sociais mínimos para se garantir a dignidade humana.
A proteção do Mínimo Existencial também está expressa na Lei 14.181/21 que altera o Código de Defesa do Consumidor
'Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
Princípio do crédito responsável
O uso de mecanismos de marketing na promoção do consumo e na democratização do oferecimento de crédito a uma população sem educação financeira, acabou por incorrer em uma população superendividada. De acordo com o Serasa, quase 62 milhões de brasileiros estão inadimplentes e metade tem a renda inteira comprometida.
Já passava da hora de haver uma legislação que promovesse o crédito responsável. O superendividado é, portanto, a pessoa de boa-fé que não tem como arcar com suas dívidas sem abalar seu mínimo existencial.
'Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
Tal Princípio tem 3 sujeitos: O Estado, que tem o dever de promover políticas públicas para evitar o superendividamento; O credor de não fornecimento de créditos predatórios e o Consumidor que deve adotar uma postura prudente ao contratar o crédito.
Vigência e retroatividade
Apesar da Lei não poder retroagir e atingir negócios jurídicos realizados antes de sua vigência, se os efeitos perdurarem, deve se utilizar a nova lei. Vemos isso expresso na nova Lei:
Art. 3º A validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta Lei subordinam-se aos seus preceitos.
Art. 4ºO disposto no caput do art. 54-E da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), não se aplica às operações de crédito consignado e de cartão de crédito com reserva de margem celebradas ou repactuadas antes da entrada em vigor desta Lei com amparo em normas específicas ou de vigência temporária que admitam percentuais distintos de margem e de taxas e encargos, podendo ser mantidas as margens estipuladas à época da contratação até o término do prazo inicialmente acordado.
Além disso, as normas referentes a conciliação têm aplicabilidade imediata por ter caráter processual:
DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO
'Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.
§ 3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.
§ 4º Constarão do plano de pagamento referido no § 3º deste artigo:
I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;
II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso;
III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes;
IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
§ 5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.'
'Art. 104-B. Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.
§ 1º Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência.
§ 2º No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.
§ 3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.
§ 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.'
'Art. 104-C. Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.
§ 1º Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.
§ 2º O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.'"
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Giselle Molon é Advogada Especialista em Advocacia Cível. Advogada Voluntária no Mapa do Acolhimento - Atendendo mulheres vítimas de violência de gênero